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Devido processo legal substantivo

CAPÍTULO II - DEVIDO PROCESSO LEGAL – DEVIDO PROCESSO PENAL

2.2 Devido Processo Legal Processual e Substantivo

2.2.3 Devido processo legal substantivo

Uma vez recepcionado o common law pelas colônias inglesas na América, o devido processo legal foi ganhando uma conotação menos no sentido processual (embora nunca tenha deixado de ser assim) e mais no sentido de racionalidade e proporcionalidade na elaboração das leis, bem como no que se refere à atuação da administração pública, todos com o mesmo propósito de garantir os cidadãos contra o Estado. No sentido material do devido processo é ele antes preventivo, uma vez que no sentido processual, geralmente é chamado a corrigir alguma irregularidade havida no decorrer do processo. 185

Historicamente, isto tem razão de ser. Na Inglaterra prevalecia o pensamento de Locke, acerca da supremacia do Poder Legislativo sobre os demais poderes públicos, com um governo monárquico calcado em privilégios para os aristocratas, situação esta mantida, inclusive, após a instituição do Parlamento. Já na América do Norte, o Poder Legislativo era visto com ressalvas, o que acabou por garantir ao Poder Judiciário um poder maior em controlar os atos deste emanados.

Neste sentido, tem-se a famosa disputa entre sir Edward Coke e Blackstone, evidenciada no Dr. Bonham’s case (1610). Conforme ressaltado por Castro, nos séculos XVI e XVII, sir Edward Coke esforçou-se para estender o predomínio das Cortes de common law186 sobre os Tribunais da Coroa investidos da jurisdição de equidade

185 MEDEIROS, op. cit., p. 122.

186 Sir Edward Coke atuou como Chief Justice da Corte de Common Pleas esforçando-se para diminuir os poderes da Coroa em favor do common law. Anteriormente aos séculos XV e XVI, ao lado do common law existia um outro conjunto de regras jurídicas, as de equity, aplicadas pelas jurisdições do Chanceler, conseguindo resistir a esta e até mesmo dominá-la no século XVII. O common law foi ficando cada vez mais

(chancery), a fim de que os primeiros pudessem controlar os atos do Legislativo, sendo certo que prevaleceu a tese da supremacia do Parlamento, conforme teorizações de Blackstone, que afirmou que verdadeiro é o que o Parlamento diz, sem que nenhuma autoridade sobre a terra possa desfazer. 187

Este caso referia-se ao exercício regular da profissão de médico, culminando com a multa imposta pela Academia Real de Medicina ao Dr. Bonham, parte desta para o Colégio dos Médicos e parte para o rei, sob pena de prisão, segundo estatuto de elaboração parlamentar. A própria Academia tinha competência para julgar, impor a multa e determinar o aprisionamento. Enquanto foi magistrado do King’s Bench, Coke sentenciou a favor do Dr. Bonham, dispondo que:

Os censores não podem ser juízes, ministros e partes; juízes para proferir sentença e julgar; ministros para fazer notificações ou intimações e parte para terem metade das multas, quia aliquis non debet esse judex in propria causa, imo iniquum est alequem suae rei esse judicem; e ninguém pode ser juiz e advogado para qualquer das partes... e consta dos nossos livros que, em muitos casos, o direito comum controlará atos do parlamento, e, às vezes, julgá-los-á absolutamente nulos, pois quando um ato do parlamento vai de encontro ao direito comum e à razão, ou é inaceitável ou impossível de executar, o direito comum irá controlá-lo e julgá-lo como nulo. 188

preso ao quadro dos writs, não sendo capaz de dar solução a todos os casos que se apresentavam. Os juízes dos tribunais do common law, mesmo nomeados pelos reis, alcançaram certa independência. A idéia de recorrer diretamente ao rei e ao seu chanceler fez nascer uma nova jurisdição e um novo processo, onde a decisão cabia ao chanceler, que decidia em eqüidade sem considerar as regras do processo, bem como o common law. Enquanto no common law o processo era oral e público, na chancelaria era ele escrito, secreto e inquisitório, adotando o Direito Romano. Estas decisões foram se ampliando, tendendo ao absolutismo, em detrimento das jurisdições do common law. Os common lawyers contaram com o apoio do Parlamento contra o absolutismo. V. Gilissen, op. cit., p. 207 e ss.

187 “True it is that what the Parliament does, no autority upon earth can undo”. (tradução livre).

188 CASTRO, op. cit., pp. 15-16. “The censors cannot be judges, ministers and parties; judges to give sentence of judgment; ministers to make summons, and parties to have the moiety of the forfeiture, quia aliquis non debet esse judex in propria causa, imo iniquum est alequem suae rei esse judicem; and one cannot be judge and attorney for any of the parties…AND IT APPEARS IN OUR BOOKS, THAT IN MANY CASES THE COMMON LAW WILL CONTROL ACTS OF PARLIAMENT AND SOMETIMES ADJUDGE THEM TO BE UTTERLY VOID, for when an act of Parliament is against common right and reason, or repugnant or impossible to be performed. THE COMMON LAW WILL CONTROL IT, AND ADJUDGE SUCH ACT TO BE VOID”. V. também MARTEL, Letícia de Campos Velho. Devido processo legal substantivo: razão abstrata, função e características de aplicabilidade – a linha decisória da Suprema Corte Estadunidense.

Entretanto, a decisão de Coke chegou à América, lá despertando o desejo de se ter o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, bem como a razoabilidade e racionalidade dos atos do Legislativo.

