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P ARTE I – E NQUADRAMENTO T EÓRICO

Capítulo 2 | Ser Professor: Desafios da Ação Docente

2. S ER P ROFESSOR : D ESAFIOS DA A ÇÃO D OCENTE

2.3. Desenvolvimento profissional docente

A concetualização de ‘desenvolvimento’ remete para um processo contínuo de mudanças de natureza qualitativa e quantitativa que, ocorrendo ao longo do tempo, resultam das diferentes interações estabelecidas entre os sujeitos e os contextos onde estão inseridos.

Estabelecendo um paralelismo, isto é, transportando esta concetualização para o campo da profissionalidade docente, diversos autores (Day, 2001; Guskey & Huberman, 1995; Morais & Medeiros, 2007; Nóvoa, 2008; Sá-Chaves, 2007) reconhecem a necessidade de compreender o desenvolvimento profissional inscrito numa lógica de continuidade e considerando a dimensão pessoal do professor. Todavia, a compreensão do processo de desenvolvimento profissional docente intercepta a problemática do conhecimento profissional, que lhe é inerente, e as questões da sua configuração, enquanto características que o distinguem de outros conhecimentos profissionais, atribuindo-lhe uma especificidade própria.

A concetualização do desenvolvimento profissional docente tem apresentado diversos entendimentos, provavelmente pela complexidade que está intrínseca a este conceito e por implicar diferentes interações em contextos distintos. A primeira constatação remete para a dimensão específica do desenvolvimento profissional docente, enquanto escolha de percurso, em detrimento de outras funções sociais possíveis. Indissociável a esta constatação está a pessoa do professor e todo um percurso de vida que influencia o modo como prevê e interpreta os acontecimentos (Alarcão, 2006a: 134) e, por conseguinte, para quem a inovação e a mudança tendem a acarretar a alteração de hábitos adquiridos e enraizados, isto é, tensões e conflitos que afetam a suposta linearidade e delimitação da zona de conforto pessoal.

Esta perspetiva comporta implicações na conceção de programas de formação inicial e contínua, pois não é uma ação impessoal e alheia ao sujeito; pelo contrário, é um ato pessoal que implica um trabalho do indivíduo sobre si mesmo, sobre as suas conceções e ações (Morais & Medeiros, 2007). Neste sentido, Day (2001) sustenta que os professores se formam, isto é, a conclusão da formação inicial não é garante de formação.

Em consonância com as abordagens reflexivas, associadas ao campo da formação de professores, reconhecemos a importância do papel ativo que os atores educativos desempenham na formulação de propósitos para o seu desempenho profissional e, por outro lado, entendemos que a produção de conhecimento sobre esta área não é propriedade exclusiva das instituições de ensino superior e/ou dos centros de investigação. Efetivamente, a sabedoria da prática, o ‘conhecimento-na-ação’ (Schön, 1983) e as conceções que sustentam essa sabedoria constituem-se como repertórios passíveis de problematização e adequação reflexivas a situações educativas concretas, induzindo a transformações nas práticas letivas.

Tendo por referência estudos desenvolvidos nas últimas três décadas, Zeichner (1993, 2008) equaciona o papel da reflexão no processo de desenvolvimento profissional docente. O autor alega que, em contexto de formação, a reflexão acarreta algumas limitações, em particular quando o enfoque se concentra exclusivamente na avaliação da aplicação das práticas letivas desenvolvidas e/ou se restringe aos espaços da sala de aula, do ensino e da relação com os alunos. Assim, a superação destas limitações da reflexão e a progressiva correlação com o processo de desenvolvimento profissional docente carece de duas ações principais: i) o seu enquadramento como prática social, com espaço privilegiado em comunidades de professores onde ocorrem práticas de acompanhamento e apoio ao crescimento mútuo; ii) a inter-relação com os propósitos políticos do ato de ensinar, ou seja, a identificação e compreensão dos filtros ideológicos do processo reflexivo (Zeichner, 1993, 2008).

Com efeito, correlacionar o ato reflexivo com os propósitos políticos da ação de ensinar pressupõe o reconhecimento do seu carácter iminentemente processual, dado que refletir não se consubstancia como um ato esgotado em si mesmo, mas como um possível percurso de alcançar determinado fim. Parafraseando Flávia Vieira, a reflexão profissional não garante, por si só, a qualidade das práticas educativas, na medida em que pode servir diferentes propósitos, incluindo a justificação e o reforço de práticas discriminatórias e anti-democráticas (2006: 16). Assim, emerge a necessidade de

construir correlações entre o processo reflexivo e as finalidades políticas e éticas que sustentam o ato educativo.

Nesta perspetiva, assumimos a reflexão como um GPS (Global Positioning System) do processo que relaciona desenvolvimento, formação e aprendizagem, aceitando o desenvolvimento como um processo de formação e de aprendizagem em contextos social e ideologicamente demarcados (Mesquita, 2010).

Day (2001), reportando-se a aspetos de natureza mais processual, afirma que o desenvolvimento profissional contínuo deriva de aprendizagens naturais, ocasionais e/ou de resultados de uma planificação. Segundo o autor, a fonte de aprendizagem natural dos professores é a experiência; porém reconhece que a aprendizagem sustentada apenas na experiência tenderá a ser limitadora do desenvolvimento profissional. Para fundamentar a sua posição, Day (2001) recorre aos três cenários de aprendizagem profissional identificados por Lieberman (1996): i) instrução direta (conferências, cursos); ii) aprendizagem na escola (amigos críticos, projetos de investigação ação); iii) aprendizagem fora da escola (parcerias escola-universidade ou escolas-centros de desenvolvimento profissional, grupos informais), acrescentando um quarto: iv) aprendizagem em contexto de sala de aula.

