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onde viemos e para onde vamos” ( ) Tenta-se ( ) manter o ideal moral (com preponderância do

altruísta, da abnegação, da negação da vontade”. Idem, 30, p.49.

178 « A minha luta contra o sentimento de culpa e a mistura do conceito de castigo no mundo físico e metafísico, assim como na psicologia e na interpretação da história. Visão da moralidade de todas as filosofias e valorações que até agora tem existido ». NIETZSCHE, F. Voluntad de poder, 1014, p.655. 179 CAMUS, A. O homem revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p.90. 180 Cf. NIETZSCHE, F. Voluntad de poder, 55, p.69.

181 Cf. NIETZSCHE, F. A gaia ciência, 125, p.148. 182 Cf. SAVATER, F. Idea de Nietzsche, pp.59-60.

dizer sim ao mundo e recriá-lo, a vida cria a si mesma, por paixão a tudo que existe.183

No limiar histórico da morte de Deus resta assim à vida, à vida humana especificamente, admitir a ausência de fundamento e de sentido prévio para si mesma: consciência de abismo (Abgrund), o efeito psicológico na história da morte de Deus. Do que decorre ou a necessidade da verdade sob a crença metafísica da ciência, ou uma tentativa qualquer de reforma moral do mundo (os ideais democráticos, socialistas, anarquistas...); ou, ainda, a constatação trágica de que estamos à deriva em uma história sempre a se modificar, da qual somos herdeiros e protagonistas, e a qual não é possível negar ou excluir (a consciência de nossa própria fatalidade184): é o momento oportuno para o niilismo se completar e se

tornar ativo. Sem uma finalidade para a história e um sentido antecipado para a vida, o mundo se mostra tal como é, ou seja, caos, desordem e gratuidade, e o valor da realidade se desloca para a aparência, para o que se produz a cada instante como diferença (há, por sua vez, uma valoração do devir e do esquecimento como condição de possibilidade para toda a criação185). A crítica aos valores eternos via,

por exemplo, uma genealogia da moral, é o reconhecimento de que estamos à deriva, lançados entre choques de forças casuais na superfície da história e, por isso mesmo, nunca houve, para Nietzsche, tanto mar aberto.186

A morte de Deus, cujo sangue e assassinato herdamos (no discurso lúcido do louco), é a oportunidade para a morte da moral, para talvez ser dado outro sentido à moral, sem que lhe custe a total destruição (a partir de sua própria historicidade, de como, em outra época, já foi pensada e experimentada). A vida se confronta consigo mesma e se reconhece como responsável por tudo que vive. “A partir do momento em que o homem não acredita mais em Deus nem na vida imortal, ele se torna ‘responsável por tudo aquilo que vive, por tudo que, nascido da dor, está fadado a sofrer na vida’. É a si próprio, e somente a si próprio, que cabe encontrar a

183 “Há, na verdade, um Deus, que é o mundo. Para participar de sua divindade, basta dizer sim. ‘Não rezar mais, mas dar a benção’, e a terra se cobrirá de homens-deuses. Dizer sim ao mundo, reproduzi- lo, é ao mesmo tempo recriar o mundo e a si próprio, é tornar-se o grande artista, o criador (...) A transmutação dos valores consiste somente em substituir o valor do juiz pelo do criador: o respeito e a paixão pelo que existe”. CAMUS, A. O homem revoltado, p.95.

184 Cf. Ibidem, p.94.

185 Diz Nietzsche: « Esquecer não é uma simples vis inertiae (força de inércia) como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência (...) ». NIETZSCHE, F. Genealogia da moral, « Segunda Dissertação », 1, p.47.

186

« O maior acontecimento recente — o fato de que ‘Deus está morto’, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito — já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa (...) e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral européia, por exemplo (...) e provavelmente nunca houve tanto « mar aberto ». NIETZSCHE, F. A gaia ciência, 343, p.234.

ordem e a lei”, diz mais uma vez Camus a propósito de Nietzsche.187 E não há lei

mais cara ao viver humano senão aquela que a vida impõe a si mesma, duplamente

como obediência e mandamento, nas palavras de Zaratustra. O mais célebre dos

medicamentos, a moral, na luta contra o niilismo da vontade (nada querer), envenenou de tal modo a vida, como vontade de se culpar e, ao mesmo tempo, de se redimir dos pecados, que a vida se vê em luta permanente contra o vazio que ficou no lugar de Deus, o vazio para o qual não encontra cura (querer o que passou e querer o além equivale a querer o nada). Mas a moral que envenena a vida é, evidentemente, a moral do altruísmo. É a moral que como um valor absoluto se eleva sobre os demais valores188 e cria uma hierarquia capaz de avaliar o próprio

indivíduo, sob o instinto de rebanho,189 pelo desejo também de conhecê-lo, o qual,

por sua vez, se recusa a avaliar e a avaliar-se de sua condição precariamente humana, para além do que pode em si e de si mesmo conhecer. Há, contudo, uma outra perspectiva moral que é prezada por Nietzsche, embora boa parte de sua obra corresponda à noção de moral (moralidade ou eticidade) o sentido de negação de si, obediência à lei ou submissão à verdade.190 Mas a que moral Nietzsche deve

respeito?

