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Tratamos da reponsabilidade ética do pesquisador, do ato de criação envolvido em todo ato de pesquisa, do cronotopo do campo e das relações que nele se estabelecem ao longo do nosso estudo. Discutimos, no capítulo sobre a vivência do método e no início deste capítulo a questão da participação da voz do pesquisador na pesquisa: o campo só existe mediante as relações alteritárias que nele se estabelecem.

É a presença da pesquisadora, no campo, que faz com que o fenômeno desta tese seja o que é. É impossível conceber esse fenômeno fora da arquitetônica da relação dos participantes com a pesquisadora em campo. Dito isto, neste cronotopo, selecionamos alguns dos movimentos discursivos dos participantes direcionados diretamente à figura da pesquisadora que marcam essa consciência do olhar externo na palavra dita.

É importante ressaltar que, com esta seleção, não estamos restringindo a consciência da presença de um outro que analisa, por parte dos participantes, a esses momentos de interação direta com a pesquisa. Lembrando Amorim (2004), “a presença do pesquisador é concebida como uma intervenção” (AMORIM, 2004, p. 277) e, portanto, as ações se dão na dinâmica dessa relação entre pesquisadora e participantes no período de um ano.

Também é preciso dizer que muitas outros diálogos ocorreram entre pesquisadora e participantes, sobretudo em momentos não registrados por vídeo, como momentos de chegada, acomodação e despedida. Esses diálogos me fizeram perceber que, em um ano, sentíamo-nos cada vez mais confiantes e à vontade na presença um do outro, o que permitiu, na minha avaliação, alguns dos diálogos registrados a seguir.

6.4.1 Demonstrando preocupação com a compreensão da pesquisadora

No dia 16 de março de 2018, o encontro entre Caio e Eva (grupo 1) ocorreu em um espaço diferente de todos os outros. A sala na qual os grupos costumavam se reunir estava ocupada em horário de almoço e, então, Caio sugeriu que nos

encaminhássemos para a Sala dos Professores. Chegando lá, havia bastante movimento e circulação de pessoas, mas o encontro foi arranjado mesmo assim. A câmera foi posicionada bem próxima aos participantes na tentativa de excluir da imagem as pessoas que passavam no momento.

Durante a reunião, Caio e Eva precisaram também falar mais baixo e deram andamento à avaliação do relatório parcial, como era a proposta da reunião. Percebi um olhar de estranhamento das pessoas que estavam na sala, provavelmente funcionários do Instituto, à presença de uma pessoa portando uma câmera filmadora. Mesmo assim, os grupos continuaram o que estavam fazendo, conversando em tom alto, sem questionar. Nesse contexto, em um momento específico do diálogo entre Caio e Eva, Caio se dirige diretamente à pesquisadora:

Quadro 22 – Encontro 4– Grupo 1

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Caio: Eu espero que tu consiga escutar isso depois, visse? Porque ele ali acho que tá falando mais alto que eu aqui...

(...)

Caio: Pessoal, isso aqui é só um trabalho de doutorado, viu? Não vai ser divulgado em lugar nenhum, não

Thaís: É, eu não vou divulgar a fala de ninguém.

Caio orienta seu discurso diretamente à pesquisadora, o que faz com que o fato de estarem sendo filmados seja posto em evidência: “Eu espero que tu consiga escutar isso depois, visse? Porque ele ali acho que tá falando mais alto que eu aqui” (linhas 1 e 2). Ao mesmo tempo, ele parece demonstrar uma preocupação com o que está sendo gravado, o que avaliei como um acolhimento a minha presença e um compromisso com sua participação e seu papel de participante.

Em seguida, Caio se dirige às pessoas da sala como forma de justificar minha presença com um aparato que causou estranhamento: “Pessoal, isso aqui é só um trabalho de doutorado, viu? Não vai ser divulgado em lugar nenhum, não” (linhas 4 e 5). Com isto, Caio parece assumir a responsabilidade sobre a presença da pesquisadora, que é um ente externo à instituição, e sobre o compromisso ético assumido acerca do sigilo de identidade e de divulgação, o que é retificado pela pesquisadora (linha 6). As pessoas presentes na sala não responderam e continuaram o que estavam fazendo, o que interpretei como uma certa indiferença à

nossa presença, tendo em vista o fato de não terem se preocupado com o volume de suas vozes e de ignorarem o discurso de Caio.

6.4.2 Chamando a atenção da pesquisadora para a discussão de uma temática

No dia 23 de maio de 2018, no sexto encontro do grupo 1, Caio se posiciona com relação à ocorrência de uma notícia específica que, apesar de não se encaixar nas categorias que Eva tinha estabelecido, até então, revela uma ocorrência com ar de novidade para a sociedade da época.

Quadro 23 – Encontro 6 – Grupo 1

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Caio: Mas essa aqui eu achei fantástica, arranja um jeito de colocar, Eva? Eva: Qual?

Caio: Não aqui (apontando para a tabela em andamento)... Esse lockout. Eva: ah, sim, sim...

Caio: Sabe por quê? Olha que coisa interessante! Thaís, escuta isso... Thaís: tou ouvindo tudo..

Caio: Proprietário de empresas de motoristas, não, proprietário de pequenas empresas de ônibus aqui em Recife, eles fizeram greve para aumentar a passagem em 30

cruzeiros. Olha o que eles fizeram, os proprietários, mandaram esvaziar os pneus dos próprios carros como mecanismo de pressão. Isso aqui é fantástico, sabe Eva? Porque, por exemplo, e se fossem os trabalhadores?

Eva: É...

Caio: que tivessem entrando em greve por aumento de salário, será que eles iam permitir furar pneu?

Eva: Exatamente. E nem conseguir os objetivos.

Caio avalia a notícia positivamente (“mas essa aqui eu achei fantástica”- linha 1) e demonstra interesse de que Eva aborde essa ocorrência de “greve” diferente, por se tratar de um lockout (linha3): “arranja um jeito de colocar, Eva?”(linha 1). É no contexto de surpresa por se deparar com um tipo de discurso que foge à regularidade dos discursos sobre greves nos jornais que Caio se dirige a esta pesquisadora: “Olha que coisa interessante! Thaís, escuta isso...” (linha 4).

Interpreto esse gesto de Caio como um convite a participar da reflexão que ele desenvolveu na sequência. Nesse sentido, avalio que, para Caio, o olhar externo da pesquisadora não é também estático ou mudo, mas é um olhar com o qual ele deliberadamente dialoga. O convite à participação também adquire um sentido diferente considerando que, no mesmo dia do encontro, iniciava-se, no Brasil, uma

greve de caminhoneiros cuja participação dos proprietários dos ônibus era especulada. Nesse sentido, considero que fui, deliberadamente e marcadamente, assimilada ao discurso de Caio, como um centro valorativo, como uma pessoa que participa e partilha de uma comunidade temporal comum.

A atenção especial de Caio à noticia do lockout abre caminho para múltiplos sentidos na compreensão dos confrontos entre passado e presente, entre trabalhadores e empresários: “Isso aqui é fantástico, sabe Eva? Porque, por exemplo, e se fossem os trabalhadores?” (linhas 10 e 11). A luta de vozes sociais e a ressignificação de uma notícia de um tempo diferente, que se assemelha com a notícia do presente, é posta em análise por Caio. Essa tarefa parece inserir-se na compreensão, a partir do excedente de visão de quem cria a narrativa de pesquisa, das transformações (mudanças ou continuidades) de uma determinada comunidade.