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que haja um homem bastante hábil e vigoroso para escapar a essa alternativa, não podemos esquecer

outro perigo fatal, terrível, que é o de qualquer hábito. Todos se transformam rapidamente em necessidades. Aquele que recorrerá a um veneno para pensar breve não poderá mais pensar sem veneno. Já imaginaram o destino horrível de um homem cuja imaginação paralisada não saberia mais funcionar sem o socorro do haxixe ou do ópio? ». Ibidem, p.92.

373 Se por um lado nossas sociedades proíbem uma série de usos, por prescrições médicas ou pela reação moral (decorrente sempre de uma história, claro), por outro lado abdica de outras que tiram ou incentivam o apetite, obrigam a dormir, motivam o trabalho, aumentam os músculos e permitem, admiravelmente, uma ereção tão longa quanto o tempo que se espera do prazer. Drogas que regulam e sem as quais dificilmente se suportaria o mecanismo de coerção de nossas sociedades (a função do

soma em Admirável mundo novo de Huxley). Nesse caso, não são usadas como experiência de

apreciação estética do mundo e das coisas, segundo os limites que se estabelece na relação consigo e com os outros, mas, antes, como um meio para normalizar a disposição, controlar os humores ou suprir a dor, em vista do que em si mesmo, por suas escolhas ou funções, não suporta mais viver. Antes de se fazer uma apologia aos alucinógenos que não se arrisca usar, por legalidade, medo ou escolha, penso que se pode colocar em jogo as dependências às quais se é levado, quando, por problemas demasiadamente humanos, se recorre às drogas por fuga de si ou tratamento, em vista de uma normalização.

Capítulo 9. O controle político da intimidade e a vontade de saber sobre o sexo como problema moral

Poucos segundos depois, sentiu a mão acariciar-lhe os cabelos. Levantou, então, a cabeça e, do fundo do coração, escaparam-lhe as palavras: “Vou contar tud a você”. o

Arthur Schnitzler, Breve romance de sonho.

O poder sobre a vida não alcança apenas a visibilidade do que se mostra, mas também a invisibilidade do que se suspeita, examina e controla no cotidiano dos corpos menores374, sob a astúcia de não se mostrar sempre, como fazia o corpo

do rei no ritual público do suplício (conforme descreve Foucault em Vigiar e punir o modelo de poder entre os séculos XVII e XVIII, na idade clássica). É sobre uma realidade que está no corpo, mas não é fisiologicamente apenas corpo,375 que as

formas de poder e de saber na modernidade se articulam sobre o sujeito, qual seja, a alma. Claro, a alma não como entidade, representação ou modelo do corpo, mas como lugar, historicamente inventado e simbolicamente modificado,376 a partir do

qual discursos verdadeiros e práticas de controle se justificam, a alma como “efeito”, portanto, “e instrumento de uma anatomia política. A alma, prisão do corpo”.377 Da alma como fim para o conhecimento da idea e princípio do governo de

si, em Platão, à alma como objeto de uma hermenêutica do eu, dos estóicos aos cristãos, chega-se às almas do homem da multidão, ou melhor, dos humanos em meio à multidão, cujos segredos e disposições a política moderna desvenda à medida que explora racionalmente e distribui o valor de cada pessoa, segundo critérios rigorosos de um saber (mesmo no conceito de loucura várias espécies de

alma habitam — o depressivo, o maníaco, o esquizofrênico... —, ou se afastando, ou

se aproximando, do que seja loucura no processo de normalização). É justamente em função daquilo que não se alcança no corpo, seus sentimentos, valores, conflitos e disposições, que o poder cria uma série de identidades, por cujo conhecimento está autorizado a cuidar mais proximamente da vida de suas « almas ». Logo, não se tratam de almas mortas, os servos rurais falecidos que o protagonista Tchítchikov de Gógol comprava em Almas mortas, mas de almas vivas, ou seja, de pessoas cuja intimidade é em vida posta à luz para a avaliação pública e para o exame pastoral do poder. O valor reconhecido publicamente e que, entre os

374 DELEUZE, G. Foucault. Trad. Claudia S’ Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 1998.

375 A genealogia de Foucault não reduz o corpo à ordem de sua fisiologia: o corpo, diz Foucault, « também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais ». FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p.28.

