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III. DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL: A MATRIZ DO DESENVOLVIMENTO

2. A imagem de Deus dentro dos ciclos arquetípicos do desenvolvimento simbólico da personalidade

Durante toda a vida, a consciência vai se estruturando a partir dos dinamismos inconscientes, formando e organizando o ego e sua relação com a totalidade psíquica, naquilo que se chama de eixo ego-Self. Tal estruturação se dá através de fases que, em geral, são de início sucessivo e funcionamento simultâneo, sempre, segundo Byington (1983), “coordenados pela ação criativa e integradora do arquétipo do Self. (p.9).

Ao falar de fases, é necessário esclarecer que não entendemos aqui o desenvolvimento como acontecendo necessariamente através de etapas ou degraus, mas de modos ou possibilidades de funcionamento que a consciência vai adquirindo ao longo da vida, e que sempre permanecem atuantes e funcionais. O primeiro modo, depois de um estado inicial urobórico, é o matriarcal, no qual se principia a diferenciação do ego da criança.

De acordo com Neumann (1991), a experiência com a mãe ou com o arquétipo materno é, para a criança, o primeiro modelo para e experiência do próprio Self. Os cuidados repetitivos da mãe são vividos pela criança como organizadores, apaziguadores ou compensatórios, sendo que, numa relação primária considerada normal, com o estabelecimento de uma relação básica de confiança, “a criança começa a ver a si própria como centro, não só de seu mundo, mas também como centro do mundo enquanto tal”. (NEUMANN, 1991, p.51). Esta seria a raiz do sentimento de onipotência da criança. Todo o posterior desenvolvimento e a capacidade humana de criar cultura baseiam-se nessa experiência de ser criado à imagem e semelhança de Deus, que não é necessariamente um aspecto narcisista patológico, mas a vivência do ego em

desenvolvimento em íntima relação com o Self. Desta forma, no começo da vida, a mãe seria a organizadora que, “consciente ou inconscientemente, determina as direções do fluxo de libido da criança, e as conexões que esta estabelecerá.” (NEUMANN, 1991, p. 45).

Problemas na relação primal conduzem a um declínio do desenvolvimento psíquico, físico e espiritual da criança, uma vez que é o relacionamento com a mãe que anima e ativa os canais especificamente humanos e as predisposições que permitem que a criança se desenvolva num mundo percebido e vivido do ponto de vista humano. A mãe, para a criança, é o todo-circundante e representa o Self, a totalidade psíquica. Através da relação com a mãe, a criança acha-se num mundo ordenado no qual é possível sobreviver, sendo sua sensação de abrigo e segurança as expressões desta ordenação. Desamparo e insegurança, por outro lado, são sintomas de uma experiência de mundo no qual não se percebe ordem e continência.

No modo de funcionamento matriarcal as questões fundamentais são sobrevivência e pertencimento. O ego ainda vive muito próximo do inconsciente, dentro de um padrão psíquico “regido pelo arquétipo da Grande Mãe e orientado pelo desejo e pela fertilidade, ideal para grande criatividade e adaptação às necessidades básicas de sobrevivência”. (BYINGTON, 1983, p.23)

Neumann (1995), descrevendo a humanização das forças arquetípicas dentro da psique individual, processo pelo qual a criança vai configurando, a partir de suas experiências pessoais, imagens dentro do campo arquetípico, escreve que:

A apercepção da criança de um mundo primário, transpessoal e mitológico é esmagada com a ajuda da personalização secundária e, no final, eliminada. Essa personalização é necessária ao desdobramento incipiente de um terreno pessoal; ela ocorre com a

qual são projetados, por ora, os arquétipos. À medida que esta relação se fortalece, o arquétipo é substituído pela imago, na qual se percebe uma mistura de características pessoais e transpessoais ativas. Desse modo, os arquétipos transpessoais são aos poucos bloqueados e dissimulados pelas figuras pessoais do ambiente com as quais o ego está relacionado. (NEUMANN, 1995, p. 284)

