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Língua(gem), escrita e ideologia: o poder expresso pelas palavras

Considerando, então, o processo de desenvolvimento da escrita, podemos observar que as escolhas relacionadas às línguas e fixadas por meio da escrita tornaram o sistema um tanto quanto preconceituoso e excludente, já que ela se sobressai em relação à fala na sociedade grafocêntrica. Diante de sua história podemos observar que a cultura que não possuía escrita precisou se adaptar à cultura letrada, tendo para isso, muitas vezes, que abandonar ou ofuscar suas culturas e tradições em função de uma homogeneidade, esta reforçada por meio do uso da escrita.

Muito distante dos fatos históricos ocorridos há séculos estamos nós, vivenciando e perpetuando uma tradição de supervalorização da escrita, em que “as regras do bem falar e bem escrever são assumidas como uma espécie

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de verdade imanente” (BRITTO, 2002, p. 147), mesmo estando em uma sociedade altamente marcada pela heterogeneidade.

Britto (2002) nos diz também que,

não dá para pensar os processos linguísticos, os processos de análise da língua, nem ensino de língua e de análise de cultura sem assumir o conflito. Não existe a possibilidade de operar com símbolos e formas de linguagem pensando que aí tem ingenuidade ou neutralidade. Não dá para negar o conflito. (BRITTO, 2002, p. 154)

Por esse viés é preciso compreender a escrita como algo que é perpassado de poder e dominação, visto o papel fundamental (de “empoderamento”) que desenvolve na sociedade. Podemos notar que, na maioria das vezes, pessoas que pertencem a uma comunidade letrada possuem a fama de serem superiores, enquanto que os que não dominam esse padrão esperado a contento são vistos com maus olhos diante da sociedade.

Nesse sentido, ao pensarmos na língua(gem) e na escrita vinculadas ao poder vamos observar que são essas as palavras que bem descrevem os padrões da sociedade (excludente) da qual fazemos parte, pois quem “domina” a língua(gem) e a escrita padrão detém o poder nas mãos, como salientamos.

Essa hierarquização social que acontece evidencia, porém, que “nem todos os integrantes de uma sociedade têm acesso a todas as variedades e muito menos a todos os conteúdos referenciais” (GNERRE, 1985, p. 4). Isto é, “somente uma parte dos integrantes das sociedades complexas, por exemplo, tem acesso a uma variedade ‘culta’ ou ‘padrão’, considerada geralmente ‘a língua’, e associada tipicamente a conteúdos de prestígio” (GNERRE, 1985, p. 4).

Esse fato é bastante visível na sociedade grafocêntrica, tornando, desse modo, a hierarquização ainda mais aparente e a valorização de umas línguas em detrimento de outras ainda mais forte, visto o prestígio que lhes são atribuídas mediante uma escala de valores constituída socialmente.

Se observarmos o contexto no qual estamos inseridos, vamos notar que socialmente uma variedade linguística vale o que vale o seu falante (GNERRE, 1985). Dessa forma, uma variedade ou uma língua desprestigiada reflete, consequentemente, em um grupo de indivíduos também desprestigiados, e

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muitas vezes, excluídos e marginalizados da sociedade. Em outras palavras, a questão social afeta diretamente no momento das escolhas daquilo que é válido ou não, em que esse julgamento por padrões de hierarquia acaba por ser critério de grande relevância para produzir determinados fins e determinadas escolhas.

Esse fato é legitimado devido à presença da escrita, pois ela tem grande importância dentro desse processo de ascensão de uma variedade linguística até o posto de variedade “padrão”, por exemplo. Pois, normalmente, o que está escrito, principalmente em relação ao que é falado, traz uma forte ideia de legitimação e ajuda a perpetuar as regras e os preconceitos sociais embutidos na escrita, os quais são reforçados por quem tem o “domínio” desse sistema, mas também por quem não o tem, já que aquilo que está escrito parece ter muito mais valor do que aquilo que não está. “Tudo o que está escrito é importante, porque foi escrito” (BEDUSCHI, 1982, p. 92 apud GNERRE, 1985, p. 39) na visão de inúmeras pessoas.

