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3 A ESTRUTURA DA PERVERSÃO EM LACAN

3.2 DIANTE OU ATRÁS DO VÉU

Assim como Freud, Lacan vai apresentar, a partir do fetiche, a estrutura de toda a perversão. Ele faz isso no capítulo IX de seu Seminário A relação de objeto (1956-1957), ao tratar da dupla função do véu ou da cortina.

Lacan inicia esse texto pontuando que em toda troca simbólica, qualquer que seja o sentido de seu funcionamento, a permanência do caráter constituinte de um mais-além do objeto, ou seja, “o que é amado no objeto é aquilo que falta a ele [...]”470

, traz uma nova luz ao fetichismo e estabelece de maneira diferente aquilo que ele denomina de suas equações fundamentais.

Ao relembrar dois artigos de Freud referentes ao tema, a saber, o parágrafo sobre o fetichismo nos Três ensaios sobre a teoria da

sexualidade (1905) e o texto Fetichismo (1927), Lacan observa que ele

diz, de saída, algo que decepciona, por muito já ter se falado nisso desde que se fala em análise: que o fetiche é o símbolo de alguma coisa e que “essa alguma coisa é, mais uma vez, o pênis”471

.

Entretanto, aponta Lacan, logo em seguida, Freud sublinha que este não é um pênis qualquer, o pênis de que se trata não é o pênis real, é o pênis na medida em que a mulher o tem – isto é, na medida em que ela não o tem. E mais adiante acrescenta:

Não se trata em absoluto de um falo real na medida em que, como real, ele exista ou não exista, trata-se de um falo simbólico, na medida em que é de sua natureza apresentar-se na troca como ausência, ausência funcionando como tal472. Segundo Lacan, com efeito, na troca simbólica, o falo tem essa espécie de alternância fundamental, é tanto ausência quanto presença. Em outras palavras, ele circula, deixando atrás de si o signo de sua

470 Lacan (1956-1957), 1995. 471 Ibid., p.154. 472 Ibid.

ausência no ponto de onde vem; e ademais, afirma, “[...] o falo em questão – nós o reconhecemos desde logo – é um objeto simbólico”473.

Lacan indica que através desse objeto, estabelece-se um ciclo de ameaças imaginárias que limita a direção e o emprego do falo real: “Aí está o sentido do complexo de castração, e é nisso que o homem fica preso”474

. Contudo, existe também outro uso, que é a função simbólica do falo; “[...] na medida em que ele está ou não está ali, é que se instaura a diferenciação simbólica entre os sexos”475

.

Em relação à mulher, mesmo que ela não tenha o falo simbólico, participa dele a título de ausência, logo, isto significa tê-lo de alguma forma. E esse pênis simbólico, afirma Lacan, desempenha uma função essencial no ingresso da menina na troca simbólica: é na medida em que ela entra na dialética simbólica de ter ou não ter o falo, que ela também entra nessa relação ordenada e simbolizada da diferenciação dos sexos – “relação inter-humana assumida, disciplinada, tipificada, ordenada, marcada por interditos, marcada, por exemplo, pela estrutura fundamental da lei do incesto”476

. Ela não tem o falo simbolicamente, mas pode tê-lo, e é justamente por intermédio dessa ideia, daquilo que Freud chama de ideia da castração, que a menina entra no complexo de Édipo, enquanto é por aí que o menino sai dele.

O filho assume para as mulheres a função de ersatz, de substituto, de equivalente do falo, e é em função de que elas se apegam a esse objeto valorizado simbolicamente, “é por intermédio da relação ao falo que elas entram na cadeia da troca simbólica, que elas aí se instalam, que aí tomam seu lugar e seu valor”477

.

Aí está, pois, o fetiche que Freud apresentou como falo ausente, o falo simbólico, um símbolo. Nesse sentido, pontua Lacan478, ele é praticamente colocado como qualquer outro sintoma neurótico. De fato, muitos autores demonstram aqui alguma hesitação e situam o fetichismo no limite entre as perversões e a neurose, em razão do caráter simbólico da fantasia fundamental; é preciso, portanto, examiná-lo bem de perto para confirmá-lo na estrutura.

