• Nenhum resultado encontrado

III. DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL: A MATRIZ DO DESENVOLVIMENTO

1. Do arquétipo à imagem

O conceito de arquétipo, segundo Knox (2003), aparece ao longo do desenvolvimento da obra de Jung, em quatro modelos, nos quais se acentuam aspectos diversos:

1. Como entidade biológica, determinada geneticamente, que provê tanto para o corpo quanto para a mente uma série de informações e padrões de comportamento.

2. Colocado como carregando em seu âmago significados e representações, principalmente quando Jung, historicamente, em sua obra, menciona as influências que recebeu do pensamento de Platão, escreve que:

O termo arquétipo é uma paráfrase explanatória do eidos platônico. Para aquilo que nos ocupa, a denominação é precisa e de grande ajuda, pois nos diz que, no concernente aos conteúdos do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos arcaicos – ou melhor, primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos. (JUNG, [2007(1934), p.50)

Posteriormente, ao continuar a discussão, Jung, embora mantenha a expressão platônica eidos, literalmente traduzida por “idéia” enquanto um determinante a priori de qualquer manifestação, usa-a mais no sentido de “forma”.

3. Como molduras mentais organizadoras, de natureza abstrata, as quais, sendo um conjunto de instruções sem conteúdo simbólico ou representações, nunca podem ser experimentados diretamente. Jung, corrigindo o modelo anterior, apresenta este da seguinte maneira:

Sempre deparo de novo com o mal-entendido de que os arquétipos são determinados quanto ao seu conteúdo, ou melhor, são uma espécie de “idéias” inconscientes. Por isso devemos ressaltar mais uma vez que os arquétipos são determinados apenas quanto à forma e não quanto ao conteúdo, e, no primeiro caso, de um modo muito limitado. Uma imagem primordial só pode ser determinada quanto ao seu conteúdo no caso de tornar-se consciente e, portanto preenchida com o material da experiência consciente.[...] O arquétipo é um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que uma facultas

praeformandi, uma possibilidade dada a priori da forma de sua

representação. (JUNG, [2007(1931)], p.155)

Neste caso, os arquétipos, sendo campos de organização psíquica potenciais em sua natureza, vão ganhando imagens e representações somente ao longo do desenvolvimento da psique individual.

4. Como entidade metafísica eterna. Como tal, o arquétipo seria independente das limitações do espaço e do tempo, e sua compreensão estaria além das possibilidades da psicologia: “Saber se a estrutura anímica e seus elementos, isto é, os arquétipos tiveram uma origem de algum modo, é uma questão metafísica e não comporta, por isso, uma resposta.” (JUNG, [2007(1938)], p.187).

Em tal contexto e buscando esclarecimento, o conceito de arquétipo e seus conteúdos vêm ganhando atenção atualmente. Knox (2003), discutindo modelos de desenvolvimento e tentando compreender o comportamento arquetípico humano, considera que os genes atuem como catalisadores, transmitindo componentes inatos tão simples como tendências a perceber o ambiente ou a se comportar conforme determinados padrões, sendo altamente interativos com o mundo. Na relação com os estímulos desencadeiam-se os potenciais arquetípicos, transformando tais potências em experiências individuais particulares. Discutindo o componente inato de um padrão perceptivo arquetípico, ela afirma que:

É importante apontar que não se trata de que o próprio padrão esquematizado esteja guardado enquanto informação no gene, mas que o algoritmo para focar atenção num padrão particular de informação seja ativado por certos estímulos altamente específicos.[...] O exemplo óbvio de um processo similar nos humanos é a atenção que a criança presta e o reconhecimento do padrão básico da face humana, desde as primeiras semanas de vida. A criança humana não tem um modelo da face humana guardado nos seus genes, mas tem instruções genéticas (algoritmos) para prestar atenção particular a qualquer padrão semelhante a uma face que apareça em seu campo visual, e esta é a única informação inata necessária. (KNOX, 2003, p. 49-50)