376 Sobre a alma « vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc. ». Ibidem, p.31.

antigos, revertia no brilho da glória (kleos), não é a coragem ou a justiça das palavras e das ações, mas justamente aquilo que não se vê e que o poder põe em evidência para conhecer e, pelo conhecimento, controlar: controlar o que se faz, pensa, imagina, sente, deseja, enfim, tudo aquilo que vive no corpo, anima o o corpo e que, muitas vezes, do próprio sujeito se oculta. Se o interesse da casa (oikos) estava reservado a quem nela vivia e sobre ela governava entre os gregos, o que se passa hoje em dia na intimidade, como a morada das escolhas, decisões e conflitos, como o modo de ser e pensar de uma certa pessoa, é transferido ao juízo público, para se saber quem é quem, em casa ou na vida social. E mesmo quando se trata de ações e palavras que são, por finalidade, públicas, o que ao olho do

poder interessa é o que não é visto em quem age e fala (é interessante

psicologicamente observar como, não raras as vezes, as pessoas se mostram preocupadas sobre o que o outro podia estar pensando a seu respeito enquanto ela falava ou fazia fosse o que fosse).

O que faz do panópticon de Bentham378 um objeto de fascínio por parte de

Foucault é justamente o que se projeta para além da materialidade física de sua construção: é a simbólica capacidade de poder dar a cada pessoa um lugar, uma ocupação, uma identidade, de modo que o louco se reconheça em sua loucura, o homossexual em seu desejo, o criminoso em sua delinqüência... Pouco importa quem esteja no centro da torre, vendo sem ser visto, e o que motiva seu olhar, “se a curiosidade de um indiscreto, a malícia de uma criança, o apetite de saber de um filósofo que quer percorrer esse museu da natureza humana”.379

A sociedade panóptica380 (ou o panoptismo social) e a normalização dos

corpos são parte de um único e mesmo processo de diferenciação e planificação dos humanos, através do qual se opera uma exclusão pela inclusão dos corpos nos saberes, nas instituições, de tal modo que a consideração do outro como diferente, como indivíduo, pressupõe a possibilidade de adequá-lo ou corrigi-lo com base na norma (não se trata de uma norma jurídica que prevê ou proíbe uma mesma ação

378 Trata-se do projeto arquitetônico de J. Bentham, cuja idéia veio do irmão quando visitou a Escola Militar de Paris, em 1751 (FOUCAULT, M. “O olho do poder”. In: Microfísica do poder, p.210). Veja-se a descrição de Vigiar e punir: “na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário, ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível”. FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p.177.

379 Ibidem, p.178.

para todos, mas de uma norma que hierarquiza e avalia as ações individualmente, a partir de quem é avaliado e pelo quanto é capaz de produzir, tanto em termos de coisas como de comportamento, num determinado tempo e lugar). « A norma », diz François Ewald, « está no princípio de uma comunicação sem origem e sem sujeito ».381 Porque da norma nada escapa, nem ninguém: é como o Castelo de

Kafka, cujo governo prescinde do conhecimento de quem dentro dele está, tanto quanto não obriga ninguém a nele fisicamente estar para ser governado (aliás, o interior do Castelo é algo absolutamente inacessível, como o interior da lei kafkiana, cuja lógica, por mais sistemática e racional que seja, depende da casualidade de quem governa, e como governa, no tempo favorável de seu domínio: o que mantém o governo é a ignorância de quem governa e de como se governa, é a distância não alcançável, mas fisicamente presente, do Castelo). A história de nossa racionalidade política contemporânea passa pelo « ajuste cada vez mais controlado — cada vez mais racional e econômico — entre as atividades produtivas, as redes de comunicação e o jogo das relações de poder », mais do que a obediência generalizada dos indivíduos em sociedades que aparentam casernas, escolas ou prisões.382