Estes cenários congregam não só referências aos espaços e aos tempos em que a aprendizagem ocorre, mas, igualmente, às pessoas que, nesses espaços, participam diretamente (ou não) na aprendizagem do professor, por exemplo investigadores, formadores, pares, alunos, comunidade, entre outros. Apesar de, historicamente, os docentes manifestarem reticências quanto à prestação de contas do seu trabalho às comunidades locais e do seu ethos profissional se ter definido por ‘internalização’ e não por ‘externalização’ (Nóvoa, 2008), o desenvolvimento profissional é um processo que se caracteriza pela interação do sujeito com o que o rodeia, assumindo essa interação particular relevância para a evolução aperfeiçoada do sujeito, face aos contextos que integra.

Além da significação atribuída às diferentes interações, importa destacar a congruência entre as conceções dos sujeitos, relativas ao ato de ensinar, e as conceções da organização, isto é, do contexto organizacional. Na sequência de um estudo sobre oportunidades de aprendizagem em contexto de comunidades, Little, Horn & Bartlett (2002) referem que o grau de compatibilidade entre as conceções individuais e as da

comunidade tende a revelar-se diretamente proporcional ao grau de empenho dos sujeitos.

Neste sentido, o potencial dessa interação para o crescimento profissional e para uma cultura colegial aponta para a emergência de uma relação aberta e crítica com o trabalho docente, indiciando acréscimos de autonomia profissional e valorizando o conhecimento e as redes relacionais estabelecidas, nas quais os sujeitos se desenvolvem. Nesta perspetiva, da indagação e investigação na e sobre a prática emergem problemas reais, dúvidas, tensões, incidentes críticos que são potencialmente promotores do desenvolvimento profissional. Fullan & Hargreaves salientam que o mais importante será o tipo de envolvimento e o modo particular como os professores trabalham em conjunto como comunidade (2001: 37). Por sua vez, a articulação do contexto de trabalho docente com o da formação destaca a centralidade do saber e do agir profissionais (Esteves & Rodrigues, 2003; Rodrigues & Esteves, 1993; Rodrigues, 2007; Roldão, 2000a, 2002), potenciando a dimensão formativa das situações de trabalho (Machado & Formosinho, 2009).

À semelhança da aprendizagem, a formação é um percurso que assume vias formais (frequência de cursos de formação acreditados, por exemplo) e informais (a autoformação, por exemplo) e, como tal,

não é possível constatar necessidades objectivas, isto é, necessidades ontologicamente objectivas, dependendo estas dos sujeitos, grupos ou sistemas que as percebem e do contexto onde emergem, dos agentes sociais que as recolhem e detectam (ou colaboram na sua detecção) e dos respectivos valores e objectivos de referência (Rodrigues, 1999: 154).

Não obstante, a formação será sempre um processo individualizado e pessoal de cada professor (Esteves & Rodrigues, 2003; Rodrigues, 2007), cujo sentido depende das vidas pessoais e profissionais e das políticas e contextos escolares nos quais realizam a sua actividade docente (Day, 2001: 15). Deste modo, compreende-se que nem toda atividade seja, por si só, formativa, ainda que integrada em um programa de formação formal. A natureza formativa de uma determinada atividade carece de ser validada e legitimada pelo formando como uma experiência compensadora e útil (Alarcão, 2006a: 137). Neste processo concorre, ainda, o que Alarcão designa por forças em presença (2006b: 307) no contexto imediato do desenvolvimento profissional do professor. Estas forças provêm da relação do contexto imediato com outros contextos, inclusive mais amplos, como o das

políticas educativas (Day, 2001), e assumem-se como facilitadoras ou obstaculizantes da atividade formativa e do desenvolvimento profissional docente.

Revisitando o processo de concetualização inicial, sistematizamos acentuando que o desenvolvimento profissional pressupõe considerar a dimensão profissional e a pessoal do professor, num processo contínuo (e não como ponto de chegada), consentâneo com as conceções de aprendizagem e de formação, que remetem para o indivíduo e os contextos e cuja alinearidade é uma característica intrínseca. Os conceitos não apresentam significações únicas e estáticas, pelo que sublinhamos que ao desenvolvimento profissional docente subjazem finalidades maiores, entre elas, o bem- estar pessoal e profissional do professor e a qualidade dos processos de ensino e de aprendizagem.

Em suma, o desenvolvimento profissional alicerça-se numa concepção da autonomia dos professores enquanto manifestação de capacidade colectiva para conceber e executar, de modo original e atento aos contextos, o trabalho que lhes está confiado, para o avaliar e para o redefinir, sempre que tal se prove necessário (Esteves, 2006a: 246). Nesta linha de pensamento, o desenvolvimento profissional docente pressupõe implicações, nomeadamente ao nível da qualidade dos processos de ensino e de aprendizagem (Day, 2001; Estrela, Esteves & Rodrigues, 2002; Formosinho & Machado, 2009; Guskey & Huberman, 1995; Morais & Medeiros, 2007; Rodrigues, 2007; Zeichner, 1993, 2008). Pelo que, além da dimensão pessoal e profissional, o desenvolvimento profissional docente envolve, igualmente, a dimensão organizacional (Nóvoa, 2002a), acarretando reflexos sociopolíticos passíveis de alavancar o desenvolvimento da sociedade, que se pretende democrática e equitativa.