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Observamos claramente que a escrita recebe maior valorização em relação à fala desde tempos, porém, devemos iniciar pensando a história da escrita da seguinte maneira, segundo Calvet (201, p. 140-141): “todas as sociedades de tradição escrita foram, em algum momento de sua história, sociedades de tradição oral. Os homens falaram antes de escrever e organizaram sua sociedade em função da fala”.

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Nesse sentido, todo o progresso atribuído à escrita evidencia um longo e processual caminho que não se encerra na escrita por ela mesma, ou na invenção do alfabeto em si, mas que antes disso seu desenvolvimento se deu pautado na fala. Portanto, não podemos estabelecer uma divisão intransponível em relação às duas, pois, as fronteiras entre a oralidade e a escrita não são impermeáveis.

De acordo com Higounet (2003, p. 10), “a história da humanidade se divide em duas imensas eras: antes e a partir da escrita”, ou seja, por um longo período a humanidade sobreviveu sem a escrita, tendo a tradição oral como fonte principal de comunicação. Após esse período, tem-se a era a partir da escrita.

O surgimento da escrita pode ser observado diante da necessidade que o homem teve de fixar seus pensamentos; utilizando a escrita em uma tentativa para “imobilizar, para fixar a linguagem articulada, por essência fugidia” (HIGOUNET, 2003, p. 9). Ou seja, havia a necessidade de “um meio de expressão permanente” e para isso, “o homem primitivo recorreu a engenhosos arranjos de objetos simbólicos ou a sinais materiais, nós, entalhes, desenhos” (HIGOUNET, 2003, p. 9).

Observamos, desse modo, que “qualquer que seja seu lugar de nascimento, a escrita foi ‘inventada’ por necessidades práticas (fazer contas, redigir contratos, leis)” (CALVET, 2011, p. 122). Vemos, assim, que foi a partir do desenvolvimento do homem que ocorreu a necessidade da escrita, pois por meio dela e da necessidade de guardar e registrar as ideias surgidas entre os sujeitos foi possível perpetuar a história, narrar diversos acontecimentos históricos, bem como servir como suporte necessário para fixar os dados do passado e do presente. Nesse sentido, podemos dizer que aos poucos a escrita passou a ser cristalizada como um ícone da evolução dos povos (PINTO, 2012).

Essa necessidade de comunicação e expressão do pensamento tornou nítida também a necessidade de se fazer compreensível e de se fazer parte da sociedade, pois, “a escrita [...] dá acesso direto ao mundo das ideias, reproduz bem a linguagem articulada, permite ainda apreender o pensamento e fazê-lo atravessar o espaço e o tempo” (HIGOUNET, 2003, p. 10). Sendo assim, fixar

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no papel tudo o que era realizado por meio da oralidade tornou a escrita um forte mecanismo de poder, já que passou a receber maior valorização em relação à fala.

Podemos observar que a trajetória inicial desenvolvida pela escrita, diante do desenvolvimento e da evolução das sociedades, se deu pautada nas classes sociais que estavam no poder. Ela “nasceu de uma necessidade do poder, quer ele seja religioso ou feudal, e se difundiu muito lentamente para o conjunto da população” (CALVET, 2011, p. 122). O problema atribuído a essa valorização e ascensão rápida foi que as sociedades com escrita passaram a enxergar as sociedades sem escrita como inferiores, justamente pela ausência de uma escrita que marcasse e fixasse suas identidades na história.

Esse fato fica visível se pensarmos na função que os escribas desempenhavam na época. Pois, eram eles que liam e escreviam para aquelas pessoas que tinham níveis baixos de escolaridade, o que, de certa forma, fazia com que fossem tidos como privilegiados e dominantes do sistema de escrita; a eles era atribuído o poder, por isso não faziam questão que a população dominasse esse sistema, fazendo com que a difusão a esse grupo (majoritário) se tornasse mais lenta. Notamos, assim, que a escrita se tornou uma arma de exploração do homem pelo homem, em que quem tinha autoridade é quem ditava as regras.

Segundo as ideias discutidas por Harris (2000) na proposta integracionista11, por um bom tempo a escrita em si não contribuiu significativamente para a comunicação dentro da sociedade humana, sendo relevante apenas às pessoas que queriam adquirir poder e prestígio. Harris reitera, diante disso, que a função desenvolvida pela escrita não era como a função desenvolvida pela oralidade, pois a escrita não unia a comunidade, mas a dividia.