Tríplice função panóptica: vigilância, exame e correção,383 para as quais as

instituições do século XIX, pedagógicas, hospitalares, psiquiátricas, prisionais, as

instituições de seqüestro,384 serviriam de apoio para cuidar da individualidade de

cada indivíduo, e modificá-la ou corrigi-la quando for caso, no nível de suas ações e potencialidades, no nível, em uma palavra, de sua alma. Uma nova modalidade do poder:385 “O Panópticon é a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é,

no fundo, a sociedade que atualmente conhecemos ⎯ utopia que efetivamente se realizou”.386 Bentham fez com que a obstinação policial de nossas sociedades

modernas olhasse para si mesma na arquitetura circular dos olhares: ele projetou o que já se existia, em termos de racionalidade política e, ao mesmo tempo, transformou em realidade uma utopia social, em termos de policiamento da vida.

381 EWALD, F. « Michel Foucault et la norme ». In: GIARD, Luce (ed.). Michel Foucault: Lire l’oeuvre, p.206.

382 FOUCAULT, M. « O sujeito e o poder ». In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault..., p.242. 383 O “tríplice aspecto do panoptismo ⎯ vigilância, controle e correção ⎯ parece ser uma dimensão fundamental e característica das relações de poder que existem em nossa sociedade”. FOUCAULT, M.

A verdade e as formas jurídicas, p.103.

384 Cf. Ibidem.

385 Essa nova espécie de poder surge por volta do século XVIII e vai se apoiar mais “nos corpos e seus gestos que na terra e seus produtos”, como “um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais do que bens e riqueza” e, ao contrário de “transcrever em termos jurídicos obrigações descontínuas e crônicas de tributos”, codifica “uma vigilância ininterrupta”.FOUCAULT, M. Em defesa

da sociedade, p.187.

Admirável mundo novo. Se Huxley leu Bentham não o sabemos, nem interessa, mas

certamente compreenderia a promessa da fantástica invenção do panópticon.

Mudança das relações de poder, mudança nas relações de saber. Até o século XVII, aproximadamente, o saber dominante obedecia ao modelo do inquérito, inventado por práticas jurídicas tal como na tragédia de Édipo (o fato acontecido e o olhar do testemunho qualificam o inquérito enquanto investigação da verdade),387

ao passo que no século seguinte o saber é sustentado pelos procedimentos de

exame. Se as ciências naturais como a geografia, a astronomia, o conhecimento dos

climas, e as ciências sociais como a economia política, a estatística, nasceram de uma matriz comum chamada inquérito, as ciências humanas como a psiquiatria, a pedagogia, a psicologia, entre os séculos XVIII e XIX, devem sua origem ao exame, cuja origem embora seja pastoral (e hebraica), apenas com os epicuristas e estóicos se configura como prática filosoficamente cultivada, no interior de um cuidado ético consigo. “O nascimento das ciências do homem?”, pergunta Foucault em Vigiar e

punir: “Aparentemente ele deve ser procurado nesses arquivos de pouca glória onde

foi elaborado o jogo moderno das coerções sobre os corpos, os gestos, os comportamentos”.388

