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natureza, cultura e resistência na praia do Titanzinho em Fortaleza

No documento Arte que inventa afetos (páginas 144-166)

André Aguiar Nogueira34

R

ecentemente, a cidade tomou conhecimento da existência de um mega projeto para construção de um estaleiro naval na Praia do Titanzinho, em Fortaleza. Em meio ao debate público sobre a viabilia- dade econômica, social e ambiental do referido empreendimento, foi necessário tecer algumas considerações sobre as raízes da cultura e da resistência desse lugar.

A Praia do Titanzinho é considerada a alma da comunidade Serviluz.35 O lugar icou internacionalmente conhecido, a partir da dé-

34 Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre e douto- rando em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Colaborador de projetos sociais na comunidade.

35 SERVILUZ era o nome do antigo Serviço de Luz e Força de Fortaleza, empresa gera- dora de energia elétrica construída em 1954. Após a desativação da usina, tornou-se também o nome popular da pequena “favela” que a circundava, sendo nessa denomi- nação que seus moradores passaram a se reconhecer. “Aqui é o Serviluz: de dia falta água e de noite falta luz”, dizia uma antiga anedota local que denunciava a inexistência de energia elétrica, por longo tempo, nos domicílios que se localizavam ao lado da usina. Oficialmente, essa comunidade não existe como bairro na adminitração pública municipal. Segundo pesquisas populares, a população hoje é estimada em cerca de 30 mil habitantes.

cada de 1970, pela prática do surfe. Nesse período, apesar de localizada na periferia da cidade, sua orla sediou campeonatos nacionais e interna- cionais importantes, atraindo muitos visitantes.

Nos anos de 1990, porém, fatores como o crescimento demográ- ico acelerado e o surto da delinquência juvenil proporcionaram o im dos eventos esportivos e a localidade passou a ser estigmatizada na ci- dade. Mais recentemente, com o surgimento de novos movimentos po- pulares, a criação de organizações não governamentais (ONGs) e a abertura de algumas escolinhas de surfe e, principalmente, com a emer- gência de jovens campeões locais no esporte, tem-se ampliado nova- mente o luxo de visitantes. Trata-se de uma comunidade já estabele- cida há mais de sessenta anos e que hoje convive com a ameaça da especulação imobiliária.

Situado entre o oceano Atlântico, o porto do Mucuripe e um complexo industrial, especializado no ramo de gás e combustível, esse estreito pedaço de praia no extremo leste de Fortaleza foi ocupado por um contingente bastante heterogêneo de trabalhadores (Figura 1).

Durante muito tempo, a população morou em barracos improvi- sados; muitos deles eram erguidos com lona plástica, madeira e até mesmo papelão. Tempos difíceis eram aqueles em que o vento e a areia, quando não derrubavam as casas, entravam nos olhos e nas panelas dos moradores abrigados ainda em casebres esparsos. A pobreza das habita- ções, no entanto, contrastava com a abundância encontrada nas panelas suspensas sobre o fogo a lenha, quase sempre abarrotadas de peixe, alimento básico na mesa das famílias praianas. São, portanto, herdeiros da milenar tradição pesqueira.

Figura 9 – Vista Panorâmica da Praia do Titanzinho em Fortaleza.

Fonte: Proposta de Tombamento da Paisagem Cultural do Titanzinho, CPHC, SECULTFOR, PMF, 2010.

Ao longo dos anos, porém, os pescadores somaram-se às mere- trizes, aos portuários, aos trabalhadores da indústria, aos pequenos co- merciantes e aos trabalhadores informais, os ditos “biscateiros”. Surgia uma comunidade culturalmente multifacetada e marcada por distintas experiências migratórias.

Ao tempo dos candeeiros e velas, sobreveio a época dos reletores na praia. Na histórica esplanada do Mucuripe,36 uma imensa loresta de cajueiros deu lugar a uma paisagem mais moderna e cosmopolita.

Foi a partir da construção do porto – elemento central no processo de expansão e reordenação espacial – que essa região passou a experi- mentar uma série de mudanças: nas suas reservas naturais, no tipo de ocupação territorial e uso do solo, na funcionalidade econômica, na ex- pansão demográica, na produção cultural e na relação com a natureza.