Lacan utiliza o esquema do véu ou da cortina para explicar as perversões; assim, diz ele:

473 Ibid., p.155. 474 Ibid. 475 Ibid. 476 Ibid. 477 Ibid., p.156. 478 Ibid.

O véu, a cortina diante de alguma coisa, ainda é o que melhor permite ilustrar a situação fundamental do amor. Pode-se mesmo dizer que com a presença da cortina, aquilo que está mais além, como falta, tende a se realizar como imagem. Sobre o véu pinta-se a ausência479. Nesse sentido, o véu tem uma dupla função,

é a um só tempo o que esconde e o que designa. Na perversão, trata-se, para o sujeito, de esconder a falta fálica da mãe, embora designe com a ajuda do véu a figura daquilo de que há falta480.

Lacan481 apresenta o esquema do véu da seguinte forma (Figura 1):

Figura 1. Esquema do véu (diante do véu)

Fonte: Lacan (1956-1957), 1995, p.158. Julien comenta que, nesse esquema,

o véu esconde o ‘Nada’ que está para além do ‘Objeto’ enquanto desejo do Outro: a mãe não tem o falo. Mas, ao mesmo tempo e mesmo assim, o

479 Ibid., p.157. 480 Julien, 2002, p.111. 481 Lacan (1956-1957), 1995, p.158.

véu é o lugar onde se projeta a imagem fixa do falo simbólico: a mãe tem o falo482.

Em relação ao fetichismo, Lacan assinala que aquilo que o constitui, ou seja, o elemento simbólico que o fixa e o projeta sobre o véu, sabe-se, desde Freud, é retirado especialmente da dimensão histórica. A rememoração da história, sentido que ele empresta ao termo ‘lembrança encobridora’ – o Deckerinnerung, de Freud – é o momento de interrupção da história, imediatamente anterior àquele em que o falo que a mãe tem e não tem, seja visto como presença-ausência e ausência- presença. E além de ser o momento em que a história se detém e se congela, indica a continuação de seu movimento para além do véu:

A lembrança encobridora está ligada à história por toda uma cadeia, ela é uma parada nessa cadeia e é nisso que é metonímica, pois a história, por sua natureza, continua. Detendo-se ali, a cadeia indica sua sequência a partir daí velada, sua sequência ausente, a saber, o recalque em questão, como Freud diz claramente483.

O fetiche é, assim, a imagem projetada, um fenômeno imaginário que “não passa do ponto-limite entre a história, na medida em que esta continua, e o momento a partir do qual ela se interrompe”484. É o signo, referência do ponto de recalque, o véu, “[...] ersatz do falo deslocado para o pé, o sapato, o chinelo, [...]”485

.

Segundo Lacan, aqui, distingui-se a relação com o objeto de amor da relação de frustração com o objeto: “É por uma metáfora que o amor se transfere ao desejo que se apega ao objeto como ilusório, ao passo que a constituição do objeto não é metafórica, mas metonímica”486

. Como já foi visto, ela é um ponto na cadeia da história, lá onde a história se interrompe; o signo de que é ali que começa o mais-além constituído pelo sujeito. Entretanto,

por que é ali que o sujeito deve constituir esse mais-além? Por que o véu é mais precioso para o 482 Julien, 2002, p.112. 483 Lacan (1956-1957), 1995, p.160. 484 Ibid. 485 Julien, 2002, p.112. 486 Lacan (1956-1957), 1995, p.160.

homem que a realidade? Por que a ordem dessa relação ilusória se torna um constituinte essencial, necessário, de sua relação com o objeto?487. Para ele, essas são algumas questões que podem ser levantadas pelo fetichismo.

Lacan488 pontua que os autores já algum tempo parecem embaraçados em relação à gênese do fetichismo, pois, de um lado, ela está essencialmente articulada ao complexo de castração e, por outro, sabe-se que é nas relações pré-edipianas que aparece mais assegurado que a mãe fálica é o elemento central. Como é possível, então, unir as duas coisas?

