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NOTA DE CAMPO: TOMADA DE DECISÃO PELA PESSOA IDOSA

Nota de campo: tomada de decisão pela pessoa idosa

Ao longo do ensino clínico, várias vezes constatei que a pessoa idosa era demitida da sua função de tomar decisões em detrimento da família ou mesmo dos profissionais de saúde. A situação que vou relatar elucida este aspeto e o quanto me incomodou profundamente.

Transmitiram-me a seguinte informação: o Sr. sentado no cadeirão é mais um “caso

social”. A expressão “caso social” bastante utilizada pelos profissionais de saúde daquele serviço incomodou-me desde a primeira vez que a ouvi. E incomodava-me porque quem estava ali era o Sr. José e não um caso. Esta expressão serve para descrever todas as situações em que predomina a necessidade de apoio social, justificando a falta de avaliação médica, “rotulando” por isso a pessoa que necessita de cuidados. E várias vezes, os ditos “casos sociais” necessitaram de avaliação médica para além da necessidade de apoio social89 para regresso a casa. Mas isso é outra dimensão do problema. E porque me incomodava comecei a dizer aos colegas que se tratava de uma situação de vulnerabilidade90 acrescida, na tentativa de abandonar esta expressão, na minha perspetiva, pejorativa.

Retomando a situação do Sr. José e explicando porque era um “caso social”. O Sr. José recorreu ao SU de outro hospital após uma queda, da qual resultou fratura de uma costela com indicação de tratamento conservador. Na altura da alta, contactaram a filha para o ir buscar. Esta referiu que vivia no Porto e só poderia

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Entende-se por apoio social, a “ informação, auxílio de material, atos individuais ou de grupo que revertem em efeitos emocionais e ou comportamentos positivos tanto para quem recebe, como para quem fornece esse apoio (Nardi e Oliveira, 2008 cit. por Araújo, Paul e Martins, 2010, p. 47).

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A vulnerabilidade de cada um perante determinado fator induz a situações de necessidades pelo que, a abordagem à vulnerabilidade pode ser realizada em diferentes planos analíticos interrelacionados. De acordo com a abordagem de alguns autores preconiza-se a avaliação dos seguintes planos: o plano individual, o social e o programático ou institucional (Nunes, 2011; Paz, Santos e Eidt, 2006; Nichiata et al, 2008). A vulnerabilidade individual associa-se a comportamentos pessoais e a prevenção de situações de risco, ou seja, "é o que uma pessoa na sua singularidade, pensa, faz e quer, e o que, ao mesmo tempo a expõe ou não à aquisição de um agravamento de saúde" (Paz, Santos, Eidt, 2006, p. 339); a vulnerabilidade social relaciona-se com condições de organização/dinâmica familiar, culturais, económicas e políticas em que a pessoa está inserida e que influenciam a sua forma de ser social; o plano programático está relacionado com o desenvolvimento de ações institucionais para os problemas a nível governamental e político (Nunes, 2011), ou seja, os recursos sociais que as pessoas necessitam para promover a saúde e prevenirem a doença (Paz, Santos, Eidt, 2006). Face ao fundamentado anteriormente, existem grupos da população que são mais vulneráveis. Entende-se por população vulnerável, aquela que se encontra em risco de pobre saúde física, psicológica ou social (Aday, 2001 cit. por Chesnay, 2008).

comparecer no hospital dentro de dois dias por motivos laborais. Por essa razão, o Sr. José foi transferido para o hospital da área de residência como “caso social”, ou seja, abandono no SU pela filha.

Conheci este Sr. na manhã seguinte da transferência. Este encontrava-se sentado no cadeirão há cerca de 12h, aguardando algum tipo de solução e de cuidados, pois segundo ele, não tinha sido avaliado ainda pelo médico. A filha chegou e aí começou um verdadeiro problema para o cliente. Este vivia sozinho, conduzia e fazia as compras, embora fosse dependente na mobilização (auxiliares de marcha) por uma patologia crónica articular. E o seu desejo residia em sair do hospital e regressar a casa. A filha, por sua vez, tinha como objetivo a institucionalização91, justificando que a habitação precisava de obras e que já tinha combinado com o pai que no próximo mês iria para o lar para a realização das obras. Mas o Sr. José não aceitava. Iria para o lar na altura certa, ainda não precisava. E assim discutiam. A filha encontrava-se nervosa e ansiosa para resolver “este problema do meu pai, que é muito teimoso”. E falou com a assistente social no sentido de agilizar a integração em lar.