As primeiras pedras para a construção do porto começaram a ser assentadas por volta de 1940. Obra demasiadamente demorada, levou mais de duas décadas para ser concluída, período em que seus arredores foram sendo rapidamente ocupados por levas de retirantes e por impo- nentes clubes de veraneio (Figura 2).

36 Existem controvérsias sobre a origem do nome Mucuripe. No romance Iracema, 1865, o escritor José de Alencar (1992) explica que o nome mocoripe vem de corib (alegrar) e mo partícula do verbo fazer. O historiador cearense Raimundo Girão (1959), entretanto, sugere que esta explicação seja muito romantizada. De acordo com ele, amparado nos estudos de Adolfo Vahargen, o navegador espanhol Vicente Pinzón teria aportado no Mucuripe em fevereiro de 1500, antes, portanto, da chegada de Pedro Alvares Cabral em Porto Seguro, na Bahia. Trata-se, portanto, de um dos primeiros núcleos habitacionais da cidade.

Figura 10 – Pescadores artesanais na en- seada do Mucuripe.

A bela praia do Mucuripe nunca mais seria a mesma. Os trens, os navios e os caminhões continuamente carregados passaram a indicar uma profunda alteração no ritmo de vida local. Assinalavam a emer- gência de novas formas de vivência do tempo e da criação de novas modalidades de organização das identidades e das culturas. O barulho das ondas do mar intercalava-se, agora, à sirene das usinas; a intensa maresia da praia se misturava ao forte cheiro de gás; bebia-se água com gosto de querosene.

Nesse sentido, há mais de meio século, os habitantes dessa área têm estabelecido uma relação ambígua com a indústria que os cerca. Há, por isso, uma memória coletiva da vida fabril, já que muitos dos seus moradores foram seduzidos pelas promessas redentoras do progresso.

Entre outras lembranças, o imaginário do bairro é carregado de episódios trágicos. Em várias circunstâncias, vidas foram ceifadas. Os incrementos do progresso e a riqueza econômica foram, muitas vezes, banhados no sangue dos trabalhadores locais. Muitos jovens apre- sentam deformações físicas visíveis provocadas pela má utilização de equipamentos industriais pouco habituais.

As mortes no mar, os naufrágios e os afogamentos somavam-se agora às mortes e acidentes em terra. As perdas no mundo do trabalho, aliás, incorporaram-se à realidade das mortes a bala, nitidamente sen- tidas nos índices e nas estatísticas da criminalidade e da violência local. Em meio ao progresso voraz, o Serviluz tornou-se também um lugar de resistência popular. Em boa medida, o passar do tempo não apagou antigas formas de relação com o mundo natural. Alguns modos de organização social e laços de solidariedade e afeição têm atraves- sado gerações.

A simplicidade e a solidariedade entre esses trabalhadores, entre- tanto, alimentaram a falaciosa ideia de ser essa uma gente preguiçosa, apolítica e culturalmente atrasada. A idealização exacerbada dos pesca- dores, por exemplo, produziu uma imagem bastante distorcida, que en- xerga grupos de trabalhadores estáticos no tempo e vê os homens como uma espécie de prolongamento da paisagem natural.

De fato, os habitantes desse lugar não viveram impunemente. Residindo sobre uma localização geográica atípica, rica e selvagem,

desenvolveram a partir daí suas estratégias de sobrevivência, constru- íram traços culturais e organizaram o cotidiano (Figura 11).

No Titanzinho, a prática do surfe deu uma continuidade renovada a essa tradição em que natureza, trabalho e cultura facilmente se fundem. Os homens, de várias formas, apoderam-se das águas, demarcam as pedras e vivem suas ruas de areia. Nesses lugares, processavam-se nas- cimentos e óbitos. As intrigas e as amizades da vida desenvolvem-se sobre poeiras e paralelepípedos. Seja como local de moradia, trabalho ou lazer, as nuanças geográicas interferem diretamente no dia a dia da população, aguçando sobremaneira as sensibilidades dessa gente.

