• Nenhum resultado encontrado

2 A PERVERSÃO EM FREUD

2.2 OS TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA

2.2.2 Segundo ensaio: a sexualidade infantil

Na introdução do segundo ensaio, Freud70 comenta, num primeiro momento, o descaso total dos autores por ele pesquisados para com a sexualidade infantil. E apesar de tomar conhecimento de alguns trabalhos como os de Pérez (1886) e Bell (1902), que o fazem reavaliar essa pontuação inicial, mais adiante insiste no pouco valor dado ao período infantil do desenvolvimento sexual. Para ele, esse fato estaria ligado, por um lado, às considerações convencionais que os pesquisadores respeitam em consequência de sua própria criação, e, por outro, ao fenômeno da amnésia infantil.

Freud71 inicia tratando sobre esse fenômeno psíquico – a amnésia infantil –, o qual, na maioria das pessoas, encobriria os primeiros anos da infância (até os seis ou oito anos de idade). Afirma que, mediante investigação psicológica, é possível verificar que as impressões esquecidas deixam, ainda assim, rastros profundos na vida anímica da pessoa e se tornam determinantes em todo seu desenvolvimento posterior. Considera, também, que este fenômeno não se trata de um declínio real das impressões infantis, mas sim de uma amnésia semelhante à observada nos neuróticos, cuja essência consiste num simples impedimento da consciência (recalcamento). Neste ponto, então, levanta a questão sobre quais seriam as forças que efetuam esse recalcamento das impressões infantis.

Em seguida, partindo das constatações repetidas de moções sexuais na infância, bem como da revelação das lembranças infantis do neurótico, até então inconscientes, Freud72 propõe um panorama das condutas sexuais infantis: o recém-nascido traz consigo germes de moções sexuais, que começam a se expressar de forma acessível à observação por volta dos três ou quatro anos de idade, e sofrem mais 69 Ibid. 70 Ibid. 71 Ibid. 72 Ibid.

tarde uma supressão progressiva (período de latência), sendo que esta, por sua vez, pode ser rompida por avanços regulares do desenvolvimento sexual ou por peculiaridades individuais.

No período de latência erguem-se forças anímicas que, mais tarde, surgem como obstáculo no caminho da pulsão sexual, estreitando seu curso em forma de ‘diques’ (o asco, o sentimento de vergonha, as exigências dos ideais estéticos e morais). Ao se questionar sobre quais meios se erigem essas construções (os diques) tão importantes para cultura e normalidade posteriores da pessoa, Freud73 indica que seriam à custa das próprias moções sexuais infantis, que apesar de não cessarem nem mesmo durante o período de latência, têm a totalidade ou a maior parte de sua energia desviada do uso sexual e voltada para outros fins (processo de sublimação).

Freud74 acrescenta que a sublimação tem início no período de latência sexual da infância e arrisca uma conjectura sobre seu mecanismo: as moções sexuais desse período seriam, por um lado, inutilizáveis, visto que as funções reprodutoras estão adiadas, e, por outro, seriam perversas em si, isto é, partiriam de zonas erógenas e se sustentariam em pulsões que, dada a direção do desenvolvimento do indivíduo, só poderiam provocar sensações desprazerosas. Em consequência, elas despertam forças anímicas contrárias (moções reativas), que erigem os diques psíquicos (asco, vergonha e moral), visando à supressão desse desprazer.

Sobre as rupturas do período de latência Freud75 pontua que, em determinados momentos, pode irromper um fragmento de manifestação sexual que se furtou à sublimação, ou alguma atividade sexual pode ser preservada ao longo desse período, até a irrupção acentuada da pulsão sexual na puberdade.

Em seguida, Freud mostra como as pulsões parciais se constituem na criança pela erotização das funções de satisfação da necessidade. Assim, tomando como modelo das manifestações da sexualidade infantil o chuchar (sugar com deleite), comenta:

[...] O ato da criança que chucha é determinado pela busca de um prazer já vivenciado e agora relembrado. [...] A primeira e mais vital das atividades da criança – mamar no seio materno 73 Ibid. 74 Ibid. 75 Ibid.

(ou em seus substitutos) – há de tê-la familiarizado com esse prazer76.

Freud77 salienta que o traço que recebe maior destaque dessa prática sexual – o chuchar – é que a pulsão não está dirigida para outra pessoa: satisfaz-se no próprio corpo da criança (é autoerótica). O lábio, a língua ou qualquer outro ponto da pele que esteja ao seu alcance são tomados como objeto sobre o qual exerce a sucção. Esse objeto se mantém como a zona erógena preferida até o tropeço casual numa das partes predestinadas (a genitália, os mamilos), as quais decerto retêm a preferência.

