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As perversões: síntese dos três ensaios

2 A PERVERSÃO EM FREUD

2.2 OS TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA

2.2.4 As perversões: síntese dos três ensaios

influencia a escolha do objeto do sexo oposto.

Finalizando este último ensaio, Freud121 observa que em muitos histéricos, a ausência precoce de um dos pais (por morte, divórcio ou separação), ao propiciar com que o remanescente absorva a totalidade do amor da criança, foi o determinante do sexo da pessoa posteriormente escolhida como objeto sexual, possibilitando com isso a inversão permanente.

2.2.4 As perversões: síntese dos três ensaios

Após finalizar os Três ensaios, Freud apresenta um resumo desse trabalho e tenta responder à questão que circundou sua pesquisa: se as aberrações ou desvios da pulsão sexual provêm de uma disposição inata ou são adquiridas como resultado das influências da vida. Ele indica que foi através da investigação psicanalítica dos psiconeuróticos que a resposta a essa pergunta pôde ser compreendida. Entre as primeiras descobertas está que, nessas pessoas, a inclinação para todas as perversões é demonstrável na qualidade de forças inconscientes e se denuncia como formadoras de sintomas e, assim, pode-se dizer que a neurose é como que o negativo das perversões.

O reconhecimento da ampla disseminação das tendências perversas leva Freud a afirmar que:

A disposição para as perversões é a disposição originária universal da pulsão sexual humana, e de que a partir dela, em consequência de modificações orgânicas e inibições psíquicas no decorrer da maturação, desenvolve-se o comportamento sexual normal122.

Ele assinala que é na infância que se pode apontar essa disposição originária e, ademais, destaca que a vergonha, o asco, a compaixão e as construções sociais da moral e da autoridade estão entre as forças que restringem a orientação da pulsão sexual.

Freud123 observa que nos desvios da vida sexual normal é possível detectar fragmentos de inibição do desenvolvimento e 121 Ibid. 122 Ibid., p.218. 123 Ibid.

infantilismo. E embora tenha situado em primeiro plano a importância das variações da disposição originária, supõe entre elas e as influências da vida uma relação de cooperação na origem desses desvios. Por outro lado, a complexidade da disposição originária o leva a crer que a própria pulsão sexual seria composta de diversos fatores e que, nas perversões, como que se desfaria em seus componentes. Dessa forma, as perversões seriam aqui entendidas tanto como inibições do desenvolvimento normal, como dissociações dele.

Ao se debruçar na investigação da sexualidade infantil, Freud124 afirma que as manifestações sexuais podem ser observadas na criança desde muito cedo, quando já ao se alimentar ela goza de uma satisfação sexual que então busca repeti-la na atividade de ‘chuchar’. Após um breve período de florescência entre os dois e os cinco anos, a atividade sexual infantil entra no chamado período de latência, e neste as moções sexuais de modo algum são suspensas; elas por um lado, com a ajuda da educação, constroem as barreiras destinadas a manter a pulsão sexual em certos rumos, e por outro conseguem expressar-se como atividade sexual.

Foi verificado também, de acordo com Freud, que a excitação sexual da criança provém de múltiplas fontes. A satisfação surge, mediante a excitação das zonas erógenas (pele, órgãos dos sentidos e outros órgãos), por certos dispositivos orgânicos, e como subproduto de um grande número de processos que ocorrem no organismo. Na infância, as excitações de todas essas fontes ainda não estão conjugadas, o que leva cada uma delas seguir separadamente seu alvo, que é meramente a obtenção de certo prazer. Portanto, nesta fase, “a pulsão sexual não está centrada e é, a princípio, desprovida de objeto, ou seja,

autoerótica”125.

Freud126 assinala que, como as outras zonas erógenas, a zona genital começa a fazer-se notar ainda durante a infância, produz satisfação por meio de estimulação sensorial apropriada ou, ainda, através da satisfação proveniente de outras fontes. Ele admite que o esclarecimento sobre as relações entre a satisfação sexual e a excitação sexual, e entre a atividade da zona genital e das demais fontes da sexualidade, não foi alcançado até o dado momento.

124 Ibid. 125 Ibid., p.220. 126 Ibid.

Outro aspecto identificado por Freud127, na vida sexual infantil, desde seus primórdios, foi a estrutura inicial de uma organização dos componentes sexuais da pulsão. Na primeira fase, a mais precoce, tem- se o erotismo oral em primeiro plano; na segunda fase, a predominância do sadismo e do erotismo anal; e somente na terceira fase (desenvolvida na criança até a primazia do falo) é que a vida sexual passa a ser determinada pelas zonas genitais propriamente ditas.

