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NOTA DE CAMPO: RESPEITO PELA DECISÃO DO CLIENTE

Nota de campo: respeito pela decisão do cliente

Exemplo de uma situação vivida no ensino clínico que visa o respeito pela decisão do cliente.

Trata-se de uma senhora de 77 anos de idade, que recorre ao SU por dispneia com dois dias de evolução, trazida pelos Bombeiros e sem acompanhante. Apresentava internamentos anteriores pelo mesmo motivo, nunca tendo ficado hospitalizada. Como antecedentes pessoais médicos e cirúrgicos destaca-se neoplasia da mama, submetida a cirurgia e quimioterapia, com metastização óssea e hepática e insuficiência cardíaca grave com hipertensão pulmonar grave (internada há cerca de cinco meses no Serviço de Cardiologia para otimização da sintomatologia). Vivia com o marido também idoso e tinha dois filhos que davam algum apoio na limpeza da casa e roupa, no final do dia e ao fim de semana. Após a avaliação médica, diagnostica-se insuficiência respiratória parcial (associada à fase final de vida). A médica chama-me, informa-se sobre a situação e pede-me para chamar os filhos para lhe explicar a situação final da doença, sendo o objetivo, o regresso a casa da cliente com acompanhamento. Sugeri à médica instituição de oxigenoterapia no domicilio para diminuir o desconforto e dispneia e, consequentemente, o recurso ao SU. Dirigi-me então à cliente. Apresentava um ar débil, cansado, deitada numa maca, onde não era possível proporcionar qualquer tipo de conforto. Iniciei conversa, explicou-me de forma lenta e pausada porque veio ao hospital. Disse-me que o cansaço e a dispneia eram progressivamente mais exacerbados, mas que sabia porquê. “Sabe, os médicos já me explicaram, o meu corpo funciona muito mal desde o cancro, já não há nada a fazer”. Perante esta afirmação, juntamente com a médica explicamos o que consideraríamos ser o plano mais adequado na sua situação: regressar a casa, garantir conforto e apoio, uma vez que o internamento hospitalar poderia ser prejudicial face ao risco elevado de infeção e ao seu sistema imunitário estar deprimido. A cliente entendeu tudo o que lhe foi dito e disse: “Mas eu quero cá ficar”. Argumentámos também que não poderíamos garantir conforto, pois devido à sobrelotação hospitalar, teria de ficar internada uns dias no SU, possivelmente naquela maca, sem garantia de uma cama. Replicou: “Não faz mal, Sra. doutora. Sabe, Sra. enfermeira, aqui sinto-me melhor, mesmo que morra”. Alguns autores defendem esta ideia alegando que as pessoas idosas preferem ficar

internadas devido às alterações na sociedade e na família, nomeadamente as dificuldades na família para cuidar e insuficiência de ajuda, para além da segurança e acompanhamento que o hospital proporciona.

Perante a capacidade da cliente para tomar decisões, esta foi respeitada. Foram contactados os filhos que compareceram no hospital e informados da situação clínica da mãe e da sua decisão que respeitaram.

Este exemplo remete-nos para o “direito à autodeterminação, ou seja, a capacidade e a autonomia que os próprios doentes têm, para decidir sobre si” (OE, 2003, p. 72). Mas também remete para o art.º 87 do CDE (OE, 2003, p. 93) sobre o respeito pelo

doente terminal, nomeadamente “defender e promover o direito do doente à escolha

do local e das pessoas que deseja o acompanhem na fase terminal da vida”.

Esta situação promoveu também a minha reflexão sobre a importância de garantir os quatro pilares nos quais assenta a filosofia dos Cuidados Paliativos: controlo dos sintomas, comunicação adequada, apoio à família e trabalho em equipa (Neto, 2004). Embora o serviço não permitisse acompanhar a cliente da forma mais adequada na fase final da sua vida, ela escolheu permanecer lá, pelo que me esforcei por garantir cuidados que, para ela, eram fundamentais. Validei com a cliente os principais problemas: dor, dispneia e acompanhar os filhos e marido. Relativamente à dor esta foi avaliada através da escala numérica, atribuindo um valor 10. “Uma dor insuportável, no corpo todo, como se estivesse embrenhada nos ossos”. Deste problema, resultou como ação interdependente a administração de opióide forte e como ações autónomas, a monitorização sistemática da dor, o posicionamento em decúbito semidorsal direito, assumida como posição de conforto e a colocação de algumas luvas com água quente nos pés (“gostava tanto de ter aqui a minha botija”).

A dispneia95 era evidente a pequenos esforços apesar da instituição de oxigenoterapia por máscara facial. A respiração era superficial e de pequena amplitude, ao qual se associava o desconforto da desidratação da mucosa oral,

95

A dispneia é um dos sintomas mais comuns no fim da vida, causando muita angústia no cliente, família e equipa de profissionais; tende a tornar-se incapacitante e piora a qualidade de vida, sendo difícil de controlar pelo seu agravamento na progressão da doença (Centro Regional de Medicina do estado de São Paulo (CREMESP), 2008).

minimizado por uma espátula humedecida. Foi colocada junto a uma janela e verbalizou que se sentia melhor.

O acompanhamento e apoio à família era a sua maior preocupação. No apoio à família deve-se adotar uma atitude proativa na avaliação das suas necessidades, programar espaços próprios para a discussão da evolução da doença e dos tratamentos e validação dos cuidados que se presta (Neto, 2004). Neste caso, proporcionou-se o acompanhamento dos dois filhos e regime de visita alargado ao marido. O tema morte não era um tabu entre eles, promoviam a vida enquanto ela

permitisse. Estes gestos, estes cuidados de enfermagem de manutenção96

individualizados são a chave mestra da garantia do conforto ao cliente em fim de vida.

Por último, foi importante refletir porque razão a cliente não quis regressar a casa, preferindo ficar hospitalizada. E como é importante respeitar a sua vontade, ainda que tão díspar das minhas crenças e valores pessoais. Esta ideia é fundamentada por Colliére (1999, p. 276) ao afirmar que “os cuidados de enfermagem situam-se na junção de pessoas – utilizadores e prestadores de cuidados - que têm hábitos de vida e, portanto, crenças diferentes e que são submetidas às flutuações de diferentes meios de vida”.

Bibliografia:

Collière, MF. (1999). Promover a vida. Sindicato dos Enfermeiros Portugueses. Lisboa: LIDEL Edição

CREMESP (2008). Cuidado Paliativo. Centro Regional de Medicina do Estado de São Paulo: São Paulo

Neto, I; Aitken, H; Paldront, T. (2004). A dignidade e o sentido da vida. Uma reflexão

sobre a nossa existência. Cascais: Pergaminho

Ordem dos Enfermeiros. (2003). Código Deontológico do Enfermeiro: anotações e

comentários.

96 Entende-se por cuidados de manutenção e de continuidade de vida, os cuidados quotidianos e habituais, “o care”, cuja função se prende com a sustentação da vida e o reabastecimento de energia, seja pela natureza alimentar, necessidade de água, calor, luz, afeto, ou seja, todos os cuidados que segundo a autora são a textura e o tecido da vida. Por esta razão, “tudo o que resta de capacidade de vida pede e exige ser constantemente mobilizado (…) a fim que as energias vitais prevaleçam sobre os obstáculos da vida” (Collière, 1999, p. 239).

APÊNDICE VI – NOTA DE CAMPO: AVALIAÇÃO E IMPORTÂNCIA