O arquétipo do Self também sofre o mesmo processo. Seu campo potencial vai sendo preenchido por imagens e umas das suas representações possíveis é a imagem de Deus na psique ocidental. Tal imagem recebe influência do ambiente cultural e das experiências diretas da criança. O campo arquetípico, com o desenvolvimento cognitivo e a possibilidade de funcionar segundo novos padrões de comportamento e percepção de mundo, dentro do desenvolvimento simbólico da personalidade, vai sendo preenchido por imagens que, além de serem cada vez mais abstratas, passam a ser imagens coletivas, socialmente aprendidas. Trabalhando com a idéia da humanização das imagens arquetípicas, Coles (1990), enfatizando a necessidade que as crianças ocidentais têm da imagem humana de Jesus na sua representação de Deus, menciona que:

Tanto crianças judias quanto cristãs enfatizaram a centralidade da existência humana de Jesus no Cristianismo. Tal tipo específico de divindade registra-se profundamente nas crianças, especialmente porque Deus é tão frequentemente apresentado na igreja como criança, uma vez que, por muito tempo, vive como as outras crianças o fazem – em relativa obscuridade, com uma família. (COLES, 1990, p. 209)

Entramos agora, portanto, no modo patriarcal de funcionamento da psique. O dinamismo patriarcal se caracteriza por uma maior separação do ego em relação ao

centro da personalidade, e suas imagens e símbolos se fixam e codificam de acordo com os padrões culturais. Neste modo de funcionamento, ainda que com o sacrifício da criatividade, é necessário que o ego se adapte ao mundo externo e aprenda seu funcionamento. Os símbolos se transformam em sinais, tomam formas coletivas, dogmáticas, num padrão que “cultiva a repetição do Revelado, sua memória e tradição com o que organiza a consciência.” (BYINGTON, 1983, p. 23). Dentro do dinamismo patriarcal o grande princípio de orientação é a causalidade, e o ego, que agora discrimina, se orienta para desempenhar suas funções segundo os valores de ordem, disciplina, coerência, autoridade, justiça, os modelos de certo-errado, competitividade, coragem, entre outros. A maior virtude reflete o valor maior, e sua representação enquanto símbolo do Self e imagem de Deus, passa a ser, dentro do dinamismo patriarcal, a Lei. Espera-se, nesse modo de funcionamento, que Deus se apresente de modo organizador, controlador, orientador, discriminando entre o certo e o errado, e eventualmente como rígido e autoritário.

O ciclo seguinte é o da alteridade, no qual se supõe que o ego, já capaz de discriminar entre as polaridades, consiga se relacionar com ambos os pólos dialeticamente. O eu o e outro estão em igualdade de valor, num momento em que o ego já é capaz de se desapegar de seu narcisismo e entender a função estruturante do Outro, do diferente, em seu desenvolvimento, e trocar de lugar com ele, estabelecendo relações empáticas. Tal padrão de relacionamento não se estabelece apenas por um respeito ao outro como tal, mas pela percepção de que, tanto o eu quanto o Outro pertencem, de forma equivalente, à mesma Totalidade. Os heróis típicos deste padrão de consciência são aqueles que se mostram capazes de agüentar a tensão entre os opostos, até que as transformações aconteçam, e os símbolos do Self representantes deste momento do desenvolvimento se vestem com a presença simultânea e sincrônica dos opostos, tais

como luz e sombra, masculino e feminino, vida e morte. No dinamismo da alteridade, o ego deve ser capaz de olhar o Outro impessoal, amorosa e distanciadamente, e deixá-lo ser o que é, enquanto busca o desenvolvimento dos próprios potenciais.

O próximo padrão de relacionamento entre consciência e inconsciente, dentro do eixo ego-Self é o Ciclo Cósmico, no qual, dentro de um padrão unitário, depois da separação e discriminação do ego e do Self, conquistada pelo percurso entre os padrões matriarcal e patriarcal, o ego é capaz de transcender as polaridades e perceber tudo como um Todo único em permanente mutação, em transformação com sentido. O princípio que rege este modo de funcionamento do ego é a contemplação.

A grande separação do ego, no eixo ego-Self permite à consciência perceber a grandiosidade do Self e se aproximar dele na contemplação, abdicando ou ultrapassando tudo o mais na vida, inclusive o corpo carnal, e vivenciar uma relação direta com o Corpo Cósmico. Seus grandes símbolos são a Eternidade, o Infinito, e outros símbolos da Totalidade, como a Eterna Morada, a Luz, o Nada, o Universo, etc. (BYINGTON, 1983, p.24).