Entre as mais surpreendentes descobertas, Freud128 registra que essa eflorescência precoce da vida sexual infantil (dos dois aos cinco anos) também acarreta uma escolha objetal e que, apesar da falta de síntese dos componentes da pulsão e da incerteza do alvo sexual nesta fase, ela deve ser considerada como uma importante precursora da organização sexual definitiva.

Freud destaca a instauração bitemporal do desenvolvimento sexual nos seres humanos, ou seja, sua interrupção pelo período de latência: “Ela se afigura como uma das condições da aptidão do homem para o desenvolvimento de uma cultura superior, mas também de sua tendência à neurose”129

.

Não foi possível avaliar, segundo Freud130, que medida de atividade sexual na infância poderia ser considerada normal, ao ponto de não interferir no desenvolvimento posterior. Entre os aspectos examinados e comprovados pela experiência estão: que essas manifestações sexuais revelaram caráter predominantemente masturbatório, que as influências externas da sedução podem provocar rompimentos prematuros da latência e até a supressão dela e que tal atividade sexual prematura prejudica a educabilidade da criança.

Mesmo diante de algumas lacunas no conhecimento da vida sexual infantil, Freud parte para o estudo das transformações sobrevindas com a chegada da puberdade, apontando duas delas como decisivas: a subordinação de todas as outras fontes de excitação sexual ao primado das zonas genitais e o processo do encontro do objeto. Na primeira, os atos sexuais, antes autônomos e ligados ao prazer e à excitação, convertem-se em atos preparatórios (exploração do pré- prazer) do novo alvo sexual: a descarga dos produtos sexuais, que põe termo à excitação sexual. Nesse ponto, foi considerada a diferenciação dos seres sexuados em masculino e feminino, e constatou-se que o 127 Ibid. 128 Ibid. 129 Ibid., p.220-221. 130 Ibid.

tornar-se mulher exige um novo recalcamento, que suprime parte da masculinidade infantil e a prepara para a troca da zona genital dominante131.

Com relação à escolha objetal na puberdade, constatou-se que ela é guiada pelos indícios infantis, então renovados, da inclinação sexual da criança pelos pais e por outras pessoas que cuidam dela, e que, desviada dessas pessoas pela barreira do incesto, orienta-se para outras pessoas que se assemelham a elas. Pode-se acrescentar, ainda, que no decorrer dessa transição para a puberdade, os processos de desenvolvimento somático e psíquico seguem por algum tempo desconectados entre si, até que se irrompa uma intensa moção anímica de amor, que leva a inervação dos genitais e produz a unidade da função amorosa.

Freud salienta que é compreensível que uma organização sexual tão complexa possa apresentar distúrbios no decorrer de sua evolução:

Cada passo nesse longo percurso de desenvolvimento pode transformar-se num ponto de fixação, cada ponto de articulação nessa complexa montagem pode ensejar a dissociação da pulsão sexual [...]132.

Por fim, Freud133 fornece um panorama dos diversos fatores internos e externos que perturbam o desenvolvimento, indicando o lugar do mecanismo afetado pela perturbação proveniente deles. Acrescenta que esses fatores não apresentam a mesma importância, sendo difícil apreciar seu justo valor.

Em primeiro lugar menciona a diversidade inata da constituição

sexual, que só pode ser deduzida de suas manifestações posteriores e,

mesmo assim, é de difícil avaliação. Freud134 entende essa diversidade como uma preponderância de determinada fonte de excitação sexual, e que tal diferença se expressa de alguma forma no resultado final como dominante.

Freud135 afirma que a conformação da vida sexual não fica determinada pela instauração dos diversos componentes da constituição sexual inata. Pelo contrário, o processo de determinação prossegue e 131 Ibid. 132 Ibid., p.222. 133 Ibid. 134 Ibid. 135 Ibid.

surgem outras possibilidades, de acordo com as vicissitudes por que passam as correntes tributárias da sexualidade provenientes das diversas fontes.

É essa elaboração posterior, conclui Freud136 ao final dos Três

ensaios, que decide em termos definitivos, enquanto o que se poderia

descrever como uma constituição idêntica pode levar a três desfechos diferentes: a perversão, a neurose (recalcamento) e a sublimação.

No entendimento de Freud137 até o dado momento, a perversão resulta quando todas as disposições constitucionais se mantêm em sua proporção relativa, considerada anormal, e são reforçadas com o amadurecimento. E apesar de que a análise dessas disposições ainda não tenha sido devidamente empreendida, com base na opinião de alguns autores138, ele sustenta a ideia de que as perversões por fixação teriam como precondição necessária uma debilidade constitucional de determinado fator da pulsão sexual, qual seja, a zona genital: quando essa é fraca, sua função (exigida na puberdade) de conjugar num todo cada uma das atividades sexuais isoladas tende a fracassar, e o mais forte entre os demais componentes da sexualidade impõe sua prática como uma perversão139.