Gnerre (1985) nos diz que:

o passo fundamental na afirmação de uma variedade sobre as outras é sua associação à escrita e, consequentemente, sua transformação em uma variedade usada na transmissão de informações de ordem política e ‘cultural’. (GNERRE, 1985, p. 4)

Esse poder atribuído à língua por possuir uma escrita justifica sua necessidade de se tornar valorizada e possuir status, passando então a legitimar a fala. Bagno (2013) evidencia que,

a velha e falaciosa equiparação – escrita = formalidade; fala = informalidade – se originou, sem dúvida, do preconceito dos primeiros gramáticos contra a língua falada e de sua atitude de hipervalorização da escrita literária antiga, tomada como única forma ‘correta’ de uso da língua. (BAGNO, 2013, p. 91)

Preconceito esse decorrente dos fatos históricos e que perdura até os dias de hoje, privando muitas pessoas de se fazerem ouvidas. E quem não adquiriu os “conhecimentos fundamentais” da escrita, que valor(es) lhes são atribuídos, já que “o código aceito ‘oficialmente’ pelo poder é apontado como neutro e superior, e todos os cidadãos têm que produzi-lo e entendê-lo nas

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relações de poder”? (GNERRE, 1985, p. 6). Que valor tem aquilo que não é escrito? Ou, que valor é atribuído aos diferenciados modos de escrita?

A relação verticalizada construída entre a escrita e a fala parece nos evidenciar que “a função primária da comunicação escrita é a de favorecer a escravidão” (GNERRE, 1985, p. 44). Ou seja, “o poder da palavra é o poder de mobilizar a autoridade acumulada pelo falante e concentrá-la num ato linguístico” (BOURDIEU, 1977 apud GNERRE, 1985, p. 3), tornando a língua(gem) e a escrita em armas de dominação que aprisionam e torturam quem não as domina minimamente. “A começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder” (GNERRE, 1985, p. 16).

Por isso há a necessidade de pensarmos a língua(gem) não somente como um instrumento de comunicação ou mesmo de conhecimento, precisamos enxergá-la como um instrumento de poder, como já viemos destacando, pois muitas das vezes não procuramos somente ser compreendidos, mas também obedecidos, acreditados, respeitados, reconhecidos... E, essa autoridade de que nos revestimos, fundamenta a questão da dominação, a qual está diretamente relacionada a questões políticas.

Assim,

enquanto produto da dominação política incessantemente reproduzida por instituições capazes de impor o reconhecimento universal da língua dominante, a integração numa mesma ‘comunidade linguística’ constitui a condição da instauração de relações de dominação linguística. (BOURDIEU, 2008, p. 32 – grifos do autor)

Isto é, pertencer à determinada comunidade linguística garante status, o qual é mantido por meio da língua que predomina como sendo a oficial e a que tem maior prestígio, por isso precisa ser aprendida e exaltada, a qual é reforçada pelo padrão de uma escrita única, como já vimos.

Um exemplo bastante claro nesse sentido é o sistema de ensino, que “acaba contribuindo fortemente para construir enquanto tais os usos dominados da língua ao consagrar o uso dominante como o único legítimo, apenas pelo fato de inculcá-lo” (BOURDIEU, 2008, p. 47). Essa inculcação faz com que haja

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o apagamento da língua(gem) e, inclusive, de seus falantes, já que tudo aquilo que foge do padrão único legítimo pode ser considerado como erro.

Observamos, assim, que a expressão “mercado”, utilizada no discurso de Bourdieu (2008), garante o entendimento desse jogo a que estamos dispostos diariamente, pois, mercado lembra preço e preço está diretamente relacionado à valorização e desvalorização, termos que nos remetem à questão da hierarquia, muito presente na sociedade, já que quem possui maior domínio sobre a escrita e sobre a norma que é valorizada possui maior respeito e prestígio social, enquanto que a outra parcela, sofre uma sistemática desvalorização (BOURDIEU, 2008) mediante o poder simbólico exercido pela linguagem.

Essa

aceitabilidade social não se reduz apenas à gramaticalidade. Os locutores desprovidos de competência legítima se encontram de fato excluídos dos universos sociais onde ela é exigida, ou então, se veem condenados ao silêncio. (BOURDIEU, 2008, p. 42)

Este consumo ostentador de aprendizagem, que valoriza e desvaloriza, é legitimado pela escola a partir do momento em que nós, professores, estabelecemos os conceitos de “certo” e “errado”, cobrados incessantemente nos exames e provas realizados, reforçando assim, a questão do pertencimento a determinado grupo (dos que sabem X os que não sabem), caindo então no sistema em que, pode mais quem tem maior poder. Nesse caso, maior poder linguístico.

Nesse sentido, reforçar o uso do “bem falar e escrever” significa essa necessidade de enquadramento e pertencimento à sociedade que nos cerca, a fim de que essa inserção possa nos garantir, minimamente, como integrantes do sistema, visto que “existir socialmente é também ser percebido, aliás, percebido como distinto” (BOURDIEU, 2008, p. 112).

