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6.2 Os sujeitos da ONG no dia a dia da Escola Redescobrir e a presença da Escola no

6.2.4 A Dialogicidade

“Eu acho assim, que o que assusta a gente é o desconhecido. E as coisas estando claras, a metodologia estando clara, a gente trabalha sem se assustar com as coisas que possam surgir. É claro que vão surgir, todo dia tem um desafio novo, mas com clareza eu acho que isso se torna mais simples.” (Educadora de artes visuais).

A metodologia da ONG, de acordo com a sua PPE (2014), concretiza-se e encontra sua forma desenhada diariamente entre muitas construções e outras tantas desconstruções. A intenção é promover o diálogo e contribuir para que os educandos e os educadores se descubram nele. Para Freire (1996), a dialogicidade está ancorada no tripé educador-educando-objeto do conhecimento, e, para que ela se efetive de fato, o principal instrumento é a pesquisa do universo vocabular, cultural, e das condições de vida dos educandos.

Esse foi um ponto que pude observar claramente no cotidiano das práticas educativas. O cuidado com o universo vocabular das crianças foi algo que realmente me chamou a atenção. A minha chegada ao projeto foi explicada para as crianças de cada unidade, com muita cautela, havia uma preocupação com as palavras para explicar minha presença, de forma que as crianças pudessem entender. E, a cada dia que passava, os educadores perguntavam, na roda inicial, se tinha alguém que ainda não me conhecia e abriam espaço para que eu pudesse me apresentar novamente e para que eles pudessem tirar dúvidas.

colocam frente aos educandos também dizem respeito a como esses profissionais entendem essa relação dialógica entre esses sujeitos. Gonzaga, o educador de dança, explica que, mesmo durante as oficinas, não gosta de ficar muito em pé, porque passa uma sensação de poder, assim ele fica mais sentado, na altura das crianças. Esse é um ponto que distancia a atuação da ONG daquilo que está posto no cotidiano escolar, no qual é comum o professor manter-se de pé, na frente da sala, e os educandos, sentados, em filas, reproduzindo uma relação de poder entre saber e poder e dominante e dominado.

Almeida (2014) expõe que, nas salas de aula, há uma determinada disposição espacial das mesas, carteiras: um espaço destinado à mesa do professor, cuja disposição se encontra à frente das carteiras dos alunos, as quais, geralmente, estão dispostas em filas, e essa relação na organização do mobiliário já define uma visão de como é o processo de ensino e aprendizagem. O professor situa-se num lugar de destaque, às vezes ainda mais alto que o restante da sala, o que lhe confere, espacialmente, uma visibilidade geral e, consequentemente, uma autoridade para poder controlar, vigiar e disciplinar por meio de um simples olhar, além de representar e diferenciar quem sabe e deve ensinar de quem deve aprender.

Costa (2001), por sua vez, afirma que é importante o educador procurar manter-se no mesmo nível de altura da criança ou do adolescente, pois essa horizontalidade física sinaliza o equilíbrio da relação em termos de poder, funcionando como um facilitador da expressividade do educando.

Nessa perspectiva, em conversa com o coordenador de unidade Luis, ele esclarece que, ao compreender o trabalho artístico como promotor do desenvolvimento humano, é preciso compreender também que as ações a serem desenvolvidas com as crianças não podem ser impostas e que não só o estabelecimento do diálogo mas também a maneira como ele acontece são longos caminhos, os quais envolvem ações, reações, práticas e atitudes que, nem sempre, dão um retorno esperado imediatamente. Ele coloca ainda que se trata de um aprendizado constante de saber ouvir, e esse saber ouvir não é só o que o menino fala mas também o que ele expressa de outras formas.

A fala de Luiz converge para os depoimentos de duas educadoras de dança, as quais são ex-educandas do projeto desenvolvido pela ONG.

“Eu aprendi na Brincadeira de Roda que, se o menino não fica na minha oficina, se ele se exclui, ele está querendo dizer alguma coisa. Alguma coisa está errada em mim, a minha oficina não está legal. Então eu tenho que mudar meu planejamento. O difícil pra mim é isso, é fazer um planejamento que faça com que

os meninos queiram ficar na minha aula, sem sair. Eu praticamente nunca mando menino ir conversar com a coordenadora, minha equipe sabe disso. Porque isso é o mais fácil de eu fazer, o difícil é eu conseguir ficar com o menino na oficina. Eu falo: se você não está bem, não precisa fazer, só assiste a aula e quando você quiser você pode entrar de novo. Isso me faz repensar o tempo todo a minha prática. Eu lembro muito de mim, eu vejo que eu mudei muito, eu era muito terrível. A educadora de dança tinha que me buscar no meio dos matos pra fazer aula. Eu lembro que um dia ela foi conversar comigo:”

Clara: – O que está acontecendo? Mari: – Clara, eu não gosto de balé.

Clara: – Mari, o que você quer que eu faça pra aula ficar melhor?

“Ela preocupada, né, porque ela é psicóloga, e aí eles sempre acham que a culpa é deles [risos], que eles que têm que dar um jeito:”

Mari: – Eu não gosto dessas músicas, essas músicas lentas. Clara: – Então tá, eu vou dar um jeito.

“Aí quando foi na outra aula, ela começou a dar a mesma aula só que em música de hip-hop. Aí você faz port de brás, plié59, e você não percebe. Depois eu fui perceber que eu fazia as mesmas coisas, mas não percebia por causa da música. Aquelas músicas lentas demais eu não dava conta, e aí ela começou a dar aula, assim, com essas músicas, e deu super certo. Hoje, eu dou minha aula pensando nisso: ‘Ah, os meninos vão achar chato se eu colocar...’” (Mari, educadora de dança).

“A minha dificuldade é controlar minha ansiedade. Às vezes eu quero que a criança me dê um retorno rápido e, muitas vezes, esse retorno que elas vão dar não é o que eu espero, mas o que ela quer me mostrar que ela aprendeu. O que eu aprendi com a Brincadeira de Roda foi ter amor pelo o que eu faço. As dificuldades vão aparecer sempre, mas eu vou estar lá sempre aberta para escutar todo mundo, tentar resolver e fazer com que as coisas fiquem mais claras pra mim mesmo. Quando a gente conversa abertamente com as crianças tudo fica diferente, parece que é mais fácil e a gente pega amor mesmo pelas coisas aqui. Eu vou fazer as coisas sempre com amor, eu amo esse projeto.” (Educadora e ex- educanda do projeto).

As falas dessas duas educadoras dialogam diretamente com Freire (1996) quando ele aponta que, a partir do momento em que o educador escuta o educando, ele aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao educando, em uma fala com este. O segundo depoimento converge para Freire (1993) no momento em que ele relaciona o

ato de educar com amor, atenção e doação, afirmando que não há educação sem amor. O amor implica luta contra o egoísmo. Quem não é capaz de amar os seres inacabados não pode educar. Não há educação imposta, como não há amor imposto. Quem não ama não compreende o próximo, não o respeita.