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P ARTE II – E STUDO E MPÍRICO

Capítulo 4 | Apresentação e Discussão de Resultados

4. A PRESENTAÇÃO E D ISCUSSÃO DE R ESULTADOS

4.1. Resultados do primeiro momento do estudo

4.1.2. Representação concetual e gestão do currículo

Na sequência do processo de reorganização curricular do ensino básico (DL n.º 6/2001, de 18 de janeiro) alguns conceitos (re)assumiram uma maior centralidade no discurso educativo, entre eles os de: ‘Competência’, ‘Currículo’, ‘Desenvolvimento curricular’, ‘Gestão curricular’ e ‘Projeto’. Como tal, para compreendermos o nível de apropriação destes conceitos pelos professores de Ciências Físicas e Naturais e, simultaneamente, evitar respostas politicamente corretas ou plasmadas pela discursividade dominante, solicitámos que os professores inquiridos assinalassem as duas expressões que, em sua opinião, traduziam o entendimento atribuído pelos seus pares, a cada um dos conceitos em análise.

Assim, a cada conceito associámos um conjunto de expressões, das quais apenas duas estavam formuladas em consonância com os referenciais teóricos que sustentam esta investigação. O Quadro 4.3 apresenta por conceito os valores percentuais (N=1122 professores) referentes às respostas cujo enunciado expressava entendimentos concordantes com o teoricamente fundamentado.

Conceito Teoricamente fundamentado Percentagem

Competência

Organização de conhecimentos adquiridos, apropriados por um sujeito, e colocados em ação perante situações problemáticas.

Apropriação, uso e mobilização dos saberes curriculares face a uma situação.

61,4%

Currículo

Projeto organizador das aprendizagens socialmente necessárias em cada contexto.

Conjunto de aprendizagens consideradas socialmente necessárias aos alunos num dado contexto e tempo.

Desenvolvimento curricular

Processo de tomadas de decisão sobre o currículo por parte de todos os intervenientes educativos.

Modo como em cada escola e turma se planificam, desenvolvem e avaliam as diferentes situações de ensino e aprendizagem, tendo por referência as metas e opções de gestão curricular assumidas.

28,3%

Gestão curricular

Decisão, a nível de conselho de turma e em articulação com os departamentos curriculares, sobre o que ensinar e porquê, como, quando, com que prioridades, com que meios, com que organização, com que resultados.

Reconstrução contextualizada do currículo proposto a nível nacional.

18,9%

Projeto

Conjunto de atividades de ensino e aprendizagem dirigidas a finalidades determinadas, que correspondam a necessidades sentidas pelos agentes envolvidos.

Modo de concretizar as orientações curriculares de âmbito nacional face a um contexto específico, implicando uma constante avaliação de resultados e possíveis reformulações.

43,0%

Quadro 4.3 – Representação concetual de conceitos (re)emergentes no discurso educativo.

Tendo por referência o entendimento teoricamente fundamentado, os conceitos de ‘Competência’ e de ‘Projeto’ destacam-se como os que, supostamente, se encontram mais apropriados pela generalidade dos professores; por oposição, os conceitos de ‘Gestão curricular’ e de ‘Desenvolvimento curricular’ surgem como os menos apropriados. Ainda em relação ao conceito de ‘Competência’, 69,9% dos professores respondentes identificaram os dois enunciados formulados em consonância com o teoricamente fundamentado (Q10), distinguindo enunciados cuja formulação remetia para ações concretas e imediatas de enunciados que apontavam para a mobilização de diversos conhecimentos e recursos em situação. Por outras palavras, a generalidade dos professores respondentes, reconheceu enunciados formulados numa perspetiva de desenvolvimento de competências nos alunos, considerando que

la compétence est la mise en œuvre par une personne en situation, dans un contexte déterminé, d’un ensemble diversifié, mais coordonné de ressources; cette mise en œuvre repose sur le choix, la mobilisation et l’organisation de ces ressources et sur les actions pertinentes qu’elles permettent pour un traitement réussi de cette situation (Jonnaert, Barrette, Boufrahi & Masciotra, 2004: 674).

Com efeito, os conceitos de ‘Competência’ e de ‘Projeto’ assumem particular prevalência nos documentos oficiais e na discursividade predominante, repercutindo-se numa

panóplia de normativos burocráticos a cumprir na prática diária das escolas, desde qualquer planificação (disciplinar a longo e médio prazo, atividades a desenvolver em contexto de sala de aula, de enriquecimento curricular ou no Plano Anual de Atividades, entre outras), passando pelos planos de recuperação e de desenvolvimento que pretendem auto-implicar professores, alunos e respetivos encarregados de educação nos processos de ensino e de aprendizagem, e entroncando nos documentos estruturantes da política curricular de cada escola, designadamente: o Projeto Educativo de Escola, o Projeto Curricular de Escola e os diferentes Projetos Curriculares de Turma que, alegadamente, visam contextualizar, flexibilizar e adequar o desenvolvimento do currículo em função das necessidades específicas dos alunos de cada turma.