Assim, a noção de arquétipo materno poderia ser interpretada, em sua primeira expressão, como uma tendência arquetípica para reconhecer e buscar o acolhimento. “A experiência da criança de sua mãe enquanto continente físico e psíquico seria uma extensão metafórica do seu esquema de imagens, ou do arquétipo enquanto tal.” (KNOX, 2003, p. 67). O reconhecimento da mãe está ligado à sobrevivência do indivíduo e da espécie, segundo os estudiosos que pesquisam a respeito da

intersubjetividade, ou da necessidade, que se manifesta em capacidade, pré-determinada do ser humano de se comunicar com outro indivíduo da mesma espécie, para que o desenvolvimento psicológico possa ocorrer de forma adequada. Os sistemas de apego, inatos, motivam a criança a buscar estar próximo de seus cuidadores e a estabelecer com eles uma comunicação. Tal capacidade de relacionamento não somente aumenta a chance de sobrevivência do bebê, mas permite que “no que diz respeito à mente, o apego estabeleça um relacionamento interpessoal que ajuda o cérebro imaturo usar as funções maduras de seus pais para organizar seus próprios processos.” (SIEGEL, 1999, p. 67). As experiências repetidas de desorganização e apaziguamento, durante o primeiro ano de vida do bebê, são codificadas como memórias implícitas, inacessíveis à consciência, pois que precedem ao estabelecimento desta. O que é geneticamente determinado é um padrão de percepção e de comportamento muito simples, e a partir de sua ativação as experiências repetitivas, organizadas em torno deste campo, vão fornecendo as imagens que povoam o campo afetivo do indivíduo em desenvolvimento. As primeiras estruturas psíquicas, ou esquemas de imagens, ofereceriam, segundo a autora, um modelo contemporâneo para os arquétipos, no sentido de que eles organizam a experiência, enquanto permanecem, em si mesmos, sem conteúdo. Toda criança tem as mesmas tendências a interagir com o mundo a partir dos mesmos padrões muito simples. Desta interação típica constelam-se as imagens e as representações pessoais.

As primeiras representações nunca se tornam conscientes, porque existem em forma de procedimentos ou esquemas, modelos mentais funcionais que vão se ampliando para incluir não apenas as imagens referentes às experiências concretas, mas também as abstratas, metafóricas e simbólicas. Tal desenvolvimento acontece no relacionamento da psique em formação da criança, com suas tendências, e o espaço intersubjetivo no qual esta se insere, ou seja, no relacionamento consciente e

inconsciente entre psiques. O primeiro passo no caminho do desenvolvimento, do processo pelo qual o cérebro constantemente escolhe e classifica as informações percebidas em categorias conceituais significativas, é a formação de esquemas de imagens. “Estes seriam as formas de representação mais primitivas, na medida em que são estruturas conceituais mapeadas a partir de estruturas espaciais” (p. 56). Neste primeiro nível, tais representações estariam em forma de procedimentos de análise e resposta a estímulos, registradas na memória implícita e fora da possibilidade de tornarem-se conscientes, assim como as representações do estágio seguinte, já conceituais, que são registros de temas gerais apreendidos. Somente as representações mais tardias se tornam acessíveis à consciência, ou ao relato verbal. No começo, a atenção da criança está focada em antecipar eventos externos a partir de suas primeiras representações, e, em seguida, torna-se focada em mudanças nas recém formadas representações, de modo que estas possam, eventualmente, ao longo do desenvolvimento, tornarem-se conscientes e passíveis de expressão através de imagens ou linguagem.

