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DIÁRIO DE APRENDIZAGEM: DESPISTE DE VIOLÊNCIA NA PESSOA IDOSA COM DEMÊNCIA

Diário de aprendizagem: Despiste de violência na pessoa idosa com demência

Cuidar de pessoas idosas têm-se assumido, para mim, ao longo do ensino clínico, um desafio na medida que o meu modo de olhar sobre a pessoa idosa modificou-se. Olhar a pessoa idosa é percebê-la e enquadrá-la na história da sua vida, dar-lhe autonomia, capacidade de decisão ainda que em pequenos pormenores tão significantes para ela, entender a sua fragilidade e identificar fatores de vulnerabilidade. Só olhando desta forma para a pessoa idosa e não a despojando da sua dignidade e personalidade se pode intervir e cuidar de uma forma individualizada.

Se há pessoas idosas cognitivamente capazes, com poder de decisão, também há as que, por processo de doença ou idade possuem alterações na sua capacidade cognitiva. E sobretudo nestas pessoas reside alguma dificuldade na interação, na negociação e na identificação de situações de violência.

A D. Joana103 é uma senhora de 84 anos de idade, viúva que vive sozinha, numa habitação de rés-do-chão, com a sua cadela, que não se lembra o nome. Foi trazida ao Serviço de Urgência pela Polícia de Segurança Pública (PSP) por dor torácica, que negou à entrada do mesmo. Apresenta vários episódios de urgência semelhantes, com evidência de maus cuidados de higiene e fome, razão pela qual está referenciada na linha de emergência social. Tem uma filha e um neto que não

se assumem como cuidadores porque “a cabeça dela não está boa”. Há ainda uma

referência de violência por parte da filha em processo clínico, acrescentando-se que não deve ser contactada a filha (desconhece-se quem deu a informação - PSP?). Após investigação da assistente social, parece uma informação errada. Coloco as minhas interrogações. A família não compareceu para visitar a D. Joana. Aguarda encaminhamento social para institucionalização.

Aproximei-me da D. Joana, cumprimentei-a, perguntei se podia sentar-me ao seu lado, assentiu. Uma senhora com idade real coincidente com a idade aparente, uns olhos azuis bastante expressivos que condiziam com a sua simpatia e o seu sorriso, à medida que ia falando. Orientada na pessoa e no local, mas desorientada no tempo e na idade. Apresentava no seu discurso momentos em que se esquecia das

palavras ou das ideias, mas tinha essa perceção. Apenas referiu a filha porque perguntei diretamente se tinha filhos.

Após alguns momentos, perguntou-me se eu queria ir lá a casa conhecer a filha “ vai gostar muito dela e ela de si”. Sorri e disse que podíamos combinar essa visita. Perguntei “então e a sua filha ajuda-a lá em casa?”, ao que me respondeu “é muito boa para mim, vale muito”. Perante isto, senti-me “desarmada”, não tinha conseguido apurar a suspeita descrita em processo clínico ; porém, o estado de consciência não podia ser considerado fidedigno. E nesse momento, pensei mais uma vez nas dificuldades em identificar situações de violência, especialmente, em pessoas idosas mais vulneráveis.

Neste contacto com a D. Joana, observei que tinha maus cuidados de higiene, com odor significativo, a roupa encontrava-se suja bem como os sapatos que continham detritos de aves, pelo que, imensas moscas a rondavam. Iniciei então um processo de negociação com a cliente para os cuidados de higiene, que ela não assentiu. Mostrei-lhe a roupa suja na tentativa de elucidá-la, mas recusou sempre. Perante a situação e contra a sua vontade, levei-a ao duche. Vários sentimentos se tocavam: por um lado, a necessidade de cuidados de higiene; por outro, a minha incapacidade de negociação, prestar cuidados de higiene104 sem consentimento, sendo que a

cliente gritou praticamente todo o banho, dizendo “eu não quero isto, atiro-me para o chão, quero morrer”, ao qual ia falando com ela de modo a mostrar-lhe que ficava melhor. Após o banho foi hidratada, vestiu-se com roupa lavada que existe para estas situações. Quando se viu ao espelho do elevador, exclamou “esta sou eu!”. E

ficou calma e serena, sentada no cadeirão, dormitando. As pessoas referiam “nem

parece a mesma”. A verdade é que senti que, de algum modo lhe tinha devolvido a dignidade que me era permitida oferecer-lhe.

Refletindo nesta situação, identifico como fatores positivos a interação inicial que consegui estabelecer, a tentativa de negociação e a consciência de que era necessário prestar alguns cuidados. Quanto á identificação de violência tinha duas

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Segundo Melo (2005, p. 191), nas pessoas idosas com demência, a higiene é uma tarefa complexa pela sua execução e pela “frequência de estímulos difíceis de interpretação por parte do doente”; associada habitualmente a alterações do comportamento como agressividade e resistência, tornando a situação dolorosa para doente e cuidador. Existem vários aspetos a ter em conta: diminuição do desconforto pelo frio, barulho da água e manipulação rápida, os jatos fortes de água assustam pelo que deve-se iniciar o banho pelos pés na direção à cabeça.

possibilidades, apurar alguns elementos com a D. Joana e falar com a família. A primeira possibilidade foi infrutífera e a segunda impossível porque a família não quis saber da situação, referindo, em situações anteriores que tem de haver uma solução social. Tendo em conta estes aspetos, procurei na evidência algumas respostas.

