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3. DEFINIÇÃO DE CONSUMIDOR

3.3. CDC e o Novo Código Civil

3.3.3. Diálogo das fontes entre CDC e Código Civil

Durante muito tempo acreditou-se que duas leis não poderiam tratar de uma mesma matéria sem que fosse instaurado um conflito de normas. Os critérios já conhecidos de solução de conflito de leis no tempo (anterioridade, especialidade e hierarquia) tinham por objetivo identificar a lei a ser aplicada, com a conseqüente revogação daquela não aplicada.

Atualmente, contudo, a doutrina está muito mais preocupada com a harmonia e coordenação entre as normas do ordenamento jurídico (concebido como sistema), do que com a exclusão de uma delas116. Tal mecanismo, como explica CLÁUDIA LIMA MARQUES,

ficou conhecido pela expressão de ERIK JAYME “diálogo das fontes”. “Diálogo”, porque há

a aplicação conjunta de duas ou mais normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementariamente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato, conforme se verá a seguir117.

O surgimento de “conflito” entre o Código Civil e o CDC, em tese, foi agravado após o advento do Código Civil em 2002, o qual unificou o direito comercial e o civil e passou a regular diversos contratos que também podem ser considerados de consumo. Um mesmo contrato, regulado em abstrato, pode ser civil, empresarial ou de consumo. A lei a ser aplicada, portanto, dependerá não somente do tipo de relação (seguro, serviço, compra e venda), mas também dos atores presentes. Se o contrato for entre iguais (entre dois consumidores, entre dois civis, entre dois empresários etc.), deverá ser regulado prioritariamente pelo Código Civil. Se o contrato for entre um consumidor e um fornecedor ou empresário, porém, será regulado pelo CDC e apenas subsidiariamente pelo Código Civil118.

Em alguns casos, não obstante, a determinação de qual diploma deverá ser aplicado não é tão óbvia. Em tais situações, seguindo-se o sistema antigo, teríamos que analisar os critérios de conflito de leis no tempo. Nesse sentido, é possível afirmar que o CDC é lei anterior, especial e hierarquicamente constitucional, já que há mandamento expresso sobre

116Cf. MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil:

do “diálogo das fontes” no combate às cláusulas abusivas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 45, p. 72, jan./mar. 2003.

117Cf. Id. Ibid., p. 74. 118Cf. Id. Ibid., p. 80-81.

a sua criação no art. 48 do ADCT da Constituição Federal de 1988. Já o Código Civil de 2002 é lei posterior, geral e hierarquicamente inferior, embora traga algumas normas de ordem pública também, que devem ser aplicadas a todos os contratos, novos e antigos.

A revogação de um ou outro diploma, porém, não é o caminho mais coerente a ser seguido. Como visto, nos tempos atuais, presencia-se uma fase em que se deve buscar sempre a coordenação entre as diferentes fontes legislativas.

CLÁUDIA LIMA MARQUES aponta a existência de três tipos de diálogo entre esses

dois diplomas legais119, a saber: (i) diálogo sistemático de coerência; (ii) diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade; e (iii) diálogo de coordenação e adaptação sistemática.

O primeiro deles ocorre quando, na aplicação simultânea de duas leis, uma delas serve como base conceitual para a outra. Tal se verifica especialmente nos casos em que uma das leis é geral e a outra especial, aplicável somente a um grupo da sociedade. A aplicação da lei especial prevalecerá no caso concreto, mas, para sua plena eficácia, deverá se valer de conceitos que estejam definidos na lei geral. O CDC, por exemplo, traz praticamente toda a disciplina a ser aplicada às relações de consumo, mas as definições de conceitos como prova, decadência e prescrição encontram-se no Código Civil.

O segundo tipo de diálogo pode ser verificado sempre que, na solução de antinomias reais ou aparentes120, uma lei puder ser aplicada de modo subsidiário ou complementar a um caso regulado por outra lei. Imagine-se, por exemplo, uma situação em que, embora se tratando de relação de consumo, as normas do Código Civil sejam mais benéficas ao consumidor do que as próprias normas do microssistema consumerista. Em tal hipótese, caberá ao legislador ou ao juiz, no caso concreto, determinar qual norma será aplicada e qual será utilizada somente de forma subsidiária ou complementar à outra121.

Por fim, o último caso de diálogo é encontrado sempre que se torna necessária a redefinição do campo de aplicação de uma lei. O próprio conceito de consumidor

119Cf. MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil:

do “diálogo das fontes” no combate às cláusulas abusivas, cit., p. 76-82; e Id. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, cit., p. 57-61.