Assim, “a competência, adquirida no contexto pela prática, comporta, de modo inarredável, o domínio prático de um uso da língua e o domínio prático das situações nas quais esse uso da língua é socialmente aceitável” (BOURDIEU, 2008, p. 70), mas, para que essa prática seja desenvolvida e

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sejamos socialmente aceitáveis, é necessário, primeiramente, esse espaço, que é direito de todos. Senão, seremos fadados ao silêncio.

Desse modo, a política de imposição de uma língua e/ou de uma escrita padrão, passa, primeiramente, pelo Estado e, posteriormente, pela escola, a qual, por meio do seu discurso permeado pelo poder, elege, de certa forma, quem são os dominantes e quem são os dominados. Ou seja, sendo a escola uma instituição importante, cercada por forças simbólicas atuando constantemente, observamos sua forte influência na constituição desse discurso homogeneizador de mercado linguístico (BOURDIEU, 2008).

Vemos, desse modo, que a escola desenvolve um papel de reprodutora das decisões tomadas pelo Estado e pela própria sociedade por meio, muitas vezes, de imposições aos alunos. Os professores acabam tornando-se cúmplices de tal desenvolvimento, pois, não são críticos o suficiente para perverter a ordem instaurada. E assim, muitas vezes, se constrói uma escola constituída na passividade e resistente à mudança.

Diante disso, notamos que a autonomia, que poderia fazer parte da rotina dos professores e dos alunos no ambiente escolar, e, inclusive, da vida em sociedade, fica condicionada a decisões tomadas por uma pequena parcela que detém o poder.

Em outras palavras, podemos identificar que

é pouco crível que os professores possam contribuir para estabelecer metodologias criadoras que emancipem os alunos quando estes estão sob um tipo de prática altamente controlada. É preciso partir de um certo isomorfismo, necessário entre condições de desenvolvimento profissional do docente e condições de desenvolvimento dos alunos nas situações escolares planejadas, em certa medida, pelos professores. (SACRISTAN, 2000, p. 48)

Esse “controle” que acontece na escola pode ser entendido como decorrência do controle que os professores ainda durante sua formação sofreram ou sofrem dentro das instituições. O silêncio vivenciado nas salas de aula, muitas vezes, é resultado de processos anteriores, já que os professores também “são frutos desse silêncio mortificador” (FERRAREZI JR, 2014, p. 28).

Como exemplo disso, Ferrarezi Jr (2014, p. 27) nos diz que, “é difícil exigir de um aluno universitário que descubra que ensinar língua materna é

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algo que se faz para a vida, se o que ele vê na sua formação superior não é nada disso”.

Vemos, desse modo, que os discursos que circulam e são reiterados insistentemente na sociedade são reflexo de uma tradição que é perpassada cotidianamente, constituindo, assim, uma espécie de resistência à mudança. Este é um problema que vem se desenvolvendo durante anos, não apenas em sala de aula, pois, o que se observa é que

o conceito de educação silenciosa ainda domina as mentes dos pais dos alunos (eles, os pais, são frutos desse silêncio mortificador), da maioria dos professores (eles, os professores, são frutos desse silêncio mortificador), da maioria dos diretores e supervisores (eles, os diretores e supervisores, são fruto desse silêncio mortificador) e está presente na quase totalidade dos livros didáticos, absolutamente mortificadores e cheios de regras (pois seus autores são frutos desse silêncio mortificador). (FERRAREZI JR, 2014, p. 28)

Este é um ciclo vicioso que se manifesta e prejudica a todos os envolvidos, o qual recebe maior valorização dentro das escolas, pois é por meio das palavras utilizadas pela escola e na escola que o uso da língua(gem) instituída adquire poder.

Logo, observamos que o poder expresso pelas palavras é revestido daquilo que é externo a elas, assim o padrão de escrita priorizado nas escolas se torna uma arma nas mãos de quem sabe utilizá-la de “forma adequada”, tornando-a uma aliada no poder de convencimento e dominação.

Em meio à luta para a imposição da visão legítima, na qual a ciência se encontra inevitavelmente engajada, os agentes detém um poder

proporcional a seu capital simbólico, ou seja, ao reconhecimento que

recebem de um grupo: a autoridade que funda a eficácia performativa do discurso é um percipi, um ser conhecido e reconhecido, que permite impor um percipere, ou melhor, de se impor com se estivesse impondo oficialmente, perante todos e em nome de todos, o consenso sobre o sentido do mundo social que funda o senso comum. (BOURDIEU, 2008, p. 82 – grifos do autor)

Ao alimentarmos, pois, as aparências a que somos dispostos diariamente, julgamentos que fazemos, em que eu sou melhor que o outro ou em que o outro é melhor, mais competente que eu, reforçamos ainda mais esse distanciamento entre “quem sabe” e “quem não sabe” se utilizar da

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língua(gem), além, é claro, de reforçarmos ainda mais o discurso da hegemonia.

