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2 A PERVERSÃO EM FREUD

2.5 A SEGUNDA TÓPICA (1920-1938)

2.5.3 O fetichismo

É somente em 1927, na elaboração de seu artigo Fetichismo, que Freud apresenta a porta de entrada ao estudo das perversões. Esse texto chega após todos os remanejamentos feitos por ele em sua teoria e traz como, principal interesse, uma direção muito diferente, que tem como base o novo desenvolvimento metapsicológico que ele introduz com a segunda tópica. É como uma forma de acabamento de todos os trabalhos em que ele se dedicou às questões das perversões, de modo que o fetichismo sinaliza uma orientação para que se verifique o extraordinário polimorfismo das manifestações perversas. Para Valas, a perversão, aqui, com efeito, “deve ser distinta em sua estrutura própria, pois ela aparece como um modo de solução específico do desejo”389

. Freud390 inicia esse trabalho comentando que teve oportunidade de estudar analiticamente certo número de homens cuja escolha objetal era dominada por um fetiche. Ele afirma que embora o fetiche seja 386 Ibid., p.269. 387 Valas, p.96. 388 Queiroz, 2004, p.117. 389 Valas, 1990, p.88. 390 Freud (1927), 1996.

reconhecido por seus adeptos como uma anormalidade, não se pode esperar que eles busquem análise por este motivo, pois raramente é sentido por eles como um sintoma acompanhado por sofrimento:

Via de regra, mostram-se inteiramente satisfeitos com ele, ou até mesmo louvam o modo pelo qual lhes facilita a vida erótica. Via de regra, portanto, o fetiche aparece na análise como uma descoberta subsidiária391.

Para Freud, o caso mais extraordinário pareceu-lhe ser aquele em que o jovem erigiu como condição de fetiche certo tipo de ‘brilho do nariz’. E a partir da análise foi possível auferir a seguinte explicação: a língua materna do paciente era o inglês, ele foi criado na Inglaterra e, posteriormente, mudou-se para a Alemanha, onde esqueceu, quase por completo, a primeira língua. Era preciso, portanto, entender o fetiche – originado da primeira infância – não em Alemão, mas em inglês:

O ‘brilho do nariz’ [em alemão ‘Glanz auf der

Nase’] era na realidade um ‘vislumbre (glance) do

nariz’. O nariz constituía assim o fetiche, que incidentalmente, ele dotara, à sua vontade, do brilho luminoso que não era perceptível a outros392.

Segundo Valas393, Freud, com este exemplo, só faz recordar sua tese de que “o objeto (aqui o fetiche) é apenas o objeto reencontrado por suas coordenadas simbólicas (Glanz auf der Nase) memorizadas sob forma de traços (Glance at the nose) no inconsciente”394. Isso confirma que para Freud o que é recalcado é o representante da representação, a

Vorstellungrepresentanz (glance), que Lacan vai traduzir posteriormente

pelo termo ‘significante’.

Ficaram demonstrados, na análise deste e de outros casos clínicos, que o significado e o propósito do fetiche eram os mesmos, o que levou Freud a esperar a mesma solução em todos os casos de fetichismo: o fetiche é o substituto do pênis, porém não de qualquer um; não se trata do pênis real, mas do substituto fálico atribuído como 391 Ibid., p.155. 392 Ibid. 393 Valas, 1990. 394 Ibid., p.90.

símbolo pela criança à mãe, no instante em que descobre que ela não tem pênis. Em outras palavras, “o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o menininho outrora acreditou e que – por razões que nos são familiares – não deseja abandonar”395.

Valas396 indica que, para compreender a gênese desse substituto fálico, é necessário partir da situação originária, em que a criança é capturada, com sua mãe, numa relação constituída pelo ternário: mãe/criança/falo imaginário. Assim, no período pré-edipiano, esse falo imaginário (pois imaginado pela criança) ocupa a função do terceiro faltoso que estrutura essa relação, não permitindo que ela se feche em sua própria satisfação, além de dar um sentido para a criança às repetidas ausências da mãe. Ele assinala que essa função do falo imaginário atribuído pela criança à mãe é ilustrada por Freud no caso do pequeno Hans, pela significação dada ao seu jogo de esconde-esconde.