Para pensar essas questões, Lacan sugere partir da relação fundamental que é aquela da criança real com a mãe simbólica e o falo desta, que é, para ela, imaginário. Ele indica também que as observações clínicas nos mostram fenômenos que se manifestam de forma correlativa a este sintoma que o sujeito elege como fetiche, “o objeto fascinante inscrito sobre o véu, em torno do qual gravita a sua vida erótica”489

. Afirma, assim, que tomando os casos clínicos como referência, é possível se deparar com este ponto da lembrança encobridora, que fixa a interrupção na barra da saia da mãe, em seu espartilho, ou ainda na relação ambígua do sujeito com o fetiche, relação de ilusão, e também com a função satisfatória de um objeto inerte, à disposição do sujeito para a manobra de suas relações eróticas.

A relação erótica, o comportamento amoroso, se resume numa defesa do sujeito. Isto já foi visto em Freud em relação ao fetichismo, uma defesa contra a homossexualidade. Em suas relações com o objeto amoroso, o fetichista alterna identificações:

Identificação com a mulher, confrontada com o pênis destruidor, com o falo imaginário das experiências primordiais do período oro-anal, centradas na agressividade da teoria sádica do coito, e, com efeito, muitas experiências que são reveladas pela análise mostram uma observação da cena primitiva percebida como cruel, agressiva, violenta, até mesmo assassina. Inversamente, identificação do sujeito com o falo imaginário, 487 Ibid. 488 Ibid. 489 Ibid., p.162.

que o faz ser para a mulher um puro objeto, que ela pode devorar e, no limite, destruir490.

A criança se confronta de uma maneira que se pode dizer bruta a essa oscilação de dois polos da relação imaginária primitiva (seja pela via da identificação com a mulher ou com o falo imaginário), antes mesmo do Édipo, antes do pai entrar como lei, centro da ordem e de posse legítima. E isso resulta, seja como for, numa saída destrutiva. Segundo Lacan, “os autores notam, com muita frequência, a ausência às vezes repetida do pai na história do sujeito [...]”491

.

De acordo com Julien, além do fetichismo, existem outras perversões em que o sujeito coloca a projeção da imagem fálica que esconde e designa o ‘Nada’ diante do véu. Assim, no masoquismo, é preciso que o Outro tenha o chicote, por exemplo, como potência fálica. No voyeurismo, Lacan introduz a noção de fenda:

O voyeur entra no desejo do Outro pela fenda, a ventana (fala-se em francês de gelosia), a telescopia, ou qualquer tela. Ele visa o desejo do Outro, surpreende-o em seu pudor e sua intimidade; introduz-se em seu mundo privado. [...] Na fantasia, o sujeito é a fenda, de modo que o Outro fique interessado, cúmplice, aberto a esse espetáculo e participe dessa mostração. O sujeito é fenda, fissura do véu que separa o escondido do mostrado, o privado do público do espaço do Outro492.

Nessa mesma posição, encontra-se ainda a homossexualidade feminina, trabalhada por Freud em seu artigo de 1920, Psicogênese de

um caso de homossexualidade feminina, e como já foi visto, comentado

por Lacan em seu seminário A relação de objeto. O que a jovem mulher deseja na Senhora é o que lhe falta, o falo simbólico, que está para além da mulher amada. “A perversão homossexual consiste em velar essa falta por um substituto, um ersatz: o filho como imagem fálica”493.

Neste caso, a jovem se identifica com o pai, assume seu papel; ela ama como um homem. No momento do declínio do Édipo, à espera de 490 Ibid., p.163. 491 Ibid. 492 Julien, 2002, p.113. 493 Ibid.

receber do pai um filho, a jovem sofre uma dura decepção, pois é a mãe que ele engravida. Com isso, “há troca: no lugar da frustração do objeto real (a criança) pelo pai simbólico, instaura-se uma identificação com o pai imaginário”494

. É assim que ela se volta para a Senhora mais velha, e quando o pai intervém publicamente lançando sobre elas um olhar furioso, ela então passa ao ato; atua um parto de sua amiga – significação de pular o parapeito e ‘cair’ na linha do trem. Para Julien, “ela ‘se faz’ a criança da Senhora, como substituto da falta fálica nela”495

.