Do teto plastiicado sob o qual se dormia a im de amenizar o constante cair da areia, ao chão movediço sobre o qual se pisava, os elementos naturais deixam suas marcas no cotidiano do lugar.

Do surfe, porém, surge o entendimento de que a deiciência so- cioeconômica deveria ser superada pela utilização racional do ecossis- tema, da mediação entre consciência dos valores humanos e a natureza, o mutualismo com o ambiente, a percepção do espaço como impulsio- nador das transformações sociais necessárias ao meio.

A superação do preconceito e da desigualdade econômica exigia, porém, tanto um severo treinamento técnico quanto a aceitação de uma

Figura 11 – Crianças surfando na Praia do Titanzinho, em Fortaleza.

série de mudanças no estilo de vida, mesclando-se aí velhos hábitos e novos comportamentos. Emergiu o desejo de elaborar novas opções de vida, de vibrar com outras sensibilidades:

No futebol, se o cara não está jogando bem eles tiram e colocam outro. No surfe não, quem for mais bonitinho está com patro- cínio. O cara dá um aéreo e fica com a prancha cheia de logotipo [...]. Foi de repente, já competia enquanto meus amigos jogavam futebol. Sabia surfar e jogar bola, mas tive que escolher. Hoje vejo que através do surfe conheci outros países e estados, já meus colegas do futebol ainda não saíram do Titanzinho.37

As histórias de vida apontam a árdua trajetória dos jovens compe- tidores como uma regra geral. O surfe não teve um começo tão nobre. Antes marginalizado, hoje é visto como uma proissão; mas poucos atletas sobrevivem do esporte, enquanto outros somente sonham. Além disso, esse esporte também era extremamente caro, praticamente inaces- sível, para as condições inanceiras da população local, pelo menos até os anos de 1990. Atualmente, porém, constituiu-se uma diversiicada rede de trocas e solidariedades que permite que praticamente todos os jovens da localidade tenham acesso gratuito ao equipamento (Figura 12).

37 Entrevista com Lucinho Lima, In: Revista Hard Core, v. 15, n. 182, out. 2004. Figura 12 – Surfista profissional Fábio Silva, atleta local consa- grado nacionalmente.

Um aspecto central é que os praticantes passaram a expressar mais facilmente o amor pela praia, fazendo transparecer certa satisfação de ter à porta de casa um excelente espaço para a prática do surfe. Ressigniicaram, assim, as relações antes estabelecidas com o meio am- biente. Não se arriscavam mais nas temerosas pescarias mar adentro, mas desenvolveram a gosto pela adrenalina de estar dentro d’água com- petindo. Nesse caso, o gosto pelo mar e pela natureza conigurou-se como uma condição fundamental.

Se o menino tá dentro d’água o que ele tá vendo dentro d’água? Tá vendo uma gaivota que tá passando, tá vendo um peixe que tá passando, uma tartaruga... Ele já começa a ter assim noções de oceanografia, começa a observar mais os astros, sabe que na lua cheia e na lua nova a maré é mais cheia ou mais vazante e pode dar onda, qual a época do ano que tem a melhor onda, já começa a se preocupar com a onda assim... Vai esperar o dia que o mar tá mais perfeito e tal pra surfar. Enfim, o moleque já começa a pensar mais na natureza, começa a ver o lado mais bonito do negócio se ele tiver dentro d’água.38

Nesse grupo cultural especíico, observou-se que a realidade ofe- recida pela natureza não constituía exatamente um problema. Ao con- trário, faltava exatamente uma relação mais aproximada e equilibrada com o meio ambiente, a im de serem aproveitados os benefícios que a natureza gratuitamente podia proporcionar.

Nesse universo, é possível deslizar nas histórias de adoles- centes que descobriram novas formas de trabalho e lazer no mar, in- ventando novos modos de ganhar a vida na arrebentação. Histori- camente, vê-se o surgimento de uma espécie de escola local de surfe na comunidade.

