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Diários e o escrever

No documento Arte que inventa afetos (páginas 77-84)

Laura Barros e Virgínia Kastrup (2010, p. 69) trazem a proposta de cadernos como o hipomnemata, discutido por Michel Foucault (1992), ao tratar das práticas de si dos gregos. Nesse sentido, o caderno do pesquisador tem como inalidade “reunir o logos fragmentado”. Para os autores, a escrita ou o desenho é uma importante prática para a car- tograia como método de pesquisa, em um diário de campo ou caderno de anotações. Desse modo, os cadernos são importantes dispositivos de produção de dados de uma pesquisa e têm “a função de transformar observações e frases captadas na experiência de campo em conheci- mento e modos de fazer” (BARROS; KASTRUP, 2010, p. 70).

Essas anotações são constituídas de relatos regulares, de infor- mações objetivas – como data, hora e local da visita –, assim como de impressões que emergem da experiência vivida. Barros e Kastrup (2010, p. 70) ressaltam a importância de os relatos não serem baseados em opiniões, análises objetivas ou interpretações. O exercício de anota- ções no caderno é, sobretudo, para essas autoras, a busca de captar e descrever algo que acontece no plano intensivo das forças e dos afetos, ou seja, é uma tentativa de perceber as invisibilidades que cercam a pesquisa. Regina Barros e Eduardo Passos (2010) também tratam da

importância do registro no trabalho do pesquisador, tanto do que é pes- quisado quanto do processo de pesquisar. O registro é entendido como um dispositivo disparador dos desdobramentos da investigação.

Já o diário de campo, muito utilizado na antropologia, as pesquisa- doras ressaltam-no como importante elemento para a elaboração de textos que têm por inalidade produzir resultados da pesquisa. Na pesquisa etno- gráica, o diário vem como um espaço para a descrição do que se ob- servou, sendo produzido um minucioso relato “não só do que viu e viveu, falando em seu próprio nome, mas também do que ouviu no campo, do que lhe contaram, os relatos dos outros sobre a sua própria experiência” (CAIAFA, 2007, p. 138 apud BARROS; KASTRUP, 2010, p. 71).

A escrita no caderno do pesquisador também pode vir como diá- ria, como nos sugerem Regina Passos e Eduardo Passos (2010) como um acolhimento da experiência que o pesquisador está a passar. Os pes- quisadores trazem a proposta de um diário de bordo que se dá por troca de correspondências, no sentido de deslocar os modos de deslocar a escrita, pois o processo da pesquisa torna-se o texto a ser publicado, dissolvendo barreiras no processo de escrever.

As relações estabelecidas pelo pesquisador, o lugar ocupado e os deslocamentos produzidos na experiência do pesquisar tomam forma na ação do escrever. Imaginemos o momento da escrita como o fazer origamis: um papel liso começa a ganhar formas com dobras e desdo- bramentos, até uma forma ser feita. Esse processo constitui-se de tenta- tivas, combinações, formas, deformações etc. Dúvidas cercam-nos e as escolhas precisam ser feitas. De tal modo, podemos pensar o processo de escrita em que formas precisam ser apresentadas em um texto.

Zanella (2012) discute a escrita como modo de organizar a pes- quisa. A autora faz relação do ato de pesquisar como um poliedro, apre- sentando várias faces: o percurso e os resultados, a problemática e as escolhas teórico-metodológicas etc.

Tais faces compõem a escrita da pesquisa e constituem-se pela intensa dedicação do pesquisador que se propõe a pôr em palavras a experiência vivida na investigação. No entanto, o escrever passa por vias invisíveis, pois tal ação não é apenas transcrever o processo de pesquisa, é sim, produção de pensamento e conhecimento.

Como pôr em palavras toda a trama que nos envolve ao pes- quisar? Há algo de sensível que nos cerca, pois pôr a experiência do pesquisar em palavras, frases, texto, está em meio a um envolvimento com forças invisíveis relacionadas à criação. Penso, aqui, o pesquisador como escritor desses invisíveis que o cercam, escritor de um pensa- mento por vir.