Há uma história, obviamente, para a sociedade panóptica na qual ainda vivemos, sob a vigilância de câmeras, o exame de nossas ocupações, a escolha de nossos prazeres, o rendimento de nossos trabalhos, a repartição, em suma, de nossas atividades segundo aquilo que somos ou podemos ser, para o bem de toda a sociedade. Em A verdade e as formas jurídicas, Foucault conta essa história não a partir do poder pastoral, embora dele provenha, nem a partir da maneira pela qual o castigo é deslocado genealogicamente da resposta jurídica do rei sobre as “mil mortes” do corpo (no ritual suplício da idade clássica) à modalidade da prisão, no século XIX, como efeito de um programa disciplinar geral, nas fábricas, nas escolas, nos hospitais. Foucault conta a história do panoptismo social pela história dos

quackers e metodistas da Inglaterra, cuja tarefa era tanto vigiar quanto assistir

suas próprias comunidades no século XVII e, na França, conta a história das

387 Cf. Ibidem, Conferência II, na qual Foucault lê a peça de Édipo como uma lição do direito Grego, ou seja, segundo as práticas jurídicas, de investigação, de inquérito, de testemunho para se encontrar a verdade do fato acontecido. Ao longo da Idade Média, o inquérito é substituído pelo sistema de prova do direito Germano, cuja busca pela verdade se dava por uma série de provas: a condição social do acusado, o modo como se falava sobre o fato, etc. (Conferência III). Nesta época, o direito fundava-se na noção de dano, que permitia uma disputa entre vítima e acusado, em relação aos quais o juiz não passava de um regulador da guerra. Quando, mais tarde, o poder monárquico confisca as práticas judiciárias (por volta do século XII), a noção de dano é substituída pela de infração e todo o crime passa a ser considerado uma ofensa contra o Estado, ou seja, contra o corpo do rei, tal como se descreve em Vigiar e punir. Novas formas de poderes, nova racionalidade política e, conseqüentemente, novos modos de conhecer e dizer a verdade, de produzir as verdades.

lettres-de-cachet, uma ordem do rei obrigando alguém a fazer qualquer coisa, como

se casar, embora servisse geralmente de punição que como tal podia resultar na prisão como medida corretiva.389 Se os grupos espontâneos ingleses, inicialmente,

se antecipavam à penalidade estatal pelo controle moral rigoroso sobre cada indivíduo, entre os franceses do século XVIII, o Estado se valia de uma ordem policial, as lettres-de-cachet, cuja denúncia, por sua vez, partia das próprias comunidades, contra o comportamento ímpio ou imoral de certa pessoa de seu convívio.

A ocupação moral de governo das almas, entre os cristãos, se converte modernamente na preocupação política de governo dos vivos, cujas almas o poder decifra, avalia e expõe, por técnicas de saber e de poder, tal como as ciências humanas, com suas instituições e programas em torno do indivíduo. Mas não apenas por parte das ciências humanas. Do desconforto que a sensação de vigilância poderia supostamente gerar, o poder garante a possibilidade de mostrar aquilo que o corpo pode oferecer: beleza, sexo, propaganda, regimes... Os aparelhos de comunicação estão diretamente ligados nesse sentido: o que o Big Brother não mostra na TV pode ser visto na internet, a respeito do que, aliás, cotidianamente se conversa e se produz juízos, em repartições públicas ou privadas, como se todos fizessem parte de um único e mesmo programa. O olho que assiste de múltiplas torres o palco diário do Big Brother é sustentado pelo desejo de também aparecer em público, embora nada de humanamente digno tenha a ser mostrado. “Somos bem menos gregos que pensamos. Não estamos nem nas arquibancadas nem no palco”, mas no círculo do panópticon.390 No lugar de uma vontade geral vivemos em

uma vontade de polícia que, ao contrário de esperar a decisão pública sobre algo de interesse em comum, julga o mais imediatamente possível quem aparece, sob a esperança de um dia também mostrar o que de saída não compromete o destino dos outros, nem ética nem politicamente, nem as decisões e escolhas pessoais,