Enquanto isso, escutei o Sr. José e as suas razões e percebi que existiam sinais importantes a ter em conta na situação: referia que a filha se tinha apoderado indevidamente de dinheiro para ir para o Porto com um namorado e que, após uma discussão violenta o tinha empurrado. ”Ela quer é o meu dinheiro e a casa, nem casa tem, por isso quer as obras. Eu não vou para o lar92. Lá perto de casa tratam

as pessoas piores que cães!”. Percebia-se facilmente a tensão entre eles. Então negociei com o cliente que era importante fazer uma avaliação para entender o que ele conseguia fazer sozinho e que tipo de ajuda necessitava. Concordou. Da avaliação saliento os elementos mais importantes: o Sr. José encontrava-se sem défices cognitivos, era autónomo e com capacidade de tomar decisões. Face à queda, à patologia osteoarticular e à sua imobilidade há cerca de 72h, necessitava

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Em alguns países europeus, procura-se o caminho oposto à institucionalização, “centrado na preservação da autonomia e dignidade da pessoa idosa, no qual a manutenção no contexto familiar aparece como uma solução a privilegiar independentemente dos recursos das famílias” (Araújo, Paul e Martins, 2010, p. 47). No entanto, é um importante recurso para as pessoas idosas em situação de dependência (Fernandes, 2002). No estudo de Matos (2010), a dependência física é o principal motivo que leva o idoso à institucionalização.

de ajuda na realização das AVD´s e AIVD´s (Índice de Barthel - ligeiramente

dependente e Índice de Lawton e Brody – moderadamente dependente). Com base

na avaliação propus uma fiz a seguinte proposta: durante duas semanas receberia apoio domiciliário para alimentação, higiene pessoal (banho) e tratamento da roupa. Depois, como estava combinado iria para o lar que escolhesse para a reparação da casa. O Sr. José ficou contente com a solução, pois o seu maior objetivo era regressar a casa. Na minha perspetiva, havia uma luz ao fundo do túnel para o bem do cliente. Face a isto, dirigi-me à assistente social que tinha conversado com a filha para lhe comunicar a solução. Esta informou-me que ia falar com o cliente em privado e após uns minutos, informou-me que o cliente iria ser institucionalizado no lar que tanto recusava. Fiquei petrificada, talvez seja a palavra mais correta. Fundamentei à assistente social que o cliente não necessitava ser institucionalizado, mas respondeu-me que a situação já se encontrava resolvida. Senti-me desapontada por terem decidido93 pelo cliente, pela desvalorização do meu trabalho, como pelo Sr. José que certamente, foi convencido a tomar uma decisão que não queria. Não descansei e pela relação de confiança já estabelecida com o cliente, disse-me que ia porque “lá há sempre médico”94. A razão estava descoberta! E o Sr.

José saiu com a filha, de forma apressada, para ser institucionalizado.

Após a situação, refleti muito sobre ela e partilhei-a com alguns colegas. E a partir dela, um exemplo a não seguir, os colegas entenderam o poder e o dever que o enfermeiro tem em avaliar a pessoa, propor o recurso na comunidade mais adequado e gerir com a família e a assistente social este processo, num verdadeiro trabalho de equipa, em que cada um tem as suas funções bem definidas. Seguiu então a proposta do enfermeiro acompanhar as reuniões e iniciou-se como prática comum a avaliação do Índice de Barthel e Índice de Lawton. Desta forma, considero que a reflexão nas situações é essencial para a mudança da prática, se for visível o seu contributo prático. E é também nas situações em que não temos o sucesso desejado que inquieto os colegas e busco forças para a mudança e para continuar a procurar a qualidade dos cuidados.

93 No estudo de Matos (2010), o cuidador é quem toma a decisão da institucionalização, dados corroborados por outros autores. Realça-se a não decisão da pessoa idosa.

Bibliografia:

Araújo, I., Paul, C., Martins, M. (2010). Cuidar no paradigma da desinstitucionalização: a sustentabilidade do idoso dependente na família. Revista

de Enfermagem Referência, III série, 2, 44-53

Barroso, V. (2006). Órfãos Geriatras: Sentimentos de Isolamento e Depressividade

face ao envelhecimento. Estudo comparativo entre idosos institucionalizados e

não institucionalizados, ISPA. Acedido em 26 dezembro de 2010. Disponível em: http://www.psicologia.com.pt

Chesnay, M. (2008) In Chesnay, M., Anderson, B. (Coords). Caring for the

Vulnerable: Perspectives in Nursing Theory, pratice, and Research (pp 3-14), 2Ed

Fernandes, P. (2002). A Depressão no Idoso. (2ª ed.). Coimbra: Quarteto

Matos, A. (2010). Compreensão do fenómeno dos maus tratos económicos e emocionais a idosos e a decisão no processo de institucionalização – uma realidade portuguesa. Rev Kairós Gerontologia. 13(2), 57-73

Nichiata, L., Bertolozzi, M., Takahashi, R., Fracolli, L. (2008). A utilização do conceito “vulnerabilidade” pela Enfermagem. Rev Latino-am Enfermagem, 16(5). Acedido

em 14 de outubro de 2012. Disponível em

http://www.scielo.br/pdf/rlae/v16n5/pt_20.pdf

Nunes, L. (2011). Ética de Enfermagem. Fundamentos e Horizontes. Loures: Lusociência.

Paz, A., Santos, B., Eidt, O. (2006). Vulnerabilidade e envelhecimento no contexto da saúde. Acta Paul Enfermagem, 3 (19), 338-345

APÊNDICE V – NOTA DE CAMPO: RESPEITO PELA DECISÃO DO