Seria importante investigar a origem do descrito em diário clínico relativamente à situação de violência pela filha, na medida que, o risco de violência aumenta em pessoas idosas com demência105 (Williams, Sammut, & Blaxland, 2006, p. 567, cit. por Pisani e Walsh, 2012), em situações de sobrecarga do cuidador ou situações de stress (Buckwalter, Campbell, Gerdner, & Garand, 1996, cit. por Pisani e Walsh, 2012). Cooper, Selwood e Livingston (2009) corroboram com a ideia de que as pessoas idosas com demência encontram-se mais expostas a estas situações, pelo que deve ser realizado despiste de violência (Choi & Mayer, 2000, p. 9 cit. por Pisani e Walsh, 2012). Esta investigação e o despiste deve ser realizado de forma multidisciplinar (Lachs e Pillemer, 2004), na medida que a violência é multifatorial, pelo que o médico, assistente social e enfermeiro deveriam trabalhar em equipa. Nesta situação em particular, o enfermeiro responsável encaminhou para assistente social e o médico descreve em processo clínico: “caso social!”, ou seja, não se trabalham estas situações em equipa, sendo importante apostar nesta área, o que justifica o meu projeto.

Relativamente ao instrumento de rastreio mais adequado e segundo uma revisão sistemática da literatura realizada por Pisani e Walsh (2012) posso constatar que, para pessoas idosas com demência a forma mais eficaz de despiste é a realização de rastreio ao cuidadores, sendo o instrumento CASE (Caregiver Abuse Screen) o mais adequado, embora também tenha algumas limitações. O EAI (Elder

Assessment Instrument) é um instrumento usado em SU para avaliação clínica,

podendo ser útil. O que posso concluir? Em situações de pessoas idosas com demência interessa conhecer estes instrumentos para poder mobilizar o melhor que

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Existem critérios de demência do CID-10: (1) síndrome causada por doença cerebral, geralmente progressiva, afetando a memória e uma ou mais funções cognitivas superiores, como pensamento abstrato, orientação, compreensão, cálculo, aprendizagem, linguagem e juízo; (2) sem alteração do nível de consciência ou alerta; (3) em geral afetando o controlo emocional, comportamento social ou motivação; (4) em geral com interferência nas atividades de vida diária, dependendo do ambiente cultural e social do cliente.

têm para despistar situações de violência, sendo que o instrumento que adotei no projeto, QEEA (Questions to Elicit Elder Abuse) não responde a esta situação específica, na medida que é imperativo garantir a competência cognitiva da pessoa idosa. Saliento a importância de identificar os fatores de risco de acordo com o preconizado pela WHO (2011): ser do género feminino com mais de 74 anos de idade, dependência física e psicológica elevada, demência, mudança de comportamento, fraca relação com a filha, isolamento social e suporte social deficitário. Identificam-se também sinais de alerta: maus cuidados de higiene corporal e do vestuário, alterações cognitivas. E pela presença dos fatores de risco e dos sinais preconiza-se uma intervenção. De acordo com a pesquisa realizada, pela falta de autonomia e capacidade de tomar decisões e acrescendo a demissão da filha do papel de cuidadora, a intervenção mais adequada é a institucionalização, maximizando a segurança e dignidade humana.

Cuidar da pessoa idosa com demência, na minha perspetiva, assume um conhecimento mais aprofundado, pelo que realizei alguma pesquisa (selecionada por autores de referência) de modo a garantir cuidados de enfermagem baseados na evidência e nas necessidades reais dos clientes. Tendo em conta a manutenção da pessoa idosa com demência no domicílio, a avaliação deve ter em conta uma abordagem global baseada na reconstituição da sua história de vida; avaliação da capacidade funcional na realização das AVD´s (Índice de Barthel) de modo a “prestar toda a ajuda necessária, mas… apenas a ajuda necessária”; identificação de comportamentos; manutenção de hábitos para diminuir sensação de segurança ameaçada; avaliação do estado nutricional (Mini Nutritional Assessment) pela maior probabilidade de perda de peso; avaliação do ambiente com o intuito de desenvolver um ambiente capacitador pelo que o uso de cheklist de orientações por divisão é um instrumento importante; avaliação do cuidador (estado de saúde e capacidades de cuidador na prestação de cuidados).

Relativamente aos cuidados de higiene, alguns aspetos não tinha noção, nomeadamente a importância de começar pelos pés, colocar uma manápula no chuveiro para diminuir o jacto de água. Refleti também sobre a importância do corpo e o significado pessoal atribuído por cada cliente. E lembrei-me de um conceito proposto por Collière (1999, p. 264), “a sensitividade: procurar o que o outro

experimenta, o que sente, e tentar perceber, com mais clareza, o que nós próprios sentimos”. E foi uma sensação de grande desconforto pessoal e profissional sentir o que a D. Joana tinha sentido e perceber a causa do meu desconforto, não ter prestado cuidados de excelência.

Em suma, salienta-se que “profissionais bem informados sobre a demência, com capacidade de uma intervenção criativa e humana (…) são indispensáveis para prevenir e controlar a incapacidade e a dependência que caracterizam a pessoa que sofre de demência” (Melo, 2005, p. 197).

Bibliografia:

Collière, MF. (1999). Promover a vida. Sindicato dos Enfermeiros Portugueses. Lisboa: LIDEL

Cooper, C. et al (2009). The sensitivity and specificity of the Modified Conflict Tactic Scale for detecting clinically significant elder abuse. International Psychogeriatrics, 21

Lachs, M; Pillemer, K. (2004). Elder abuse. The Lancet. 364, 1263-1272

Melo, G. (2005). Apoio ao doente no domicílio pp. 183-198. In Castro-Caldas, A., Mendonça, A. A doença de Alzheimer e outras demências em Portugal. Lisboa: LIDEL Editora

Pisani, L., Walsh, C. (2012). Screening for elder abuse in hospitalized older adults with dementia. Journal of Elder Abuse&Neglect, 24 (3), 195-215

World Health Organization (2011), European report and preventing elder maltreatment.

Acedido em 3 de dezembro de 2011. Disponível em