Trata-se de uma geração que nasceu e cresceu numa área lito- rânea, mas, morando na beira da praia, não desejou seguir a tradicional proissão dos pais. Diferentemente daqueles que aderiram aos novos 38 Entrevista concedida por José Carlos Sobrinho, popularmente conhecido como “Fera”,

postos de trabalho que surgiam na indústria, continuaram optando pela vida no mar (Figura 13).

Deslizar sobre a madeira era inclusive o aprimoramento de uma antiga técnica da pesca, das embarcações que, para atingir a terra irme, precisam cruzar a arrebentação das ondas. Nesse processo, a habilidade em reutilizar os elementos do dia a dia constituiu um aprendizado fun- damental, capaz de produzir a emergência de alternativas essenciais a essa população.

Na pesca e no surfe, a relação entre homem e natureza é funda- mental. Nessas atividades, o ambiente não pode ser considerado uma entidade estática, mas precisa ser concebido como uma série de pro- cessos maiores, alheios à ação humana, mas sobre os quais o homem pode interferir. Natural e social articulam-se continuamente. Entre ou- tros resultados, a prática do surfe na periferia urbana de Fortaleza con- cretizou-se em inserção social e educação ambiental. Despertou, inclu- sive, novas sensibilidades em relação à natureza.

A partir do relacionamento com as pessoas “de fora”, os meninos do lugar começaram a conhecer pranchas, roupas, equipamentos e ou- tros acessórios que permeiam esse universo. O surfe reforçou a ideia do acolhimento, do bairro como espaço do lazer e da interação.

Figura 13 - Surfista profissional Tita Tavares, uma das atletas mais vitoriosas no esporte, ainda hoje mora na comunidade. Fonte: Raimundo Cavalcante Ferreira, 2013.

As pessoas que chegavam viram nascer ali um bairro popular cujas águas e areias a população passou a dominar. Foi preciso, a partir de determinado momento, negociar, entre outras coisas, o próprio di- reito de entrar e sair ileso do local. Com o passar do tempo, uma onda de violência instalou-se e os grandes campeonatos antes realizados na praia afastaram-se do bairro. Mas o surfe permaneceu na cultura local.

Nesse contexto, parte da juventude passa a ter o entendimento de cultura como algo que não mais se restringia ao microcosmo do bairro, ainda que o espaço contenha os elementos essenciais de sua formação, mas baseia-se na integração da comunidade ao planeta: “pensar global- mente, agir localmente”.

A praia do Titanzinho, situada na esquina leste de Fortaleza, é o berço dos melhores surfistas do Brasil, o melhor e mais constante

point da cidade. Tema de música e famosa no mundo do surfe

pela força de suas ondas e por seus famosos surfistas. Porém, esse paraíso está sofrendo com a poluição há muitos anos, resul- tado da falta de educação da maioria dos moradores e da falta de leis que punam verdadeiramente os poluidores, os quais jogam lixo na praia causando sujeira, doenças e deformação do coral. O quadro é alarmante, basta olhar a praia e mergulhar para per- ceber o grande estrago causado ao meio ambiente. A água é suja e transmite micose, isso não pode continuar assim, pois é crime ambiental e prejudica a todos que tem no mar sua fonte de so- brevivência e lazer.39

Além dos problemas ambientais, a superação do preconceito so- cial que recai sobre a comunidade podia contar com o apoio quase in- condicional da natureza. A prática do surfe projetou-se como uma pos- sibilidade concreta de renda e inserção social. A prática deve, no entanto, estar associada à imagem de uma juventude saudável, cristalizada nos corpos torneados dos atletas locais.

39 O Projeto S.O.S Titanzinho foi criado por surfistas locais com o objetivo de despertar um senso de preservação ambiental entre os moradores do bairro. Manifesto do movi- mento S.O.S titanzinho, disponível na escolinha de surfe do titanzinho, 2008.

