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Outras (ceno)grafias na Cidade dos Direitos

No documento Arte que inventa afetos (páginas 95-100)

Na deinição de Deleuze (1996), o enunciado é produto de um agenciamento, sempre coletivo. Como refere o autor, o difícil é fazer conspirar todos os elementos de um conjunto não homogêneo a im de funcionarem juntos. Assim sendo, não é de estranhar que, na Cidade dos Direitos, elementos de natureza diferente (de cunho informacional, sensorial ou expressivo, por exemplo) pudessem ter produzido resul- tados de co-funcionamento para um processo de invenção, como ve- remos a seguir.

Ressalve-se contudo as diiculdades para apresentar a crianças e adolescentes instituições muito fortemente territorializadas, como no caso da Família, Judiciário, Executivo ou Parlamento. Como aproximar tais formações a um campo de signos mais instáveis ou desterritoriali- zantes, na medida em que seus códigos são regidos pela regularidade e tendem a reduzir o campo de experimentação? Portanto, apesar da pre- tendida fuga das iguras identitárias foi inevitável um certo grau de cap- tura em formas socialmente disponíveis e investidas ou, como referem Deleuze e Guattari, “molares”. Mas, por outro lado, se as instituições são agenciamentos molares que repousam em agenciamentos molecu-

lares, resultou daí um campo de experiências que oscilou entre sua pro- jeção em formas de comportamento e de pensamento pré-concebidas e sua exibição num plano de imanência ou de individuação.

Algumas pistas nesse sentido puderam ser sinalizadas. Em pri- meiro lugar, é inegável que a Cidade dos Direitos agenciou uma re- versão do lugar da criança e do adolescente em uma cidade. Geralmente, os prédios públicos e equipamentos culturais são direcionados e fre- quentados pelos adultos. Na Cidade dos Direitos, havia menor pro- porção de adultos circulando e os cenários foram projetados para o usu- fruto e a plena apropriação de crianças e adolescentes. Todavia, como se pretendia ir além do que ampliar seu lugar na circulação da cidade, ou seja, como o desaio maior era dar voz e agenciar suas elaborações sobre a cidade, a proposta pedagógica parece requerer maior reina- mento, uma vez que a intervenção dos adultos ainda foi fortemente marcada pela tendência em falar, fazer e responder pelas crianças.

Contudo, os resultados parecem promissores. Ao mesmo tempo em que as crianças e os adolescentes demonstraram estar referenciados em códigos pré-estabelecidos acerca das instituições e dos agentes de promoção de seus direitos, há indicativos de que apresentam formas distintas dos adultos em apreender a cidade e o Sistema de Garantia de Direitos. Tampouco se constatou olhares unívocos entre as crianças e os adolescentes acerca dessas questões. No caso das crianças com menor idade, por exemplo, constatou-se que seu olhar é mais destituído dos signiicados dos discursos sociais, como no caso da proeminência dos operadores do direito na rede de proteção da infância e adolescência. Para as crianças pequenas, o (a) professor(a) aparece mais investido como agente de proteção de seus direitos apesar de sua desvalorização no imaginário social das cidades.

Por outro lado, conirmou-se a ideia de que a exposição massiva das novas gerações às mídias e as exigências de aprendizagem na edu- cação formal não parecem ter ampliado, automaticamente, o grau e a qualidade de informação acerca de seus direitos. Em contraponto, nos espaços que não apresentaram exigências de desempenho inal, como na maioria dos locais visitados na Cidade, as crianças e os adolescentes parecem realizar apropriações e produções de forma mais rápida do que

através das mídias comerciais com seus recursos tecnológicos mais so- isticados. A hipótese é de que a experiência coletiva de produção de sentidos, como no caso das oicinas de comunicação, favorece a dis- tância de formas estereotipadas, permitindo enunciações singularizadas em maior sintonia com as experiências e os contextos de seus produ- tores – as crianças e os adolescentes.

Dito de outra maneira, observou-se que a oferta de um variado repertório de dispositivos informacionais e comunicacionais não ga- rante o processo de singularização. Dessa forma, cabe problematizar o uso na proposta metodológica da Cidade dos Direitos de alguns re- cursos pedagógicos estandartizados e ordenados, com pouco espaço para as interferências das crianças e dos adolescentes, como no caso das cartilhas ou jogos com baixa interatividade. Outro ponto crítico foi a utilização de um roteiro pré-estabelecido de “visitação”, que compa- tibilizava os tempos de circulação dos vários grupos em diferentes áreas da Cidade, muitas vezes exigindo a realização de experiências com inalização rápida, sem assegurar a temporalidade necessária ao desprendimento da inibição ou dos automatismos, enquanto meca- nismos defensivos diante da desterritorialização produzida. Apesar do projeto da Cidade ter duração deinida e pretensão de maior escala em sua abrangência, uma menor delimitação temporal e circulação espa- cial poderia ter propiciado melhores resultados na sustentação de lu- gares de desconhecimento. Entretanto, talvez a força desse projeto re- sida, justamente, em sua sintonia com o caráter inito e delimitado dos empreendimentos humanos.

De um modo geral, o encontro de crianças e adolescentes entre seus pares (de outras escolas e projetos) ou com adultos (autoridades, delegados da conferência, convidados, monitores da Cidade) se revelou mais signiicativo quanto maior a intensidade vivenciada no comparti- lhamento de experiências. Como referiu o “prefeito”: “Esse momento para mim foi de uma lição extrema.25 [...] Vou levar esse ambiente para a minha cidade e conversar com as crianças e adolescentes na prefei-

tura. Quero mostrar os direitos que eles têm e ouvir as suas reivindica- ções. Só assim aproximaremos o nosso sertão dessa cidade que viven- ciamos aqui”.

Mesmo transitando pela Cidade através dos discursos sociais, as crianças e os adolescentes buscaram atravessar os signos dados. Foi assim que no painel e nas mensagens deixadas nas árvores predo- minou o gesto de inscrição de seu nome, sinalizando a preocupação em sair do anonimato e demarcar a posição diante do outro e o seu lugar no espaço público. Ou talvez, evidencie ainda um recurso de codiicação diante de “lições extremas”, para contornar os luxos des- codiicados na experimentação, de dar-lhes o devido lugar e, de certo modo, governá-los.

Nesse sentido, resta a impressão inal de que, com maior radica- lidade, as crianças e os adolescentes deveriam ter sido envolvidas desde a concepção desse projeto ou da escrita desse percurso. Oxalá outras (ceno)graias sejam construídas nessa perspectiva...

Referências

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Paris: Flammarion, 1996. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990. GUATTARI, Felix. Revolução molecular: pulsações políticas do de- sejo. São Paulo: Brasiliense, 1987.

MEIRA, Ana Marta. Olhares das crianças sobre a cidade de Porto Alegre: infância contemporânea, psicanálise, educação e arte. 2011. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2011.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos da Criança. 1989. Disponível em: <http://www.unicef.org/ brazil/pt/resources_10120.htm>. Acesso: 2 de maio 2014.

SANTOS, Gilberto Lima dos; CHAVES, Antonio Marcos. Signiicados que as crianças atribuem a seus direitos. Revista Brasileira Crescimento e Desenvolvimento Humano, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 87-97, 2007.

TEIXEIRA, Ana Claudia Chaves; SOUZA, Clóvis Henrique Leite de; LIMA, Paula Pompeu Fiúza. Arquitetura da participação no Brasil: uma leitura das representações políticas em espaços partici- pativos nacionais. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2012. v. 1735.

REPENSAR A POLÍTICA

No documento Arte que inventa afetos (páginas 95-100)