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ESCOLARIDADE Atividade

2.5. Deus Sofredor

Poucas crianças desenham Deus sofrendo, distribuídas nas três faixas etárias. Há três tipos de sofrimento atribuídos a Deus: Deus sofre pela decepção que lhe causa o comportamento humano, e sofre, na figura de Jesus, tanto pela situação de crucificado, quanto para salvar a humanidade de seus pecados.

O sofrimento pela decepção que o ser humano lhe causa aponta para uma expectativa que Deus teria em relação à humanidade: uma menina da oitava série desenha Deus chorando numa nuvem, ao contemplar uma cena na qual uma criança maltrapilha pede “uns trocados”, e uma mulher nega. Outra adolescente diz que ele está chorando “por causa do livre arbítrio que deu, e como se torna às vezes”, e desenha um

homem armado em atitude violenta. Conforme discutimos anteriormente, Deus não pune, mas chora e fica triste frente aos atos humanos. Tal projeção em Deus de sentimentos humanos pode ser decorrente da observação dos modelos familiares e pode ser uma expressão cultural da religiosidade popular, sendo, por trás de tudo, a representação da insuficiência arquetípica da consciência humana frente à totalidade. O ego é permanentemente tomado por complexos mais ou menos autônomos, o que nos faz agir de modo imprevisível e frequentemente contrário à nossa própria expectativa moral. Se há ou não um sofrimento em Deus, não sabemos e a respeito disso nada podemos afirmar, mas há um sofrimento no homem, permanentemente colocado frente à sua necessidade cognitiva de conhecer, prever, e atribuir significado, que se manifesta na função simbólica, e o fundo insondável de mistério da existência.

O sofrimento de Jesus na cruz foi ressaltado por um menino do Pré, que desenhou Jesus crucificado e mostrou sua perplexidade quando tentou dizer o que ele estava fazendo, como se, naquela situação de crucificado, com os braços presos, fosse evidente que ele não pudesse fazer nada, apenas sofrer e morrer. Já na quarta série algumas crianças entendem o sofrer e o morrer como a própria atividade de Deus, dando respostas tais como: “Ele está na cruz. Jesus está sofrendo.” Ou “Jesus está morrendo na cruz”. Uma menina desenha Jesus morrendo, e, num balão, escreve a frase de intercessão pelo perdão dos atos daqueles cuja consciência tem limites: “Não ligue, meu Deus, eles não sabem o que fazem!” Atribuindo um significado soteriológico à morte de Jesus, uma menina de 14 anos escreve em seu desenho: “Deus está morrendo pelos pecados do mundo para salvá-lo e dar vida eterna.”

O sofrimento como fator de transformação psíquica é discutido por Jung [1976(1931)]:

O sofrimento agudo tem o efeito extraordinário que, de repente, todo o passado deixa de importar em comparação com a dor... Pessoas que não estão centradas, que estão, de certa forma, fora do centro, precisam de uma grande quantidade de sofrimento antes que possam sentir a si mesmas – quase que infringem a sim mesmas situações nas quais têm que sofrer. Mas ninguém pode evitar isso, pois se trata de uma necessidade. Somente através da dor podem sentir a si mesmas, ou tornarem-se conscientes de certas coisas, e se elas nunca se tornam conscientes, nunca progridem. (p.126).

O sofrimento daquele aspecto de Deus (Jesus) que se torna humano remete ainda ao tema do sacrifício. Na Bíblia, Deus espera que o homem renuncie aos vínculos terrestres por amor à divindade, como no sacrifício de Isaac por seu pai Abraão. (Gn22, 1-19). Mais tarde, o próprio Deus sacrifica seu filho Jesus. E Jesus é considerado, no Cristianismo, como o próprio herói que se sacrifica voluntariamente. O sacrifício do herói se liga ao trajeto de desenvolvimento do ego. Uma vez bem estruturado, o ego percebe não ser o centro da psique total, e a percepção da relatividade de sua autonomia é vivida como um sacrifício: “No sacrifício, o consciente renuncia à posse e ao poder a favor do inconsciente. Isto torna possível uma união de opostos cuja conseqüência consiste numa libertação de energia.” (JUNG, [1986a(1950)]p.671). O sacrifício é parte necessária do processo de individuação, e o sofrimento é a experiência emocional que se liga ao sacrifício, ainda que consentido. Jung [1985(1942)] descreve assim tal processo:

A integração (ou processo de tornar-se homem) é preparada pelo lado da consciência, ou tomada de consciência das pretensões egoísticas; o indivíduo percebe seus motivos e procura formar uma idéia objetiva e o mais completa possível de sua própria natureza. Trata-se de um ato de reflexão sobre si mesmo, da concentração daquilo que se acha disperso e cujas partes nunca foram colocadas adequadamente numa relação de reciprocidade, de um confronto consigo mesmo, visando à plena conscientização. Mas a reflexão sobre si mesmo é o que há de

mais difícil e de mais desagradável para o homem predominantemente inconsciente. A própria natureza humana tem uma aversão pela conscientização. Mas aquilo que leva o homem e essa atitude é justamente o Self, que exige o sacrifício sacrificando-se de certo modo a nós. O processo de conscientização, enquanto reunião de partes dispersas, constitui, por um lado, uma operação consciente e voluntária do eu, e, por outro lado, um aflorar espontâneo do Self que já existia. A individuação aparece como a síntese de uma nova unidade que se compõe de partes anteriormente dispersas, e também como a manifestação de algo que preexistia ao eu e é inclusive seu pai ou criador, e sua totalidade. Com a conscientização dos conteúdos inconscientes, nós, de certo modo,

criamos o Self, e nesse sentido ele é também nosso filho. Mas é

justamente a presença do Self, do qual provêm os mais fortes impulsos para a superação do estágio de inconsciência, que nos leva a este esforço. (p.400)

Neste capítulo foram apresentados os resultados referentes às categorias de análise levantadas para o desenho de Deus, juntamente com a discussão a respeito dos dados obtidos. As categorias estudadas no “Desenho de Deus” foram as seguintes:

1. Fenômeno através do qual Deus se manifesta na psique das crianças, sendo que a maioria antropomorfiza a imagem de Deus. As representações, entretanto, partindo da figura humana total, tendem a ser de partes do corpo ou objetos simbólicos na medida em que a criança cresce.

2. Tamanho da imagem de Deus, que tende a aumentar na razão direta da idade. 3. Localização na folha: o desenho vai ocupando a posição central ao longo do desenvolvimento.

4. Presença de contexto e localização da imagem de Deus neste contexto. O contexto do desenho vai desaparecendo, reduzindo-se ao essencial. Deus aparece tanto no céu como na superfície da Terra em todas as idades.

5. Atributos de Deus, discutidos individualmente, foram divididos entre atributos físicos e culturais, e atributos metafísicos.

A seguir foram discutidas as categorias de análise do segundo desenho, o “Desenho de Deus fazendo alguma coisa”. Tais categorias foram apresentadas e discutidas na seguinte seqüência:

1. Deus Lúdico, mais freqüente nas crianças menores.

2. Deus Protetor, subdividida em Cuidador, Milagroso e Abençoador, presente e freqüente em todas as idades, sendo maioria nas crianças de 10 anos em diante.

3. Deus Organizador e a ausência de Deus Punitivo.

4. Deus Criador, presente e pouco freqüente em todas as idades, refere-se à percepção de Deus como continuamente criativo.

5. Deus Sofredor, também presente e pouco freqüente, afirma o relacionamento dentre Deus e o Homem, representando a capacidade deste de provocar sentimentos em Deus.