O diário de criação é pensado a partir de experimentações de Gorczevski e Farias (2014) como componente do processo de criação da pesquisa, e também como potência do pesquisador inventar a si em tal processo. Ao partir da experiência de o pesquisador fazer o seu pró- prio caderno em oicinas realizadas,20 as autoras entendem o diário como ponto de encontro das experiências cotidianas.

Gorczevski e Farias (2014) partem da proposição de Maturana (2001) do pesquisador como um observador com o desejo ou a paixão pelo explicar. O autor explica que o fazer cientíico ou o pesquisar é uma atividade humana como outra qualquer e acontece em domínios de ações especiicados e deinidos por uma emoção fundamental. É a curiosidade a emoção fundamental que especiica o domínio de ações no qual a ciência acontece.

É a partir desse olhar do curioso que chamo atenção a respeito do pesquisador que produz envolto por suas paixões e curiosidades. Do momento em que produz o seu próprio diário, o pesquisador está a fazer deslocamentos nos modos de conceber a pesquisa e a produção de pen- samento e conhecimento. Então, tenho pensado a pesquisa como expe- riência singular, o que me leva a seguinte interrogação: de que modo acontece a escrita de tal experiência, em que o pesquisador propõe-se a um fazer artístico e manual?

Em seus estudos relacionados à literatura, subjetividade e vida, Deleuze (1992) airma que escrever “é um luxo entre outros”. Escrever,

20 Entre os anos de 2011 e 2012, as autoras realizaram experimentações chamadas de ofi- cinas ‘Costurando cotidianos’, com a proposta para coletivos de pesquisa e estudantes que se estão iniciando no processo de pesquisar produzirem seus próprios cadernos que os acompanhassem no processo de pesquisa. Para mais detalhes, consultar: Gorczevski e Farias (2014).

portanto, é invenção, é criação de linhas de fuga para a potência de vida. Nesse sentido, localizo o pesquisador como um escritor a produzir des- vios nos modos de conceber o mundo a partir de suas experiências sin- gulares e coletivas. A escrita vem como um devir, como um inacaba- mento, ou seja, como um processo.

Deleuze (1997) traz em seu conceito de gagueira uma problema- tização de escrita como invenção, a pensar o processo de composição do texto. Quando o ilósofo provoca a pensar as diferenças que se põem entre os artigos ‘um’ e ‘o’, abre espaço, portanto, para problematizar qual posicionamento é ocupado no ato de pesquisar. Para Deleuze (1997, p. 123), “o artigo indeinido ‘um’ percorrerá toda a zona de va- riação compreendida num movimento de particularização, e o artigo deinido ‘o’, toda a zona compreendida num movimento de generali- zação”. Portanto, podemos assinalar uma escrita a partir de um pro- cesso singular. Escrever é invenção de realidades e de si. Como um processo, ressalto a importância do diário que acompanha o pesqui- sador, chamado aqui de “Diário de criação”, pois, ao entender tal dispo- sitivo como um lugar de experiência da pesquisa, toma-se também como um lugar de criação de possibilidades.

Inconclusões

Pensar o lugar do pesquisador e os seus processos de escrita: uma inquietação produz-se entre o fazer e saber. Diversas direções surgem e precisamos fazer escolhas, pois são intensos os caminhos percorridos no processo de pesquisa. Este texto toma as palavras de Bondía (2002) ao entender o saber da experiência como uma exposição. Pois, percebo o pesquisador como um sujeito que se expõe a uma experiência que lhe é desaiante: a ação de produzir direções, aproximações, um saber a respeito de um conhecer. Entendo o escrever como um entre, um devir, o tempo da criação de um certo sensível, um invisível que circula e se expõe quando se está pesquisando.

O momento da escrita do texto é o tempo da intensidade, da in- certeza, da angústia, da alegria. Cada palavra vira uma festa. Dessa forma, compreendo o pensar como um ato de abalos sísmicos em estru-

turas enrijecidas, diluindo-se em caos, na airmação da vida como po- tência criadora. É uma espécie de jogo e movimento de forças entre invenção da pesquisa e do pesquisador.

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