Esse rebaixamento mediante o jogo das forças distintivas nos faz fazer e desfazer grupos (BOURDIEU, 2008), nos tornando sempre inferiores e não merecedores daquilo que conquistamos, visto que temos como referência sempre aquele que “se deu melhor” e que, consequentemente, se torna superior.

Nesse sentido,

todo e qualquer grupo é palco de uma luta pela imposição do princípio legítimo de construção dos grupos, sendo que qualquer distribuição de propriedades sociais, sexo ou idade, instrução ou riqueza, pode alicerçar divisões e lutas propriamente políticas. (BOURDIEU, 2008, p. 120)

Dessa forma, é que precisamos compreender a língua(gem) como sendo marcada por ideologias que imprimem uma hierarquia fortemente estruturada, já que o funcionamento da língua está diretamente relacionado ao emprego de regras, normas e terminologias, as quais tornam o processo de ensino e aprendizagem mais delicado e complexo, assim os sujeitos precisam agir em conformidade com os planejamentos sobre a língua.

As ideologias que cercam a língua(gem) fazem com que a escrita se torne, assim, instrumento hegemônico de poder, pois saber escrever uma variedade padrão significa possuir status e possuir status significa ser aceito socialmente.

Seguindo esse mesmo viés, segundo Britto (2002),

a ideia básica que predomina nas sociedades de escrita, como é o caso da sociedade ocidental, é que existe uma forma correta de falar – a norma culta ou língua formal ou ainda língua padrão, entre outros nomes – e que conhecer e saber usar essa forma é importante para poder participar ativamente da sociedade. (BRITTO, 2002, p. 146)

Analisando os pontos acima elencados, vamos observar que certos aspectos e discursos desenvolvidos dentro dos muros escolares passaram a ser considerados como consensos (PINTO, 2012; 2014), já que, ao que parece, se tornaram espécies de verdades padronizadas e inquestionáveis

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mediante os atos de fala (AUSTIN, 1962) reiterados insistentemente no âmbito escolar.

Muitos dos discursos que circulam na escola são tomados como consensos e coerções, pois estão diretamente relacionados aos discursos hegemonicamente construídos. De acordo com Pinto (2014, p. 62), os discursos hegemônicos “não são estáticos e nem soberanos sobre seus efeitos. Eles circulam em contradição uns com os outros, e experimentam tanto cumplicidade quanto resistência na sua atualidade local”.

Dessa forma, mediante tais discursos, forças de poder são adquiridas a fim de sustentar as hegemonias que circulam na escola e também socialmente. Podemos notar diante disso, que discursos que condicionam que há a supremacia da escrita em relação à fala, a inculcação de que há uma língua e uma escrita padrão a serem seguidas e de que quem domina a leitura e a escrita são consideradas pessoas letradas, por exemplo, são constantemente reafirmados em sala de aula e adquirem sua eficácia performativa no discurso, conforme salienta Bourdieu (2008), e transformam-se em consensos e coerções, segundo Pinto (2014).

Ainda de acordo Pinto (2012), três hegemonias se desenvolvem em torno da língua na sociedade, mas principalmente na escola, sendo elas:

A unidade linguística (variação monolíngue), a hierarquia escrita/oralidade e a correspondência linear língua/escrita/cognição. Essas hegemonias remetem a três modelos interpretativos da Modernidade colonial: o modelo romântico alemão de língua (uma língua, uma cultura, um povo), o modelo filológico de estudos das línguas (a escrita como fonte principal de conhecimento sobre as línguas) e o modelo evolucionista de escrita (a escrita como ícone de civilização). (PINTO, 2012, p. 174)

Podemos observar, assim, que, de fato, os discursos empregados hoje têm reflexos de “verdades” impostas no passado, as quais são sustentadas pelos atos de fala (AUSTIN, 1962) e esses atos de fala, sustentados pelos professores em sala de aula, produzem efeitos significativos na língua(gem) que circula no âmbito escolar. Efeitos que afetam diretamente os alunos, pois “os alunos que brincam com a língua(gem) em blogs, tweets, mensagens instantâneas e suas formas corriqueiras de falar, tendem a ficar impacientes com as regras gramaticais e lexicais” (KRAMSCH, 2014, p. 13), decorrendo,

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então, em falta de interesse e estímulos necessários para que esses alunos entendam a escrita como uma forma de agregarem conhecimento.