Neste sentido, questionamos se a aparente apropriação destes dois conceitos se situa ao nível da discursividade politicamente correta e do preenchimento do repertório de normativos burocráticos ou se, por oposição, traduz efetivos reflexos da apropriação de conhecimentos e respetivas implicações na ação docente desenvolvida nas práticas quotidianas dos professores respondentes. Por outras palavras, questionamos se a apropriação do conceito de ‘Competência’ remete para o desenvolvimento da ação docente numa perspetiva de ensino em situação que, enquanto um todo contextual, carece da mobilização de diferentes saberes e recursos, isto é, de um agir competente em situações inteligentes, assumindo que

l’agir compétent est indissociable de l’intelligence des situations, cette compréhension que les personnes ont des situations et du comment faire pour y être efficaces, soit en y adaptant ce qu’elles sont et leur déjà-là, soit en y construisant de nouvelles ressources (Jonnaert, Barrette, Boufrahi & Yaya, 2006: 18).

Em relação ao conceito de ‘Projeto’, indagamos se a sua apropriação se configura na concretização de ações estrategicamente definidas e alinhadas com o conjunto de finalidades a alcançar, isto é, se pressupõe processos de conceção, gestão, desenvolvimento, avaliação e reorientação que implicam o envolvimento e responsabilização dos diversos acores educativos (Roldão, 2000b).

Apesar de nos referenciais teóricos ser comummente aceite que o Projeto Curricular de Turma é um instrumento de gestão curricular cuja finalidade principal consiste na adequação do currículo nacional às especificidades dos alunos de uma turma (Leite, Gomes & Fernandes, 2001; Roldão, 2004), as opiniões dos professores entrevistados

não se revelaram consonantes com esses referenciais, pois quatro desses professores garantiram que a finalidade deste instrumento se resumia ao cumprimento da legislação vigente.

O projeto curricular de turma é apenas o cumprimento de uma formalidade. É uma carga de trabalho inútil nos moldes em que está a funcionar. (EA1)

Por oposição, os outros dois entrevistados associaram a finalidade do Projeto Curricular de Turma à promoção do sucesso educativo dos alunos, declarando que:

O projeto curricular de turma permite articular conhecimentos de várias áreas do saber, gerir o currículo, propiciar o sucesso e integrar os alunos na turma. (EA2)

O projeto curricular de turma serve para fazer a articulação e a junção de tudo o que vai acontecendo na turma, para conhecermos o ambiente da turma e a evolução das aprendizagens dos alunos. Também tem de evidenciar as dificuldades diagnosticadas e as estratégias adotadas para as colmatar. (EA6)

Não obstante a conceção, aprovação e avaliação do Projeto Curricular de Turma estar atribuída ao conselho de turma (Decreto-Lei n.º6 /2001, de 18 de janeiro), a generalidade dos entrevistados assegurou que a elaboração deste instrumento era uma responsabilidade imputada exclusivamente ao diretor de turma, escasseando quaisquer contributos dos restantes professores da turma e dos representantes dos encarregados de educação e dos alunos.

Reportando-nos ao conceito de ‘Currículo’, constatamos que 35,0% dos professores respondentes afirmou que a representação concetual dos seus pares sobre este conceito era próxima da teoricamente fundamentada. Porém, 28,0% dos professores respondentes considerou, igualmente, que para os seus pares este conceito era sinónimo de programa disciplinar ou de corpo uniforme de matérias a ensinar, facto que, em nosso entender, indicia uma visão centrada na dimensão conteudinal dos saberes, com prevalência de uma segmentação disciplinar. Esta visão descarta a dimensão relativa à aprendizagem/apropriação a realizar pelo aluno que a ideia de currículo comporta e, por conseguinte, apresenta-se como limitadora e redutora da ação docente, sobretudo no contexto dos processos de desenvolvimento e gestão curricular.

Esta realidade está associada a sistemas educativos de matriz centralizada, em que as decisões curriculares se circunscrevem à administração central e a ação docente se

restringe à mera execução dessas decisões, gerando ruídos e dificuldades no trabalho docente (Roldão, 2000b). No sentido de clarificar a amplitude e a abrangência do conceito de ‘Currículo’, Roldão esclarece que os programas não são o currículo, os programas são instrumentos do currículo, entre outros instrumentos (2000b: 14).

Em relação ao conceito de ‘Desenvolvimento curricular’, 34,1% dos professores respondentes considerou que os seus pares associavam este conceito à expressão Concretização do plano sequencial do ensino e da aprendizagem, privilegiando-se as regras de previsão, temporalidade e precisão dos resultados, indiciando o predomínio de uma perspetiva de ação docente de matriz executora (Neto-Mendes, 2005), onde aspetos de conceção, monitorização, reflexão e reconcetualização não se assumem como relevantes nas práticas de ação docente destes professores (Roldão, 2000b).