Outras duas manifestações sexuais infantis citadas por Freud78 são, em primeiro lugar, a atividade da zona anal, pela qual algumas crianças tiram proveito da estimulação erógena dessa parte do corpo, retendo as fezes até que sua acumulação provoque, além de violentas contrações musculares, sensações de prazer e dor na passagem pelo ânus. Em segundo lugar, as atividades da glande e do clitóris, ligadas à micção e à masturbação, que – pela posição anatômica, pelas secreções em que estão banhadas, pela lavagem e fricção advindas dos cuidados com o corpo e por certas excitações acidentais – são capazes de produzir uma sensação prazerosa notada pela criança já na fase de amamentação, despertando uma necessidade de repeti-la.

Freud indica que a primeira fase da masturbação infantil, aquela própria do período da amamentação, tende a desaparecer após um curto prazo, mas prosseguindo ininterruptamente até a puberdade, pode representar o primeiro grande desvio do desenvolvimento que se almeja para os seres humanos inseridos na cultura. Num momento posterior a esse período, comumente antes do quarto ano de vida, a pulsão sexual da zona genital costuma redespertar e novamente durar algum tempo, até ser detida por uma nova supressão, ou se mantém de forma contínua. Segundo ele,

[...] todos os detalhes dessa segunda fase da atividade sexual infantil deixam atrás de si as mais profundas marcas (inconscientes) na memória da pessoa, determinam o desenvolvimento de seu caráter, caso ela permaneça sadia, e a 76 Ibid., p.171. 77 Ibid. 78 Ibid.

sintomatologia de sua neurose, caso venha a adoecer depois da puberdade79.

Outro aspecto tratado por Freud neste ensaio é influência da sedução no desenvolvimento da sexualidade. Comenta que em condições usuais a criança pode permanecer sexualmente normal, mas sob a influência de um sedutor habilidoso pode tornar-se perversa polimorfa e ser induzida a todas as transgressões possíveis, tendo em vista que, dependendo da idade, os obstáculos contra os excessos sexuais – o asco, a vergonha e a moral – ainda não foram erguidos ou estão em construção. De acordo com Freud, isso mostra que a criança traz em sua disposição a aptidão para as transgressões, sendo assim “[...] impossível não reconhecer nessa tendência uniforme a toda sorte de perversões algo que é universalmente humano e originário”80

.

Sobre a vida sexual infantil, Freud81 também aponta que apesar do predomínio das zonas erógenas, aquela exibe componentes que desde o início envolvem outras pessoas como objetos sexuais. Desprovida de vergonha, a criança, em certos períodos de seus primeiros anos, mostra satisfação no desnudamento do corpo, principalmente as partes sexuais. A contrapartida dessa perversão (pulsão do prazer de exibir) – a curiosidade de ver a genitália de outras pessoas – só aparece na infância um pouco mais tarde, quando o sentimento de vergonha já atingiu certo desenvolvimento. O componente de crueldade da pulsão sexual, perfeitamente natural no caráter infantil, desenvolve-se na criança com independência ainda maior das outras atividades sexuais vinculadas às zonas erógenas.

Freud assinala que com a chegada de um novo bebê, o medo de que esse acontecimento resulte na perda de cuidados e de amor, faz com que a criança inicie uma atividade investigatória (despertar da pulsão de saber) cujo primeiro problema não é a questão da diferença sexual, e sim o enigma referente à origem dos bebês. O fato de existirem dois sexos é inicialmente aceito pela criança, no entanto, o menino presume uma genitália igual à sua em todas as pessoas que conhece, e mesmo após observar a diferença, somente abandona sua convicção após sérias lutas internas (o complexo de castração). Ele afirma que “as formações

79 Ibid., p.178. 80 Ibid., p.180. 81 Ibid.

substitutivas desse pênis perdido das mulheres desempenham um grande papel na forma assumida pelas diversas perversões”82

.

As crianças muito pequenas, expostas à relação sexual entre adultos, segundo Freud83, percebem o ato como uma espécie de subjugação e maus-tratos, ou seja, encaram-no com um sentido sádico. Partindo desta observação, ele indica que a psicanálise também nos permite verificar que tal impressão na primeira infância contribui em muito para a predisposição a um deslocamento sádico posterior do alvo sexual.