Com a evolução da escrita, podemos notar que ela trouxe implicações que remetem, de um modo geral, à profundas alterações no modo de se pensar o processo de escrever, ler e ver propriamente a função da língua(gem)

11De acordo com Correa (2009a), a proposta integracionista é “perpassada pelo interesse por questões políticas, sociais, legais, psicológicas e filosóficas e, por sua vez, com as implicações desses assuntos relacionados a abordagens de linguagem e comunicação. O integracionismo não se preocupa apenas com questões críticas e culturais sobre a linguagem, mas com nossa consciência e responsabilidade social e com a nossa participação como teóricos na vida política e social” (CORREA, 2009a, p. 285).

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desempenhada nas culturas. Atualmente, “a tecnologia moderna disponibiliza recursos para a leitura e para a escrita que nunca haviam sido disponibilizados antes12” (HARRIS, 2000, prefácio VIII).

Diante de tais alterações ocorridas, notamos que ultimamente as modificações também são bastante significativas em relação à escrita, pois variados aspectos e características distintas em relação a ela têm se instaurado na sociedade.

Por meio dos deslocamentos dos conceitos, antes tidos como fixos e fechados, e do próprio desenvolvimento e evolução do homem, observamos avanços em direção a novos contextos globalizados e multimidiatizados, os quais não possuem mais um único centro, havendo, nesse sentido, o surgimento de uma polifonia recombinante de significados (PINTO, 2012).

Em relação à escrita, essa polifonia vem de encontro à hegemonia criada em torno da predominância de uma escrita única, fundamentada na suposta unidade da língua nacional. Em outras palavras, podemos dizer que a supremacia e a valorização da escrita, bem como o uso da gramática normativa, não são questionadas pelo modelo escolar vigente, ao contrário, são valorizadas, mesmo que novos aspectos referentes à escrita possam ser vislumbrados.

Kramsch (2014) nos diz que,

A globalização, em conjunto com a mídia global e as tecnologias de comunicação global, tem exacerbado a multiplicidade de códigos, os meios e as formas de dar sentido à vida cotidiana. Se olharmos para a forma como os jovens de hoje utilizam a língua no facebook, twitter e em suas mensagens de texto, notamos uma proliferação da atividade semiótica, um desrespeito saudável pela autoridade acadêmica (regras e convenções ortográficas, gramaticais e lexicais), hibridismos e alternância de códigos, explosões multimodais de criatividade e inovação. (KRAMSCH, 2014, p. 12)

Porém, mesmo diante das mudanças nas práticas linguísticas cotidianas, Pinto (2014) observa que ainda em pleno século XXI o

continuum linguístico nacional é interpretado como variação monolíngue, ou seja, uma enorme pluralidade de práticas linguísticas é subsumida como sendo a mesma língua apesar das diferenças regionais. (PINTO, 2014, p. 65)

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The modern technology makes available resources for reading and writing that have never been available before (HARRIS, 2000, prefácio VIII).

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Fato esse também visualizado na escrita. Em que a escrita que deve ser valorizada é aquela ditada pela sociedade, a tida como “correta”, assim como a língua padrão.

Essa hegemonia que perdura até o momento, tanto em relação à língua como em relação à escrita, é fruto de

políticas linguísticas, explícitas ou implícitas, executadas desde a chegada dos portugueses, que responderam às irregularidades dos contatos, mas principalmente procuraram regularizar usos linguísticos e promover ou reprimir acesso a recursos linguísticos na busca pelo controle do território nacional e das relações socioeconômicas e simbólicas que aqui se construíram e se constroem. (PINTO, 2012, p. 174)

Vemos, desse modo, que a necessidade do domínio da escrita exige o entendimento de que as palavras e as ações desenvolvidas e fixadas por meio dela não são neutras, pois são cercadas de poder de significação e dominação, os quais são reforçados por meio dos atos de fala, reiterados, como nos evidencia Pinto (2012), desde a chegada dos portugueses.

A fim de dar continuidade a essa discussão, a seguir abordaremos o poder representado pela escrita, decorrência dos atos de fala (AUSTIN, 1962).