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DIÁRIO DE APRENDIZAGEM: AVALIAÇÃO DA SOBRECARGA DO CUIDADOR

Diário de aprendizagem: Avaliação da sobrecarga do cuidador

Vou refletir sobre uma situação ocorrida em ensino clínico durante uma visita domiciliária, situação diferente da minha prática de cuidados, com base no Ciclo de Gibbs (1988, citado por Bulman, 1994).

A visita domiciliária é um momento de prestação de cuidados, na casa da pessoa, em que o enfermeiro é recebido pela necessidade de cuidados. Entrar na casa de outro que seja desconhecido, ou deixar entrar alguém em casa que não se conheça pode ser considerada uma barreira, uma intromissão, na medida que, quem visita a nossa casa habitualmente é quem nós bem conhecemos.

Durante a visita domiciliária98 à D. Eduarda99, uma senhora de 80 anos de idade, dependente em grau severo em todas as atividades de vida, pude constatar que a cuidadora era uma das filhas, a D. Manuela. A D. Manuela referiu abertamente cansaço perante a situação de cuidadora, na medida que a mãe exigia muitos cuidados e não dormia durante a noite, chamando-a, constantemente. Para além

disso, verbalizou a vontade que a mãe morresse, chamando-a de “empecilho, já cá

não anda a fazer nada, só a chatear-me a cabeça”. Inferi que havia violência verbal e que se tratava de uma situação de sobrecarga do cuidador, pelo que o uso da Entrevista de Zarit seria essencial para validar ou refutar este facto. Deste modo, planeei a aplicação do instrumento durante uma visita domiciliária. Para isso, fiz pesquisa sobre a escala, nomeadamente a sua finalidade, constituição, validação em Portugal e o significado dos resultados, de modo a ter maior domínio do assunto. A escala de sobrecarga do cuidador de Zarit é um instrumento que permite avaliar a sobrecarga objetiva e subjetiva do cuidador informal e que inclui informações sobre saúde, vida social, vida pessoal, situação financeira, situação emocional e tipo de relacionamento; é um instrumento fiável e com boas características psicométricas. Indicado para diagnóstico de risco de sobrecarga e sobrecarga do cuidador e avaliação de programas de intervenção em cuidadores (Sequeira, 2010).

Numa visita domiciliária, após o tratamento à D. Eduarda e após escutar os desabafos da D. Manuela relativamente à sua situação, disse que esta situação era

98 O objetivo dos cuidados de enfermagem no domicílio deveria ter como pano de fundo a conceção de Collière (2001, p. 335): “serve de base para a elaboração com o doente e sua família, de um projeto de cuidados individualizado”.

muito comum em pessoas que cuidam de idosos dependentes de tal modo que era motivo de realização de diversos estudos e de grande preocupação, pois estava em causa a saúde de quem cuida. Informei ainda que havia um questionário que tentava perceber este fenómeno e se ela me dava autorização para o fazer. Acedeu. Tentei negociar o dia, mas disse que “é melhor ser agora”. E comecei a fazer as várias perguntas, às quais foi respondendo, não de forma objetiva, mas reforçando o seu mal estar. A D. Manuela estava inquieta como sempre, ia respondendo à medida que abria portas de armários e andava de um lado para o outro na cozinha. Ia dizendo-me “está a ver, ela dá cabo de mim”, “é uma praga” ou afirmações semelhantes. Após a conclusão do questionário, agradeci-lhe a disponibilidade e tentei conversar sobre alternativas para diminuir a sobrecarga, mas a mãe chamou-a e ela ausentou-se da cozinha. Através da aplicação do instrumento, pode-se constatar que esta cuidadora está perante uma sobrecarga intensa.

No decorrer deste momento, vários sentimentos me assolaram: “o que estou a fazer? A cuidadora não me está a dar atenção! Ela precisa ser escutada, mais que interrogada face a algo que é visível. As alterações psíquicas que demonstra são visíveis do stress e desconforto da situação. Achei que estava a ser invasiva e inoportuna, desejava que as perguntas terminassem rapidamente”.

Após refletir neste momento tive consciência que o meu procedimento não tinha sido o mais adequado. Em primeiro lugar, preocupei-me muito com as questões teóricas e talvez menosprezado a maneira de interagir com a cuidadora. Outro dos aspetos negativos prende-se com a minha incapacidade de “prender” a cuidadora e ser capaz de a escutar de forma mais tranquila, ter capacidade para me desprender da sua agitação; a falta de uma relação de confiança; o local não foi o mais indicado; sentimento de realização de algo académico comparável aos anos de licenciatura que deixou um vazio pela incapacidade de ajudar.