Esta amplitude alcançada pelo princípio fica bem esclarecida a partir do comentário do juiz Felix Frankfurter, da Suprema Corte dos Estados Unidos, que observa:

Due process não pode ser aprisionado dentro dos traiçoeiros lindes de uma fórmula ... ‘due process’ é produto da história, da razão, do fluxo das decisões passadas e da inabalável confiança na força da fé democrática que professamos. ‘Due process’ não é um instrumento mecânico. Não é um padrão. É um processo. É um delicado processo de adaptação que inevitavelmente envolve o exercício do julgamento por aqueles a quem a Constituição confiou o desdobramento desse processo. 189

Outras decisões ocorreram no mesmo sentido, argüindo-se a inconstitucionalidade de uma lei estadual, como nos Slaughter-House Cases, bem como no caso Munn v. Illinois190, inaugurando a era do “governo dos juízes”.

Castro descreve bem esta nova era:

O abandono da visão estritamente processualista da cogitada garantia constitucionalista (procedural due process) e o início da fase ‘substantiva’ na evolução desse instituto (substantive due process) retrata a entrada em cena de Judiciário como árbitro autorizado e final das relações do governo com a sociedade civil, revelando o seu papel de protagonista e igualmente ‘substantivo’no seio das instituições governativas. A dialética do poder e as metafísicas questões do direito público encontram, enfim, no plano institucional, a autoridade dotada de prerrogativa decisória (do final enforcing power) e revestida dos predicados de intérprete derradeiro do sentido da Constituição: o Poder Judiciário. 191

189 CASTRO, op. cit., p. 48. Ressalta ele que essa opinião constou do voto de Frankfurter no caso Anti-Facist Commitee v. Mc Grath, 341 U.S. 123 (1951).

190 Syllabus – SUPREME COURT OF THE UNITED STATES - 94 U.S. 113 - Munn v. Illinois - ERRORTOTHESUPREMECOURTOFTHESTATEOFILLINOIS;Syllabus - SUPREME COURT OF THE UNITED STATES - 83 U.S.36 - Slaughterhouse Cases [*] - ERRORTOTHESUPREMECOURTOF LOUISIANA.Disponível em:<http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics>. Acesso em 20.jun.06.

191 CASTRO, op. cit., p. 49

Osmar Medeiros ressalta que a partir dessa conquista norte-americana, o sentido material do devido processo passa a ser entendido, ou seja, a partir do momento em que o Poder Judiciário ganha força para rever os atos do Poder Legislativo. Acrescenta ele que tal conceito ampliou-se, alcançando maior interpretação em nome dos direitos fundamentais do cidadão. 192

Desta maneira, o devido processo, de garantia direta do cidadão contra o Estado, verificada através e durante o curso de um processo transcorrido de forma devida; passa a um meio fiscalizatório, nem sempre associado a um caso concreto, exercido pelo Judiciário, quando da elaboração das leis e da prática de atos do poder público no âmbito do Estado.193

Paulo Silveira compreende que o substantivo devido processo legal se traduz num

“plus” em relação do judicial review, de que se utiliza o Poder Judiciário para resguardar sua independência como poder político e também proteger o indivíduo eficazmente, em suas garantias constitucionais básicas, contra a inclusão e a opressão do Estado, seja através de leis ou atos administrativos. 194

Para tanto, requer-se que a lei seja elaborada observando-se a razoabilidade e a racionalidade, para que esteja em conformidade com o due process of law. Corroborando seu entendimento, Medeiros cita a análise feita por Corwin e Peltason acerca da Constituição norte-americana: “O sentido substantivo do devido processo, que se tornou importante na Suprema Corte dos Estados Unidos por volta de 1890, requer que a Corte

192 MEDEIROS, op. cit., p. 126.

193 Idem, p. 127.

194 SILVEIRA, op. cit., pp. 244-245.

seja convencida de que a lei – não meramente o procedimento pelo qual a lei deve ser aplicada, mas, que fique claro – é eqüitativa, razoável e justa.” 195

No Direito brasileiro, o sentido material do devido processo é explicitado no artigo 37 da Constituição da República, in verbis: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, (...)”; evidenciando um nítido exemplo do devido processo legal material, invocado em favor da sociedade, impondo aos órgãos representantes dos entes e componentes da Federação limites na atuação e gestão da coisa pública, de forma preventiva, mesmo na ausência de um caso concreto. 196

Também passível de fiscalização pelo Poder Judiciário, outro exemplo se evidencia no artigo 68 e incisos, da Carta Política, com a delegação legislativa ao Executivo, em casos específicos, com limites estabelecidos, a serem fiscalizados pelo Congresso.

Ruitemberg Nunes Pereira completa: “A grande contribuição do debate hermenêutico que circunda a evolução do princípio do devido processo legal substantivo, no Direito Estadunidense, foi, sem sombras de dúvidas, a proposta teórica em torno de uma abertura da Constituição, voltada para o reconhecimento dos princípios e valores materiais que orientam o Estado e seu ordenamento jurídico como um todo.” 197

195 CORWIN, Eduard S., e PELTASON, Jack W. Understanding the Constitution. Third edition. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1966, p. 132 apud MEDEIROS, op.cit..,p. 127 – Tradução livre:

“Substantive due process, which began to be important in the United States’ Supreme Court about 1890, requires that the Court be convinced that the law – not merely the procedures by which the law would be enforced, but its very purpose – is fair, reasonable, and jus.t”

196 Idem, pp. 127-128.

197 PEREIRA, op. cit., p. 238.

O devido processo legal, em sua dimensão material, representa a busca pelo ideal de justiça, propiciado pela abertura constitucional, com a conseqüente observação dos princípios e valores. A mencionada abertura tem sido denominada como “processualização das normas constitucionais ou constituição como processo aberto”, sendo certo que

“processo”, aqui, está associado à capacidade de mobilidade constitucional e de adaptabilidade das normas constituintes à realidade. 198