Quando os componentes parciais da pulsão sexual passam pelo processo de recalcamento, segundo Freud140, as excitações correspondentes continuam a ser produzidas como antes, mas são impedidas por um obstáculo psíquico de atingir seu alvo e empurradas para muitos outros caminhos, até que consigam se expressar como sintomas. É o que acontece nas psiconeuroses: uma parte da infância dessas pessoas é ocupada por uma atividade sexual perversa, até que antes, da puberdade ou vez por outra depois dela, ocorre uma reversão ao recalcamento, e a partir daí a neurose substitui a perversão, sem que as antigas tendências desapareçam.

No mecanismo da sublimação, terceiro desfecho da disposição constitucional, as excitações intensas que provêm das diferentes fontes da sexualidade encontram escoamento e emprego em outros campos, 136 Ibid. 137 Ibid. 138

Entre eles, Havelock Ellis. Ibid., p.134.

139

Em 1915, Freud acrescenta que nessa situação, é frequente constatar que a princípio se instaura na puberdade uma corrente sexual normal, mas esta, em decorrência de sua debilidade interna, sucumbe ante os primeiros obstáculos internos e é então substituída pela regressão para a fixação perversa. (Nota de rodapé) Ibid., p.224.

140

resultando num enriquecimento da vida psíquica. Freud141 entende esse processo como uma das fontes da atividade artística, e assinala que conforme ele seja mais ou menos completo, a análise das características psíquicas das pessoas altamente dotadas e de disposição artística, revela uma mescla, em diferentes proporções, de ‘normalidade’, perversão e neurose.

Entre os fatores externos que influenciam a conformação final da vida sexual, Freud pontua as experiências acidentais, principalmente aquelas vividas na primeira infância. Ele enfatiza que entre essas experiências e os fatores constitucionais há uma relação de cooperação, e não de exclusão: “O fator constitucional tem de aguardar as experiências que o ponham em vigor; o acidental precisa apoiar-se na constituição para ter efeito”142

.

Por último, Freud143 enumera outros fatores que também foram verificados como influentes no desenvolvimento sexual. O primeiro deles é a precocidade sexual espontânea, que se manifesta na interrupção, encurtamento ou encerramento do período de latência, causando perturbações por ocasionar manifestações sexuais que, devido ao estado incompleto das inibições sexuais e também por ainda não estar desenvolvido o sistema genital, só podem trazer em si o caráter de perversões. Essa disposição à perversão pode então permanecer como tal ou, com o recalcamento, transformar-se em forças propulsoras de sintomas neuróticos.

Ao lado da precocidade, os fatores temporais, segundo Freud144, exigem consideração: a ordem em que as diversas moções pulsionais são ativadas, assim como o lapso de tempo que as separam, parecem filogeneticamente determinados. Contudo, pode haver variações ou desvios temporais que vão produzir invariavelmente uma alteração no resultado final do processo de desenvolvimento. As causas dessas complicações parecem envolver questões biológicas e históricas que não foram até aqui esclarecidas.

As manifestações sexuais precoces têm sua importância aumentada por um fator psíquico de origem desconhecida, que Freud145 apresenta ao final dos Três ensaios como uma hipótese psicológica provisória. Trata-se da elevada adesividade [Haftbarkeit] ou fixabilidade 141 Ibid. 142 Ibid., p.226. 143 Ibid. 144 Ibid. 145 Ibid.

dessas impressões da vida sexual, observadas nos casos de neurose e perversão. As manifestações sexuais prematuras, nesses casos, são gravadas de forma tão profunda, que chegam a produzir uma repetição compulsiva e prescrever por toda a vida os caminhos da pulsão sexual. Outro fator psíquico que o autor indica como importante na causação das neuroses e que talvez explique, pelo menos em parte, essa adesividade, é a preponderância que cabe na vida anímica aos traços mnêmicos, em comparação com as impressões presentes.

Com a ajuda desses fatores psíquicos, de acordo com Freud146, os estímulos acidentais (principalmente a sedução por outras crianças ou por adultos) vivenciados na infância, fornecem o material que pode fixar-se como um distúrbio permanente. Em resumo, portanto, ele conclui, que boa parte dos desvios da vida sexual normal posteriormente observados tanto nos neuróticos como nos perversos é estabelecida pelas impressões do período infantil, e de sua causação participam: a complacência constitucional, a precocidade, a adesividade elevada e a estimulação fortuita da pulsão sexual por influências estranhas.

Contudo, Freud147 assinala que a conclusão dessas investigações das perturbações da vida sexual é insatisfatória, pois os conhecimentos isolados obtidos até aqui, juntamente com aqueles referentes aos processos biológicos que constituem a essência da sexualidade, não são suficientes para se formar uma teoria que permita a compreensão do normal e do patológico.