Com a masturbação, a criança experimenta, muito precocemente, as manifestações reais e prazerosas de seu órgão, e sua relação já erotizada com sua mãe (dependente como está do amor desta), rapidamente é polarizada para sua significação sexual. É desse modo que passa a acreditar na existência do falo na mãe, à imagem do seu próprio. Para as meninas, as coisas também se apresentam dessa forma, o clitóris é tomado como um esboço do órgão fálico que irá crescer397.

De modo geral, a partir do momento em que percebe que a mãe não possui o pênis, a criança, angustiada, a abandona e se volta para o pai, que, enquanto possuidor real do órgão, aparece como aquele que superou a prova da castração e, portanto, torna-se preferível à mãe. Ocorre, então, o engajamento no Édipo, o falo assume o valor simbólico por ser significado pelo seguinte discurso: o homem tem o falo, a mulher não o tem. E assim, pontua Valas, “Freud faz da posse ou não do falo, no primado que dá à assunção fálica, o elemento diferencial primordial onde se opõe a organização genital dos sexos”398

.

Voltando ao artigo de Freud, no fetichismo, o menino recusa a tomar conhecimento do fato de ter percebido que a mulher não tem pênis, pois se uma mulher tinha sido castrada, isso colocava em perigo a posse de seu próprio órgão. Neste ponto, Freud procura esclarecer a diferença entre as palavras ‘rejeição’ [Verleugnung] e ‘repressão’ [Verdrängung], sendo a primeira relacionada à vicissitude da ideia 395 Freud (1927), 1996, p.155. 396 Valas, 1990. 397 Ibid. 398 Ibid., p.91.

(empregada na defesa contra as reivindicações da realidade externa) e a segunda à vicissitude do afeto (aplicando-se à defesa contra exigências pulsionais internas). Ele apresenta ainda o significado do termo ‘escotomização’, cuja utilização neste caso lhe parece inapropriada, por “sugerir que a percepção é inteiramente apagada, de maneira que o resultado é o mesmo que sucede quando uma impressão visual incide sobre o ponto cego da retina”399

. Na situação considerada, pelo contrário, foi verificado “que a percepção continuou e que uma ação muito enérgica foi empreendida para manter a rejeição”400

.

Assim, com o conflito que se estabelece entre o peso da percepção desagradável e força do contradesejo da criança, chega-se a um compromisso:

Sim, em sua mente a mulher teve um pênis, a despeito de tudo, mas esse pênis não é mais o mesmo de antes. Outra coisa tomou seu lugar, foi indicada como seu substituto, por assim dizer, e herda agora o interesse anteriormente dirigido a seu predecessor. Mas esse interesse sofre também um aumento extraordinário, pois o horror da castração ergueu um monumento a si próprio na criação desse substituto401.

Segundo Freud, a aversão que todo fetichista tem aos órgãos genitais femininos, “permanece um stigma indelebile da repressão que se efetuou”402

. O fetiche, além de manter um indício do triunfo sobre a ameaça de castração e uma proteção contra ela, também dota as mulheres de características que as torna toleráveis como objetos sexuais, o que evita que o fetichista se torne homossexual. Outra vantagem que o fetichista desfruta de seu substituto de um órgão genital é que o significado deste não é conhecido por outras pessoas, e com isso, não é possível retirá-lo dele; ademais, o fetiche é facilmente acessível, e, através dele, se pode obter prontamente a satisfação sexual.

Freud403 observa também que, provavelmente, o susto da castração a partir da visão de um órgão genital feminino está para todos os indivíduos do sexo masculino. No entanto, ele admite não ser 399 Freud (1927), 1996, p.156. 400 Ibid. 401 Ibid., p.157. 402 Ibid. 403 Ibid.

possível ainda explicar por que algumas pessoas se tornam homossexuais em consequência dessa impressão, ao passo que outras a desviam pela criação do fetiche e a grande maioria a supera.