Observando esses modelos hegemônicos empregados e diante de novos modelos de interação, podemos visualizar, segundo Pinto (2012), que duas contradições se estabelecem em relação a esses discursos hegemônicos sobre língua no Brasil. Sendo elas:

A primeira contradição é operada por mudanças de projeto do sistema mundo/moderno/colonial: por um lado, a ênfase nos grandes centros mercadológicos atua em direção oposta ao controle nacionalista do modelo romântico alemão, na medida em que torna transnacional qualquer ação (econômica, social, cultural, política, linguística); por outro lado, as forças de subjetivação do consumismo (satisfação imediata, provisoriedade, insegurança e fragilidade) e da textualidade digital (rapidez, fragmentação, excesso e lacunas) atuam contra os modelos filológico e evolucionista, na medida em que ameaçam a estabilidade e a linearidade da escrita e sua articulação interpretativa hierárquica em instituições modernas (Estado, Escola, Universidade). [...] A segunda contradição é operada pela silenciosa e anônima perseverança do projeto moderno, a diferença colonial (MIGNOLO, 2003) que mantém a concepção temporal linear e, assim, os mesmos três modelos consolidados no século XVIII como parâmetros discursivos para se falar de língua. A persistência simbólica da escrita monolíngue padronizada como espaço privilegiado de expressão da cognição é prova dessa perseverança. A mídia e a instituição escolar, por exemplo, insistem que a oralidade e a diglossia são situações pré-civilizatórias. (PINTO, 2012, p. 176-177 – grifos do autor)

Dessa forma, notamos que os modos como têm se pensado a língua(gem) e a escrita atualmente, diante da entrada de novos padrões globalizados e multimidiatizados em diversos contextos, incluindo a escola, têm estado em conflito com as hegemonias que se estabelecem na sociedade, pondo à prova, desse modo, a visão única de língua(gem) e de escrita, e, até mesmo, do que seja ensinar ou falar a língua portuguesa (PINTO, 2014).

Portanto, podemos observar que um embate se sustenta no âmbito escolar, pois são duas forças distintas que conduzem as noções de língua(gem) e de escrita para lados diferentes atualmente. De um lado, temos o consenso instaurado de que há uma língua e uma escrita únicas e, de outro, os novos modelos de interação que nos conduzem para o questionamento desta “verdade” que nos foi imposta por meio dos atos de fala, visto que, atualmente, os conceitos fixos e fechados não mais dão conta de atender as necessidades individuais e coletivas advindas com as transformações ocorridas.

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No entanto, pensando no ensino escolar, podemos perceber também que ambas as forças se sustentam, pois não há como abrir mão de uma das duas, ou seja, não há como abrirmos mão dos consensos, mas também não há como vivermos pelos consensos, já que nos são exigidas posturas diferenciadas.

Nesse sentido, precisamos compreender que,

enquanto os estudantes têm que aprender, é claro, como conjugar verbos, formar o plural de substantivos [...], eles também precisam aprender que há várias formas de fazer pedidos e expressar preferências, dependendo de quem fala, para quem, e em que circunstâncias. (KRAMSCH, 2014, p. 15)

Dentro dessa discussão, notamos que a questão não está pautada entre escolher em ensinar ou não ensinar gramática, como mencionamos anteriormente, mas na necessidade de “clarificar certos conceitos, dar-lhes consistência e definir prioridades e procedimentos que nos conduzam a uma efetiva competência comunicativa”. (ANTUNES, 2010, p. 218 – grifos do autor).

Sendo assim, o que é priorizado no ensino e na aprendizagem em sala de aula não pode ir na contramão das exigências advindas atualmente. Os alunos precisam ter conhecimentos claros sobre o que seja a língua(gem) e o que as escolhas que eles realizam acarretam dependendo do ambiente em que circulam. Esse esclarecimento deve partir do pressuposto de que os alunos, assim como tudo que nos cerca, são heterogêneos e que há uma importância fundamental na compreensão da língua(gem) e da escrita como algo vivo, passível de ser uma polifonia recombiante (PINTO, 2014).

Harris (2000) nos diz que há uma preocupação pública com a escrita, no entanto, questões mais amplas dificilmente são discutidas, e é ainda mais rara uma reflexão sobre os modos como os pressupostos tradicionais ainda são