Realizar a capacidade de reverter a imagem denegrida do Serviluz, sinônimo de mazela urbana, fazê-lo lutuar em novas memó- rias é o que se espera dos corpos locais. O surfe passou a ser entendido como uma força mutante, capaz de tirar as crianças da ociosidade e das drogas, uma forma de transformar corpos e mentes. A vida dentro d’água como sendo propulsora de outros aprendizados e habilidades. Existe, entre os praticantes, a concepção da natureza como uma espécie de força mutante, que transforma mentes e corpos e que é capaz, por exemplo, de transformar crianças magricelas em verdadeiros campeões mundiais de surfe (Figura 14).

Face às considerações anteriormente expostas, e diante da impro- vável construção de empreendimentos como um estaleiro nesse terri- tório, cabe argumentar sobre a história de lutas e resistências na pequena praia do Titanzinho. Espaço conigurado historicamente por múltiplos territórios e personagens. Em meio às glórias e às adversidades, propor- cionadas tanto pela complicada relação estabelecida com a natureza quanto pelas mediações mantidas com as políticas públicas excludentes da cidade, homens e mulheres aprenderam a compartilhar projetos e an- gústias, a redeinir valores, tornando-se agentes mais ativos na cons- trução de suas histórias de vida. Ainal, é bom lembrar que a história da

Figura 14 – Campeonato de surfe na Praia do Titanzinho. Fonte: Raimundo Cavalcante Ferreira, 2013.

gente do Titanzinho e do Serviluz compõe uma parte importante da me- mória coletiva de Fortaleza. Portanto, qualquer tentativa de intervenção política neste espaço pode constituir uma contribuição fundamental para valorização do patrimônio ambiental e cultural da cidade.

Referências

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CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2000.

CARUSO, Raimundo C. Aventuras dos jangadeiros do Nordeste. Florianópolis: PANAM Editora, 2012.

CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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PÁDUA, José Augusto. As bases teóricas da história ambiental. Disponível em: <http://www.ecodebate.com.br>. Acesso em: 14 dez. 2010.

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THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Mauro Sá Rego Costa

O

Corpo sem Órgãos nasceu no rádio. Foi num programa de

rádio escrito e dirigido por Antonin Artaud para a ORTF (Ofice de Radiodiffusion Télévision Française), em 28 de novembro de 1947, e que nunca foi transmitido: Para acabar com o julgamento de Deus. Foi censurado porque falava mal dos americanos (em pleno Plano Marshall, em que os EUA iriam “salvar” os países da Europa destruídos pela Segunda Guerra Mundial) e do Cristianismo. Dizia que os americanos só pensavam em guerra, em armas e soldados e em vender seus produtos artiiciais para substituir tudo que era natural; e no lugar do Cristianismo, cantava os ritos do peyote e o pensamento Tarahumara, povo indígena mexicano, de onde Artaud acabava de voltar – de sua última tentativa de curar-se da esquizofrenia. Entre os Tarahumara não há loucos, porque sua psicologia e pedagogia ensinam a lidar e a viver com a consciência paranoica (Tutuguri) e a consciência esquizofrênica (Ciguri). A ex- pressão corpo-sem-órgãos só aparece uma vez, nos últimos versos do poema/programa de rádio. Diz Artaud (1986, p. 161-162):

Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força

Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado de seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade. Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas como no delírio dos bailes populares e esse avesso será

seu verdadeiro lugar.

Gilles Deleuze e Felix Guattari apropriam-se dessa expressão – Corpo sem Órgãos – e a transformam num dos traços marcantes de seu pensamento, em O Anti-Édipo e Mil Platôs, ambos com o subtítulo Capitalismo e Esquizofrenia. É preciso criar para si um Corpo sem Órgãos.

De todo modo você tem um (ou vários), não porque ele pré-exista ou seja dado inteiramente feito – se bem que sob certos aspectos ele pré-exista – mas de todo modo, você faz um, não pode de- sejar sem fazê-lo – e ele espera por você, é um exercício, uma experimentação inevitável, já feita no momento em que você a empreende, não ainda efetuada se você não a começou. Não é tranquilizador, porque você pode falhar. Ou às vezes pode ser aterrorizante, conduzi-lo à morte. Ele é não-desejo, mas também desejo. Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática,

No documento Arte que inventa afetos (páginas 144-166)