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dias Sem a possibilidade de uma formação humana (paideia) através, por exemplo, da amizade, não

há como o humano ser sujeito de si mesmo, ou seja, dar forma àquilo que ele é e deseja ser.

452 “Com efeito, uma coisa é uma regra de conduta; outra, a conduta que se pode medir a essa regra. Mas outra ainda é a maneira que se pode ‘conduzir-se’ ⎯ isto é, a maneira pela qual se deve constituir a si mesmo como sujeito moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o código”. FOUCAULT, M. O uso dos prazeres, p.27 et sec.

códigos de comportamento e as formas de subjetivação. Motivo pelo qual é possível

pensar que algumas morais valorizam mais a ordem da lei sobre uma pluralidade de ações e de escolhas (o sistema penitencial provocou no século XIII, diz Foucault, uma juridificação da experiência moral454), ao passo que outras morais se dirigem

mais radicalmente a relação consigo, tais como na Antigüidade.455 “Da Antigüidade

ao cristianismo, passa-se de uma moral que era essencialmente a busca de uma ética pessoal para uma moral como obediência a um sistema de regras. E se eu me interessei pela Antigüidade, é que, por uma série de razões, a idéia de uma moral como obediência a um código de regras está atualmente em vias de desaparecer; já desapareceu. E, a esta ausência de moral responde, deve responder, uma busca que é aquela por uma estética da existência”.456 A atualidade da estética da

existência pressupõe a falência da moral como lei ou código de regras, sentido que Nietzsche não cansou de repetir para justamente destruí-lo, como fundamento de uma moral.

Podem os códigos morais serem semelhantes, mas a relação consigo se difere de uma cultura a outra, como dos antigos aos cristãos, embora não se deva falar de uma “moral cristã”, como ensina Foucault, na reversão de seu mestre Nietzsche, mas de “morais cristãs” (podemos pensar que as diferentes ordens religiosas do cristianismo, os beneditinos, os franciscanos, os dominicanos, sustentavam diferentes regimes de vida). Em todo caso, em termos de uma genealogia da moral, o modo de vida cristão acentuará a obediência da lei no lugar de buscar a realização estética de si mesmo. A ameaça do castigo e o cumprimento da dívida (Schuld) para com Deus, no ápice do cristianismo e das práticas de penitência, pesam mais do que o desejo de glória (Kleos) mantido pelo trabalho cotidiano na escolha singular de uma existência, tal como entre os gregos. A lei de Deus e, posteriormente, a norma das ciências, ocupou por muitos séculos a morada de nossas próprias decisões e de nosso destinar no mundo. Aprendemos a delegar a intransferibilidade de nossa história ao conhecimento e cuidado do que os outros julgam e assim destinam ser quem somos, não pela experiência de se tornar quem se é pelo brilho público das ações e pelas escolhas dos afazeres, mas pela identidade do que não se pode evitar (ainda que se esconda), quando a lei de um

454 Cf. O Ibidem, pp.29-30.

455 Diz Foucault: « A ênfase é colocada na relação consigo que permite não se deixar levar pelos apetites e pelos prazeres, que permite ter, em relação a eles, domínio e superioridade, manter seus sentidos num estado de tranqüilidade, permanecer livre de qualquer escravidão interna das paixões, e atingir um modo de ser que pode ser definido pelo pleno gozo de si ou pela soberania de si sobre si mesmo ». Ibidem, p.30.

saber vigora sobre a constituição do caráter, em relação ao qual certa ocupação, produtiva ou terapêutica, deve se ajustar.

A moral dos gregos e latinos, segundo Foucault, era de finalidade estética e de escolha primeiramente pessoal, e não uma lei para todos ou um programa de normalização sobre as ações e relações humanas.457 Antes de agirem conforme uma

dada regra, em relação à qual não poderiam falhar, à custa de se favorecer o mal e de se desviar do bem, havia uma preocupação dos antigos em se distribuir culturalmente técnicas e procedimentos para impor a si mesmo uma forma. Não sob uma regula vitae, mas sob uma forma de vida e para vida, no interior de uma

tekhne tou biou (ars vitae): uma forma que depende de técnicas sobre a ação, mas

que se projeta para além das técnicas cultivadas ao repercutir belamente, e eticamente, um modo de agir, um estilo de ser, em meio à variedade de circunstâncias e ações humanas. A vida que se obtém graças à tekhne não obedece a uma regula, a um corpus de regras, mas a uma forma, a um estilo de vida. A despeito de obedecer algumas regras para a arte à qual se dedica, o bom arquiteto, por exemplo, faz suficientemente uso de sua liberdade quando dá ao templo uma forma que seja bela na sua singularidade.458 A tekhne tou biou, a aplicação técnica

sobre a vida, não corresponde à produção da vida como coisa, sob o exame de certa regra à qual antecipadamente se apelou e se seguiu, antes, exige o trabalho de dar