Aparentemente menos apropriado, o conceito de ‘Gestão do currículo’ foi o que também obteve uma maior dispersão nas respostas, sendo que 19,5% dos professores respondentes entendeu que os seus pares o associavam à expressão Decisão, a nível de departamento curricular, sobre o que ensinar e porquê, como, quando, com que prioridades, com que meios, com que organização, com que resultados. No entanto, remeter as práticas de gestão curricular para o contexto do departamento curricular pressupõe a sobreposição da gestão do currículo de cada disciplina, em detrimento de uma gestão integradora e valorizadora, desenvolvida pela articulação horizontal das disciplinas face a cada grupo de alunos, nomeadamente ao nível dos conselhos de turma. O condicionamento do desenvolvimento de processos de gestão curricular integradores de diferentes áreas curriculares indicia uma perspetiva segmentada e polarizada das competências atribuídas a estruturas de gestão intermédia, refletindo, mais uma vez, a prevalência de uma ação docente de natureza executora, em detrimento de uma ação docente emancipatória e criativa, onde o professor se assume como construtor e decisor curricular.

A análise do discurso dos seis professores de Ciências Físicas e Naturais entrevistados confirma a reduzida apropriação do conceito de ‘Gestão curricular’, dado que apenas um desses professores revelou um entendimento próximo do que consideramos teoricamente fundamentado, quando afirmou que:

gerir o currículo é adaptar o currículo nacional ao contexto real da escola, mais concretamente ao contexto de cada turma. São as estratégias de aprendizagem que se pretendem desenvolver com aqueles alunos. (EA5)

Ora, adaptar o currículo nacional ao contexto da escola e, posteriormente, ao de cada turma carece de uma ação estratégica ao nível do departamento curricular e de cada área disciplinar, isto é, da previsão de diferentes situações e estratégias de resposta, passíveis de adequação, segundo diferentes níveis de flexibilidade, no plano didático de cada disciplina e no contexto de cada turma. Este aspeto esteve ausente do discurso dos entrevistados, pois a generalidade dos entrevistados não referiu quaisquer ações estratégicas delineadas em sede de conselho de departamento ou de área disciplinar, afirmando que a realização de práticas de gestão curricular era reduzida, quer no contexto do departamento curricular, quer no do conselho de turma. Os principais constrangimentos mencionados remeteram para a excessiva burocracia inerente ao desenvolvimento da ação docente e a escassez de tempo e de motivação pessoal.

A gestão do currículo, na minha escola, resume-se ao papel. Se os professores têm vontade faz-se. (EA1)

Por outro lado, para estes professores a existência de maiores índices de colaboração docente e de horários de trabalho que contemplassem tempos comuns para a realização de reuniões, afiguravam-se como fatores promotores de práticas de gestão curricular.

Se cada professor tivesse tempo real de trabalho para além das suas aulas, então poder- se-ia proceder a um efetivo trabalho de gestão curricular. (EA4)

A concretização de articulações curriculares, enquanto forma de operacionalizar a gestão curricular, apresentou uma frequência reduzida, reportando-se os exemplos a atividades desenvolvidas fora do contexto da sala de aula, designadamente a visitas de estudo. A planificação destas articulações ocorria, geralmente, de modo informal.

A planificação é feita por contactos informais, fora das reuniões, em encontros do dia-a-dia (sala de professores, internet). (EA2)

Importa salientar que os constrangimentos identificados para a realização de maiores índices de articulações curriculares são idênticos aos já mencionados para as práticas de gestão curricular. Não obstante, os professores entrevistados declararam que o desenvolvimento de articulações curriculares se traduzia em benefícios para os alunos,

contribuindo para incrementar a motivação e a mobilização de conhecimentos, numa perspetiva de construção de uma visão holística dos saberes (Beane, 2002; Lopes, 2008). As citações que se seguem pretendem ilustrar a natureza dos benefícios atribuídos pelos entrevistados às articulações curriculares.

Considero que para os alunos a articulação entre várias áreas do saber torna mais aliciante a aquisição de conhecimentos. (EA2)

Relacionar conteúdos, temas e conhecimentos permite aos alunos reconhecer uma sequencialidade e relação entre saberes, reconhecendo que o que aprendem numa área curricular tem aplicabilidade em outras. (EA1)

Considero que há conteúdos comuns a diferentes disciplinas que justificam que se estabeleçam articulações para conferir aos alunos uma visão mais global e menos estanque dos saberes das diferentes disciplinas. (EA4)

Em suma, a escassa apropriação da generalidade dos conceitos em análise denuncia a existência de constrangimentos na ação docente dos professores respondentes, quer no contexto do desenvolvimento de práticas curriculares articuladas e estrategicamente definidas, quer no contexto do desenvolvimento de competências nos alunos. Por sua vez, esta situação afigura-se, igualmente, como um elemento condicionador do entendimento e finalidades atribuídas pelos entrevistados ao Projeto Curricular de Turma.