Tal processo é semelhante ao descrito por Fordham(1994), segundo o qual a deintegração e a reintegração descrevem um estado flutuante de aprendizagem, no qual o Self da criança se deintegra para as novas experiências, depois reintegradas no processo de consolidação das novas aquisições. Segundo a proposição de Knox, os esquemas de imagens subjazem a toda possibilidade de compreensão típica do ser humano, primeiramente dos objetos e eventos, mas incluindo depois níveis cada vez mais abstratos e metafórico das experiências. Os esquemas seriam as estruturas mentais por trás de nossa experiência de uma ordem perceptível no mundo, tanto físico quanto no campo da imaginação e da metáfora. Os esquemas mentais ofereceriam, portanto, uma descrição do desenvolvimento compatível com os conceitos de arquétipo enquanto

tal, e imagem arquetípica: “Enquanto os esquemas são, em si mesmos, sem conteúdo, eles provêm um contexto no qual o conteúdo significativo pode ser organizado e construído, suprindo assim a necessidade de um modelo que diferencie o arquétipo- enquanto-tal da imagem arquetípica.” (p. 64). O aspecto arquetípico de qualquer experiência, segundo Knox, basear-se-ia no padrão de relacionamento entre psiques, padrão este que poderia ser rastreado até aos esquemas mentais subjacentes. Utilizando o conceito de arquétipo, já definido e sedimentado na Psicologia Analítica, estamos aqui nos referindo ao seu sentido específico de esquema de imagem, e à sua função como auto-organizador do desenvolvimento, “o processo ou padrão emergente de relacionamento que provê significado para a percepção da criança do mundo físico e das relações humanas.” (p. 68).

Já em 1946, Jung discutia a intersubjetividade como necessária para o desenvolvimento da psique, quando coloca que um indivíduo jamais é completo sem a relação com outro ser humano:

O ser humano que não se liga a outro não tem totalidade, pois esta só é alcançada pela alma, e esta, por sua vez, não pode existir sem o seu outro lado, que sempre se encontra no “Tu”. A totalidade consiste em uma combinação do eu e do tu, ambos se manifestando como partes de uma unidade transcendente, cuja natureza só pode ser apreendida simbolicamente, como, por exemplo, pelo símbolo do redondo, da rosa, da roda ou da conjunção do sol e da lua. (JUNG, [1999(1946)], p. 454)

A criança nasce, então, em estado precário do ponto de vista da possibilidade de sobrevivência, precisando encontrar em seu ambiente um interlocutor da mesma espécie que a contenha, cuide, e com ela estabeleça um relacionamento de apego significativo, sem o que não consegue sequer sobreviver. Passamos a vida em busca de interlocução,

de alguém que, como na infância, dê significado à nossa existência. No começo este interlocutor é a mãe ou seu substituto. Segundo Neumann (1991), a relação que se estabelece com a mãe ou com o materno prefigura a relação que a criança vai estabelecer com seu ambiente, com a sociedade, com Deus, configurando a relação ego- Self, o provedor final do significado.

Enquanto mãe e filho ainda formam uma identidade indiferenciada, a relação primal funciona para a criança como possibilidade de relacionamento com seu próprio corpo, com seu Self, com o “tu” e com o mundo, tudo ao mesmo tempo. (NEUMANN, 1991, p. 25)

Embora Neumann acreditasse que mãe e filho formavam uma unidade indiferenciada, atualmente se acredita que, embora vivendo em simbiose, trata-se de duas psiques constituindo-se e relacionando-se desde o princípio. O período de infância ou de dependência da criança humana é muito grande em relação à infância das outras espécies, facilitando assim que a cultura seja transmitida transgeracionalmente, pelo longo tempo de convivência. O ser humano está sempre e necessariamente inserido num contexto social e intersubjetivo, e o desenvolvimento psicológico depende da complexa relação que se estabelece entre a criança e seus cuidadores, e com seu ambiente, a partir do qual objetos externos vão sendo internalizados e transformados pela ação da criança, processo este sempre modulado por tendências arquetipicamente determinadas naquele indivíduo que se desenvolve.

2. A imagem de Deus dentro dos ciclos arquetípicos do desenvolvimento simbólico