457 “Eu não acredito que se possa encontrar qualquer normalização, por exemplo, na ética dos estóicos. O motivo, penso, é que o principal objetivo deste tipo de ética era estético. Primeiro, este tipo de ética era apenas um problema de escolha pessoal. Segundo, era reservado a poucas pessoas da população; não era uma questão de fornecer um modelo de comportamento para todos. Tratava-se de uma escolha pessoal para uma pequena elite. A razão para esta escolha era o desejo de viver uma vida bela, e de deixar, como legado, uma existência bela. Eu não acredito que possamos dizer que este tipo de ética tenha sido uma tentativa de normalizar a população”. FOUCAULT, M. “Sobre a genealogia da ética”. In: Michel Foucault..., p. 254.

458 “Se existe esta liberdade e uma definição tão ligeira destes exercícios e de seu encadeamento, não se deve esquecer que tudo isso se passa no quadro não de uma regra de vida, mas de uma tékhne tou

bíou (uma arte de viver). (...) Fazer da própria vida uma tékhne, portanto, fazer da própria vida uma

obra — obra que (...) seja bela e boa — implica necessariamente a liberade e a escolha daquele que utiliza sua tékhne. Se a tékhne devesse ser um corpus de regras às quais seria preciso submeter-se de ponta a ponta, minuto a minuto, instante a instante, se nela não houvesse precisamente esta liberdade do sujeito, fazendo atuar sua tékhne em função de seu objetivo, do desejo, de sua vontade de fazer uma obra bela, não haveria aperfeiçoamento da vida. Não se deve esquecer, justamente, que um dos grandes elementos da espiritualidade cristã será que a vida deve ser vida ‘regrada’. A regula vitae (a regra da vida) é essencial. (...) Em contrapartida, a vida filosófica, ou a vida tal como é definida, prescrita pelos filósofos, como sendo aquela que se obtém graças à tékhne, não obedece a uma regula (uma regra): ela obedece a uma forma (uma forma). É um estilo de vida, uma espécie de forma que se deve conferir à própria vida. Por exemplo, para construir um belo templo segundo a tékhne dos arquitetos, é preciso certamente obedecer a regras, regras técnicas indispensáveis. Mas o bom arquiteto é aquele que faz suficientemente uso de sua liberdade para conferir ao templo uma forma, uma forma que é bela. De igual modo, quem quiser fazer da vida uma obra, quem quiser utilizar como convém a tékhne toû bíou, deve ter em mente não tanto a trama, o tecido, a espessa filtragem de uma regularidade que o acompanhe perpetuamente, à qual deveria submeter-se. Nem obediência à regra, nem qualquer obediência podem, no espírito de um romano e de um grego, constituir uma obra bela. A obra bela é aquela que obedece à idéia de uma certa forma (um certo estilo, uma certa forma de vida)”. FOUCAULT, M. Hermenêutica do sujeito, pp.513-514.

beleza à história do que se vê sempre a caminho, no exercício aberto da liberdade, embora capaz de reconhecer, e de reconhecer-se, nos feitos e nas ações daquilo que como obra deixou para trás, sob os princípios que a si mesmo se impôs. Se a cultura cristã privilegiou a renúncia do eu em virtude do amor a Deus, a cultura da Antigüidade permitiu o trabalho de retorno a si, de conversão sobre si mesmo, menos exclusivamente para conhecer a alma, como em Platão, do que para sabiamente criar a força e o lugar onde, embora o mundo em torno se precipite sem que se possa mais agir, ainda se tenha um porto de chegada para novamente se abrir o horizonte do próprio destino. Somente a vida, não a vida que o outro vive, mas a reunião permanente das próprias experiências, pode ser tal porto. Vale lembrar a receita de Bias de Priene, considerado por Sátiros o primeiro entre os Sete Sábios: « Faze da sabedoria a tua provisão para a viagem desde a juventude até a velhice, pois ela merece mais confiança que todos os outros bens ». A sabedoria (sophia) é o saber voltado para o viver, capaz de reunir a dispersão das experiências à medida que se vive, entre circunstâncias menos ou mais favoráveis da existência. E Bias sabia que o difícil é suportar « dignamente as mudanças da sorte para pior ».459