120Antinomia aparente é aquela que pode ser facilmente solucionada pela aplicação de um dos metacritérios

de solução de conflito de leis (critérios cronológico, da especialidade e hierárquico). Já a antinomia real é aquela em que não há um metacritério capaz de solucionar o conflito de leis, ao menos de forma inicial (um exemplo é o conflito entre norma geral superior e norma especial inferior).

121O próprio artigo 7º do CDC autoriza o juiz, no caso concreto, a fazer uso do princípio do favor debilis,

equiparado, presente no CDC, está sujeito a um diálogo de influências recíprocas sistemáticas, já que pode sofrer influências finalísticas do Código Civil de 2002.

A possibilidade de aplicação conjunta e sistemática do CDC e do Código Civil em nosso ordenamento não é de espantar. Ambos os diplomas trazem intrínseca a mesma base principiológica122. Aliás, o Código Civil de 2002 veio positivar, nas relações entre iguais, diversos princípios que antes só estavam previstos expressamente no CDC, como é o caso da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e da onerosidade excessiva, dentre outros123.

A relação do CDC com o Código Civil, de cooperação e diálogo sem submissão, nas palavras de CLÁUDIA LIMA MARQUES, é sui generis, diferindo da sistemática de

diversos ordenamentos romano-germânicos124.

A França, por exemplo, organizou um Código de Consumo (Code de la Consommation), consolidando, em um só instrumento, todas as leis internas e diretivas especiais de defesa do consumidor125. Tal organização gira em torno do consumo e mercado de consumo, com todas as suas implicações, não tendo por base o consumidor (o critério não é subjetivo, como no direito brasileiro).

O modelo italiano, por sua vez, que também unificou o tratamento das obrigações civis e comerciais no Codice Civile, modificou pontualmente a parte especial de seu código para incluir a proteção do consumidor nas normas contratuais, num novo capítulo intitulado Dei contratti del consumatore. Tal alteração teve por objetivo atender a Diretiva 93/13/CEE, de 5 de abril de 1993.

Ao contrário do modelo brasileiro, a Itália optou por adotar um único código, dentro do qual se encontram algumas normas especiais para consumidores. Todavia, não é

122Ambos os diplomas legais possuem a mesma terminologia e a mesma visão renovada da teoria contratual,

permitindo a intervenção do Estado no conteúdo dos contratos, a visão da totalidade da obrigação, os deveres de boa-fé e a função social do contrato. É por esse motivo que não haverá entre eles antinomias de princípios, mas somente de normas ou antinomias aparentes (Cf. COSTA, Maria Aracy Menezes da. Os novos poderes/direitos oriundos do contrato no Código Civil de 2002 e no Código de Defesa do Consumidor: vontade das partes. In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord). A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007. p. 236 e 245).

123O Enunciado 167 do Conselho da Justiça Federal esclarece que, com o advento de Código Civil de 2002,

houve forte aproximação principiológica entre esse código e o CDC, eis que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos, baseada em dois princípios, a saber: a função social e a boa-fé objetiva.

124Cf. MARQUES, Cláudia Lima. A Lei 8.078/90 e os direitos básicos do consumidor, cit., p. 52; e Id.

Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, cit., p. 34 et seq.

125Cf. Id. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o

possível afirmar que há uma codificação das normas consumeristas no sistema italiano, uma vez que, muito embora boa parte delas encontre-se no Codice Civile, há diversas outras esparsas no ordenamento, que também regulam de forma especial essa mesma categoria de sujeitos do mercado126.

Finalmente, a Alemanha adotou um modelo diferente e sistematizador, reintroduzindo todas as normas especiais, e até mesmo cláusulas gerais especiais, de defesa do consumidor em seu famoso BGB. O HGB (Código Comercial alemão), por outro lado, restou intacto. As relações de consumo, portanto, integram, hoje, o direito civil geral na Alemanha127.

O modelo brasileiro traz dois códigos separados e autônomos (semelhante ao modelo francês), estabelece normas e cláusulas gerais especiais e mais fortes para a proteção do consumidor, sujeito presumidamente vulnerável (semelhante ao modelo alemão), e unifica as obrigações civis e empresariais, definindo o que entende por empresário (semelhante ao modelo italiano). Por outro lado, instituiu maior hierarquia à lei especial mais antiga – o CDC – ao invés do Código Civil (diferente do modelo italiano), e não incorporou a figura do consumidor no Código Civil (diferente do modelo alemão), tampouco a dos contratos de consumo (diferente do modelo italiano). Finalmente, por imposição constitucional, o microsistema consumerista tem por objetivo primordial a defesa do consumidor, e não do mercado (diferente do modelo francês)128.

126Cf. MARQUES, Cláudia Lima. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de

coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, cit., p. 42-43.

127Cf. Id. Ibid., p. 45-47. 128Cf. Id. Ibid., p. 66-67.