Em seguida, Freud84 apresenta as fases de desenvolvimento da organização sexual, denominando pré-genitais aquelas em que as zonas genitais ainda não assumiram seu papel preponderante. Na primeira delas, a organização sexual pré-genital oral, a atividade sexual ainda não se separou da nutrição (o objeto de uma atividade é também o da outra), não houve diferenciação das correntes opostas (masculino e feminino) em seu interior e seu alvo corresponde à incorporação do objeto.

A segunda fase pré-genital é definida por Freud como organização sádico-anal. Nela, a divisão em opostos que perpassa a vida sexual já se constituiu, não ainda em masculino e feminino, mas em

ativo e passivo. Sua atividade é produzida pela pulsão de dominação

através da musculatura do corpo, e o órgão do alvo sexual passivo é a mucosa erógena do intestino; mas há para essas duas aspirações opostas objetos não coincidentes. Essa forma de organização sexual,

Pode conservar-se por toda vida e atrair permanentemente para si uma boa parcela da atividade sexual. O predomínio do sadismo e o papel de cloaca desempenhado pela zona anal conferem-lhe um cunho singularmente arcaico85. Freud86 completa o quadro da vida sexual infantil com uma terceira fase (a genital), que exibe um objeto sexual e certo grau de convergência das aspirações sexuais para esse objeto, mas se diferencia da organização definitiva da maturidade sexual, pois o estabelecimento do primado da genitália a serviço da reprodução só ocorre nesta última. 82 Ibid., p.184. 83 Ibid. 84 Ibid. 85 Ibid., p.187. 86

Neste estágio, é conhecido apenas um tipo de genitália, a masculina, por isso o autor denominou-o de estágio fálico.

A escolha de objeto, segundo Freud, efetua-se em dois tempos: o primeiro deles inicia entre os dois e os cinco anos e, em seguida, retrocede ou é interrompido pelo período de latência; o segundo começa na puberdade e determina a forma definitiva da vida sexual. Para ele, a bitemporalidade da escolha objetal é de grande importância para o desarranjo desse estado final. O que resulta da escolha de objeto infantil pode se prolongar por épocas posteriores, manter-se como tal ou se renovar na puberdade. Entretanto, esse resultado se mostra inutilizável, devido ao recalcamento que ocorre entre as duas fases. Nesse processo, os alvos sexuais infantis foram amenizados e passam a representar a corrente de ternura da vida sexual. A escolha de objeto na puberdade precisa renunciar aos objetos infantis e recomeçar como uma corrente sensual.

A não confluência dessas duas correntes tem como consequência, muitas vezes, a impossibilidade de se alcançar um dos ideais da vida sexual – a conjugação de todos os desejos num único objeto87.

Finalizando este ensaio, Freud88 fala a respeito do que foi descoberto até o momento sobre as fontes da sexualidade infantil. Assim, aponta que a excitação sexual pode surgir como a reprodução de uma satisfação vivenciada em outros processos orgânicos, pela estimulação periférica apropriada das zonas erógenas, e como expressão de algumas ‘pulsões’, como a pulsão de ver e a pulsão para a crueldade, que ainda se apresentavam desconhecidas em suas origens.

Além disso, comenta a existência de sensações prazerosas produzidas por certos tipos de agitação mecânica do corpo (confirmada pelo fato de as crianças gostarem tanto das brincadeiras de movimento passivo, como serem balançadas e jogadas para o alto, e de pedirem incessantemente que sejam repetidas) e pela atividade muscular intensa (uma série de pessoas informa ter vivenciado os primeiros sinais de excitação em sua genitália nas brigas ou lutas com seus companheiros de brincadeiras). E acrescenta que na promoção da excitação sexual

87

Ibid., p.189.

88

através dessa última (atividade muscular) caberia reconhecer uma das raízes da pulsão sádica.

Os processos afetivos como a angústia, o medo ou o horror, que em si são desprazerosos, também produzem, segundo Freud89, efeito sexualmente excitante. Isto explica porque tantas pessoas buscam vivenciar tais sensações em circunstâncias secundárias (pertencentes ao mundo imaginário como na leitura, no teatro, etc.) que atenuam a gravidade da sensação desprazerosa.

Presumindo-se, observa Freud90, que o mesmo efeito erógeno é provocado pelas sensações de dor intensa, especialmente quando a dor é abrandada ou mantida à distância por alguma condição concomitante, estaria nessa vinculação uma das principais raízes da pulsão sadomasoquista, da qual aos poucos vai se adquirindo algum conhecimento.