Das técnicas de escrita a técnicas de interpretação de sonhos, dos sonhos aos exercícios de preparação para os males ou para a morte, os antigos lembram que a vida não é apenas acúmulo, positividade, mas também desperdício, risco de perder o que se reuniu, recomeço do que se perdeu. A questão é como agir mesmo quando a sorte (tykhe ou fatum) tenha desviado ou invadido o espaço de regularidade entre as escolhas e as ações (considerando, é claro, que possa haver regularidade e que o mundo humano não seja justamente a diferença, o acaso, ou ainda, como chama Clément Rosset, o real). Mesmo que a técnica como aplicação não tenha dado conta da inevitabilidade no plano da ação e dos acontecimentos humanos, vale a preparação para a qual se exercitou antes de se deixar entregue ao pior, que sempre pode ser pior quando o acontecimento não é esperado. O pior da sorte pode aniquilar a ação por um tempo, mas não por todo o tempo, por outro lado, o pensamento pode preparar o agir para o pior quando for o caso de vir a enfrentá-lo. É o caso de um dos exercícios de meditação mais importantes na cultura antiga, sobretudo entre os estóicos: o praemeditatio malorum.460

459 Cf. LAÊRTIOS, D. Vida e doutrina dos filósofos ilustres, p.35-36. 460

Foucault comenta um dos exercícios mais célebres da ascética helênica e romana, sobretudo entre os estóicos: a praemeditatio malorum. Não se trata de representar o futuro tal como é possível que ele se produza, mas de imaginar que o pior possa acontecer, não distantemente, mas imediatamente, e também não para sofrê-lo, mas para se livrar dele como um mal, modificando para si sua

Duas idéias fundamentais fascinam Foucault no seu retorno aos antigos: a idéia do bios como uma peça de arte estética e a idéia de que a ética pode ter existencialmente uma estrutura própria sem relação com o jurídico per se, com a lei de um sistema autoritário ou com a norma de um programa disciplinar.461

Arístipos, filósofo entre os séculos V e IV a.C., perguntado sobre a vantagem que os filósofos levam sobre as demais pessoas, respondeu: « Se todas as leis fossem revogadas, continuaríamos a viver de maneira idêntica ».462 Não porque os filósofos

(antigos) faziam o que bem entendessem, mas porque procuravam entender sobre aquilo que faziam, na ação e no discurso, como uma lei imposta a si mesmo, menos sob o apoio de textos ou Escrituras do que sob a prática refletida da prudência (phronesis), a qual, como ensina Aristóteles, reúne racionalmente tanto a disposição prática da ação, quanto a teoria como princípio de reflexão sobre o agir. A autarquia moral não leva, portanto, a uma anarquia política (e ao sonho de uma sociedade sem governo), ao passo que a carência da lei não exige que o modo de vida filosófico seja modificado no seu princípio.

Um dos desafios de nosso tempo, penso, é tentar liberar o pensamento de um elo analítico entre a ética, como reflexão moral e ação moral, e as estruturas políticas, administrativas, econômicas de nossa sociedade, como se as nossas decisões e escolhas pessoais, nos prazeres, no amor, na relação consigo e com os outros, comprometessem o destino público de todos: eis um desafio teórico e uma tarefa prática lançados por Foucault (o desafio, portanto, de liberar o campo moral do domínio do código e a ética da norma).463 Se as leis da cidade supostamente

garantem a conservação de nossa liberdade moderna como prerrogativa da Constituição, e a norma dos pastores constituem a tradição de saberes que examinam e expõem nossa intimidade, cabe à filosofia de nossos dias, entre outras ocupações, e como tarefa ainda da ação e do pensamento, recuperar a tarefa prática da liberdade como desafio teórico e, assim, mostrar as pessoas o quanto « elas