389 As técnicas de controle dos grupos populares ingleses, usadas como defesa inicialmente frente a um duro sistema penal, são, no século XVIII, assimiladas por classes mais altas, bispos, duques e aristocratas, que começam a interferir na legislação estatal e, posteriormente, no século XIX, o controle moral sobre cada indivíduo se torna um mecanismo político contra as classes mais pobres. “Auto-defesa no século XVII, instrumento de poder no início do século XIX”, diz Foucault. Na França, diferentemente, com seu aparelho de Estado ainda bem forte, sob uma monarquia absoluta no século XVIII (ao passo que a Inglaterra já havia passado por revoluções burguesas no século anterior), o poder se apoiava, por um lado, no sistema jurídico clássico (cortes, parlamentos...) e, por outro lado, na polícia, com seus tenentes, frotas e instrumentos como as lettres-de-cachet, cuja emissão, embora proviesse do rei, dependia da denúncia de gente comum, maridos ultrujados, pais descontentes... e, caso fosse comprovada a conduta imoral, ímpia ou criminosa, o Estado interviria pelas lettres-de-

cachet, as quais podiam resultar na prisão do indivíduo, não como pena do direito, mas como correção

(princípio genealógico de nossas prisões, embora tenham se adequado ao sistema de penalidade jurídica). Cf. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas, conferência IV, p.79-102.

nem, muito menos, o rumo da cidade ou do planeta. A vontade de polícia, da qual fazemos parte, é uma disposição mais coletiva do que individual, embora parta de cada indivíduo, pelo simples fato de querer ver, suspeitar e avaliar quem é o outro e o que ele faz ou pensa. Trata-se de uma mecanismo também psíquico que provém de tudo e ao mesmo tempo não está em ninguém: “cada um, de acordo com seu lugar, é vigiado por todos ou por alguns outros; trata-se de um aparelho de desconfiança total e circulante, pois não existe ponto absoluto. A perfeição da vigilância é uma soma de malevolências”.391 Um mecanismo de defesa, cuja soma

das vontades que a articulam individualmente conta com a desconfiança para dar conta de sua suposta perfeição coletiva (o perigo de tal modalidade de poder é, justamente, impedir o espaço de criação livre da liberdade individual, com a qual é prudente se comprometer em termos de decisão e preocupação públicas). A unidade das partes que fundavam a totalidade do Leviatã, em razão da garantia jurídica das vidas, é convertida cada vez mais na disparidade de um poder que multiplica a vida, sua boa disposição e seus problemas, à medida que se incentiva os corpos a uma disputa mútua entre si, no trabalho e no entretenimento, por mais vida, pela positividade de tudo que pode a vida (e do que cada um pode: você pode, dizem os comerciais de TV e assim vendem o produto ou a marca que se necessita para, paradoxalmente, poder o que todos já podem). E quanto mais trabalhamos e nos dedicamos a esta política, mais monótonas parecem nossas diversões e mais sem sentido nossas vidas.

Esses trabalhos aos quais somos levados, por uma escolha ou por não se ter escolha, é o que nos mantêm vivos, não apenas porque dependemos deles para sobreviver, nem porque eles justificam o absurdo de nossa existência, a qual, em si mesma, não possui valor algum, porque, como diz Nietzsche, não pode ser avaliada (assim como o trabalho não possui um valor em si: para os gregos, por exemplo, era um ultraje392). O trabalho nos mantêm vivos porque não sabemos mais viver sem o

trabalho, não conseguimos mais viver inutilmente, pela aplicação medida e pelo exercício livre do ócio (skhole), como entre os antigos viviam os filósofos, sobretudo para se dedicarem às atividades supremas na cidade (à ação e ao discurso), embora, é claro, contando com a sustentação econômica dos escravos (douloi). Em compensação trabalhamos e vivemos para o supérfluo, para vivermos

superfluamente, a custa do quanto produzimos e do quanto falamos, sobre o que se

sente, ressente e consente de si mesmo e dos outros, sobre quem somos e quem

391 FOUCAULT, M. “O olho do poder”. In: Microfísica..., pp.220-221.

392 Cf. NIETZSCHE, F. « O estado grego ». Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. Pedro