Como aspeto positivo destaco a minha perceção sobre a situação e a capacidade de refletir sobre ela como aprendizagem. Esta situação faz-me refletir na importância de criar uma relação de confiança com o outro através do conhecimento de si, na importância de criar o momento propício para desenvolver a relação e poder aproximar-me do outro, “entrando” na sua privacidade, no mais íntimo que há em si, nos sentimentos e angústias de uma pessoa muito fragilizada. Percebi também que

a escolha de um local e momento adequados para a aplicação de escalas, recolha de dados ou entrevista é essencial. Considero que o local adequado seria fora da habitação, num local onde só por si, a carga negativa fosse menor, por exemplo, no centro de saúde ou noutro local a combinar em que ela pudesse espairecer; seria também importante haver tempo para puder escutar sem interromper. O momento não foi o mais indicado na medida que era de manhã, altura dos cuidados de higiene e do pequeno almoço, estando ainda bem patente o momento pouco tranquilizador da noite.

De um modo geral, considero que fui invasiva, tenho consciência que não forcei a aceitação, pelo contrário, foi aceite prontamente, mas não foi proveitosa. Continuo a refletir: “será que interrompi algo importante que tanto queria expressar?” Esta situação é uma base, uma lição daquilo que não quero fazer no futuro. Também me ensinou a importância de planear ao detalhe o que vou realizar centrada na pessoa e não nos meus objetivos. Há sempre uma questão que entoa no silêncio: que mais poderia ter feito? Como faria agora? Penso saber a resposta, ou pelo menos, uma parte da resposta. Deveria ter fomentado uma relação de confiança através da prestação de cuidados, agendar visitas de vigilância e não aproveitar aquela oportunidade por ser a última; negociar uma visita extra; ouvir.

Esta situação permite ainda refletir num aspeto importante que se prende com a existência de violência verbal e psicológica por parte da filha “justificada” pela sobrecarga e por necessidades face a este papel: a reorganização da vida marcada por aspetos considerados negativos que geram tensão, angústia e sentimento de sobrecarga; falta de reconhecimento social e de informação; dificuldade na vida quotidiana, nomeadamente na supervisão, assistência e esgotamento dos recursos físicos, emocionais e económicos; problemas relacionados com a prestação contínua de cuidados: inexistência de outro cuidador para se ausentar de casa, deterioração da vida pessoal e social, tensão por não conhecer o prognóstico e a duração daquela situação (Imaginário, 2004). Todas estas necessidades se enquadravam nesta situação. Seria interessante identificar com a cuidadora quais as necessidades emergentes para dar uma resposta individualizada. Várias são as respostas possíveis descritas na literatura: dar suporte ajudando no que necessita para prosseguir os seus esforços, beneficiar de uma relação de ajuda; encaminhar

(Berger e Mailloux-Poirier, 1994); treinar para gerir a raiva, proporcionar eventos agradáveis (Kohn et al, 2011); proporcionar descanso (Berger e Mailloux-Poirirer, 1994; Kohn et al, 2011); partilhar os cuidados com outros membros da família; contactar redes sociais comunitárias como grupos de apoio e voluntários; dar apoio técnico e emocional através de programas de apoio ao cuidador (Fernández-Alonso, 2006 a,b; Pérez-Rojo et al, 2009); usar a escala de Zarit para avaliar a sobrecarga; proporcionar apoio psiquiátrico e psicológico; avaliar a capacidade da família para garantir cuidados; sentir reconhecimento explícito da importância do seu trabalho (Fernández-Alonso, 2006b).

Em síntese, esta situação é fomentadora de novas práticas baseadas no conhecimento da pessoa e no respeito pela sua individualidade e impulsionadora de maior rigor no planeamento e interação com o outro.

Bibliografia:

Berger, L., Mailloux-Poirier, D. (1994). Pessoas idosas. Uma abordagem global. Loures: Lusodidacta

Kohn , R. et al (2011). Caregiving and Eider Abuse. Medicine & Health/Rhode

Islano. 94(2), 47-49

Pérez-Rojo, G. et al (2009). Risk factors of elder abuse in a community dwelling Spanish sample. Archives of Gerontology and Geriatrics, 49, 17-21

Fernández-Alonso, M., Herrero-Velázquez, S. (2006b). Maltrato en el anciano. Posibilidades de intervención desde la atención primaria (II). Aténcion Primaria, 37 (2), 113-115

APÊNDICE VIII – DIÁRIO DE APRENDIZAGEM: IMPORTÂNCIA DE