A partir de um caso apresentado por Sylvia Payne496, Lacan lê outra posição do sujeito em relação ao véu. Trata-se de um homem cujo fetiche era um impermeável, um traje envolvente, semelhante a uma capa de chuva, cuja qualidade especial comportada por seu material, a borracha, ganha um lugar:

Esse traço, encontrado muito frequentemente, não deixa de encerrar algum último mistério, que sem dúvida seria esclarecido psicologicamente pela sensorialidade encerrada no contato especial com a própria borracha. Talvez haja algo aí que possa, mais facilmente que outra coisa, ser tomado como a duplicação da pele, ou ainda que comporte capacidades especiais de isolamento497.

De acordo com Lacan, o impermeável desempenha ali um papel que não é, exatamente, o do véu, mas algo atrás do qual o sujeito se centra: “Ele se situa, não à frente do véu, mas por trás, isto é, no lugar da mãe, aderindo a uma posição de identificação onde esta tem necessidade de ser protegida, aqui pelo envolvimento”498

. E ele acrescenta que é isso que indica a transição entre os casos de fetichismo e os de travestismo. Neste último, “o envolvimento não é da ordem do véu, mas da proteção. Trata-se de uma égide, em que se envolve o sujeito identificado com o

494 Ibid., p.114. 495 Ibid. 496

Em seu artigo: Some observation on the ego development of the fetichist, pulicado no international Journal of Psychanalysis, vol.XX, 2,1939, pp.161- 170. Cf. Lacan, 1995, p.164.

497

Ibid.

498

personagem feminino”499

. Esta posição pode ser representada no esquema do véu da seguinte forma (Figura 2):

Figura 2. Esquema do véu (atrás do véu)

Fonte: Lacan (1956-1957), 1995, p.165.

A capa de chuva, como cita Julien500, mascara como imagem fálica, o que ela designa como elemento simbólico, a falta fálica da mãe como causa de angústia do sujeito; e essa operação de renegação é cumprida ativamente por ele, ao vesti-la publicamente.

Além do travestismo, nessa posição do sujeito atrás do véu, também se encontra o exibicionismo. Lacan traz o exemplo de um homem que tenta, pela primeira vez, uma relação real com uma mulher. Nessa posição de experiência, ele alcança mais ou menos seu objetivo, graças à ajuda dela, mas logo depois entrega-se a uma exibição muito singular, e muito bem calculada, “que consiste em mostrar seu sexo à passagem de um trem internacional, de modo que ninguém pode pegá-lo com a mão na botija”501

. Ele foi forçado aqui a deixar sair algo que estava implícito em sua posição:

Seu exibicionismo é apenas a expressão, ou a projeção no plano imaginário, de algo de que ele mesmo não compreendeu todas as ressonâncias simbólicas, a saber, que o ato que acabava de efetuar, afinal de contas, não passava da tentativa

499 Ibid., p.165. 500 Julien, 2002. 501 Lacan (1956-1957), 1995, p.165.

de mostrar – de mostrar que ele era capaz, como qualquer outro, de ter uma relação normal502. Julien comenta que no exibicionismo o sujeito “dá – a – ver para ver o Outro surpreendido pelo desvelamento”503

. Sua técnica consiste em mostrar o que ele tem, uma vez que o Outro não o tem; revelar ao Outro o que este é suposto não ter, para ao mesmo tempo, mergulhá-lo na vergonha do que lhe falta. Além disso, “o sujeito presentifica a mãe uma vez que não haveria nela falta”504

.

Entre as outras duas possíveis perversões que se deduzem dessa posição do sujeito atrás do véu, apontadas por Julien, estão: o sadismo, em que “o chicote, o porrete, o cetro, a coronha, presentificam a imagem fálica”505

; e a homossexualidade masculina, na qual o sujeito “se identifica com uma mãe que deve ter o falo [...]”506

. Em relação a esta última forma de perversão, Lacan retomando Freud, o prolonga, precisando, que a identificação não é com o desejo da mãe, nem com seu amor, mas com seu gozo. Há repetição do mesmo gozo por inversão: a criança uma vez que foi objeto de tal gozo do Outro, perpetua esse gozo gozando, por sua vez, de um objeto semelhante ao que ela foi. A escolha do objeto é, portanto, narcisista, a serviço da manutenção do gozo do Outro.