Pode acontecer, com frequência, que os objetos escolhidos como substitutos para o falo ausente da mulher apareçam como símbolos do pênis também sob outros aspectos, ou seja, não têm a menor necessidade de parecer com os órgãos genitais, nem com outros objetos que reproduzem a forma do pênis, mas isso não constitui fator decisivo. Freud compara o processo em que o fetiche é instituído com o que ocorre na amnésia traumática, a saber, uma interrupção na memória: “Como nesse último caso, o interesse do indivíduo se interrompe a meio caminho, por assim dizer; é como se a última impressão, antes da estranha e traumática, fosse retida como fetiche”404

. Desse modo, a preferência pelo pé ou o sapato como fetiche se devem à circunstância de o menino espiar os órgãos genitais da mulher a partir de baixo; peles e veludo constituem uma fixação da visão dos pêlos púbicos; e peças de roupa íntima cristalizam o momento de se despir (momento em que a mulher ainda podia ser encarada como fálica).

Outro exemplo de caso clínico apresentado por Freud405 neste artigo aponta à atitude dividida dos fetichistas para com o tema da castração feminina, em que tanto a afirmação quanto a rejeição desta encontram caminho na construção do próprio fetiche. É o caso de um homem cujo fetiche era um suporte atlético que também podia ser usado como calção de banho, o qual cobria inteiramente os órgãos genitais e ocultava a distinção entre eles (aqui há uma identificação imaginária do sujeito com a mãe, pois ele possui um falo oculto sob suas roupas). Ficou demonstrado na análise que isso significava que as mulheres eram castradas e que não eram castradas; a hipótese de que os homens eram castrados também existia, pois todas essas possibilidades podiam ser ocultas sob o suporte – que teve como primeiro rudimento em sua infância, a folha de parreira de uma estátua.

Freud afirma ainda que, em outros casos, a atitude dividida se mostra naquilo que o fetichista faz com o fetiche, seja na realidade ou em sua imaginação. Ele pode reverenciá-lo, ou, como em muitos casos, tratá-lo de maneira equivalente a uma representação da castração:

Isso acontece particularmente, caso ele tenha desenvolvido uma forte identificação com o pai e

404

Ibid. p.157.

405

desempenha o papel deste último, pois foi a este que, em criança, atribuiu a castração da mulher406. Assim, o tratamento afetuoso ou hostil para com o fetiche, que corre em paralelo com o reconhecimento e a rejeição da castração, está mesclado em proporções desiguais em casos diferentes, de forma que um ou outro seja mais facilmente identificável. No comportamento do

‘coupeur de nattes’407

, por exemplo, a necessidade de executar a castração, que ele mesmo rejeita, aparece em primeiro plano. “Sua ação contém em si própria as duas asserções mutuamente incompatíveis: ‘a mulher ainda tem um pênis’ e ‘meu pai castrou a mulher’”408.

Em suma, Freud verifica nesse artigo que a renegação da realidade não seria específica da psicose, percebendo-a também numa forma exemplar de perversão como é o fetichismo. Observa-se que, nessa perversão, o sujeito renega a realidade sobre a ausência de pênis na mãe (mulher), ou seja, em seu psiquismo, a mulher possui um falo, não obstante sua ausência constatada. É através do fetiche, portanto, que o sujeito se protege contra a angústia, o horror da castração, e também que a fantasia da ‘mãe fálica’ adquire consistência para ele.

Segundo Valas409, é daí que resulta o processo de feminilização do sujeito, no qual ele se identifica com o objeto de sua fantasia, ou seja, a mulher fálica. Ademais, pontua que o fetichismo, por seus traços específicos, aparece bem como uma introdução necessária ao estudo das perversões, constituindo, pelas próprias condições de sua emergência, a matriz originária destas.