187 CAMUS, A. O homem revoltado, p.91.

188 NIETZSCHE, F. Voluntad de poder, 272, p.207.

189 “Onde quer que deparemos com uma moral, encontramos uma avaliação e hierarquização dos impulsos e atos humanos. Tais avaliações e hierarquizações sempre constituem expressão das necessidades de uma comunidade, de um rebanho: aquilo que beneficia este (...) é igualmente o critério máximo quanto ao valor de cada indivíduo. Com a moral o indivíduo é levado a ser função do rebanho e a se conferir valor apenas enquanto função (...) Moralidade é o instinto de rebanho no indivíduo”. NIETZSCHE, F. A gaia ciência, 116, p.142. Em A vontade de poder, Nietzsche diz: “La moral protegía a los malparados contra el nihilismo, al tiempo que concedía a cada uno um valor infinito (...)”. NIETZSCHE, F. La voluntad de poder, 54, p.70. E mais adiante: “Toda la moral europea se levanta y fundamenta sobre la moral del rebaño (...)”. Ibidem, 274, p.209.

190 A eticidade como obediência ao costume: « conceito de eticidade do costume » (Sittlichkeit der Sitte). No alemão se percebe melhor a aliança entre eticidade/moralidade e costume que remonta ao ethos grego. Cf. NIETZSCHE, F. « Aurora », 9. In: op.cit., p.159. « Na origem, toda a educação e cuidado com a saúde, o casamento, a arte de curar, a agricultura, a guerra, o falar e o calar, o relacionamento de uns com os outros e com os deuses, faziam parte do domínio da eticidade: ela exigia que se observassem prescrições, sem pensar em si como indivíduo (...) O mais ético é aquele que se sacrifica ao costume: quais são, porém, os maiores sacrifícios? Segundo o modo de responde a essa pergunta, desdobram-se várias morais diferentes: mas a diferença mais importante continua a ser aquela que separa a moralidade do cumprimento mais freqüente da do cumprimento mais difícil ». (Ibidem). Toda ação individual suscita, ao longo da história, arrepio, e a originalidade da má consciência, diz Nietzsche. A moral também como sofrimento voluntário (cf. aforismo n.18 de Aurora): « E assim entra no conceito do ‘homem mais ético’ da comunidade em virtude do sofrimento freqüente, da privação, da maneira dura de viver, da mortificação cruel — não, para dizê-lo sempre de novo, como meio de disciplina, de autodomínio, de desejo de felicidade individual, mas como virtude que dá à comunidade, junto aos deuses maus, um bom odor e, com um constante sacrifício de reconciliação, exala dos altares até ele ». A reflexão da moral como estética da existência, em Foucault, permite pensar a moral associada ao valor individual da ação, de cada gesto e em cada circunstância, embora de acordo, muitas vezes, como na ética epicurista ou dos estóicos, com uma ordem preexistente da qual o homem fazia parte e em relação à qual se exigia um conhecimento mínimo sobre os princípios do mundo (os

logoi) para distingüir o que dependia de sua ação e avaliação (bom ou mau) e para suportar mais

autarquicamente o que não dependia de si. Em oposição à moral como sofrimento, Foucault também sugere, a partir de Sêneca por exemplo, a relação de prazer consigo como parte do trabalho ético de si

No fundo, tenho aversão a todas essas morais que dizem: “Não faça isto! Renuncie!...” — mas tenho em boa conta as morais que me impelem a fazer algo e refazê-lo, e sonhar com ele à noite e em nada pensar senão fazê-lo bem, tão bem como somente eu posso fazê-lo!... “Nosso fazer deve determinar o que deixamos de lado: ao fazer, deixamos de lado” — é assim que eu gosto, assim diz o meu placitum (agrado). Mas não pretendo buscar de olhos abertos o meu empobrecimento, não me agradam as virtudes negativas — virtudes cuja essência mesma é a negação (...).191

A moral do fazer pertence a uma outra perspectiva da moral, a moral dos senhores (ou a moral nobre), em relação à qual tudo o que é moral, ou serve como critério para o que é moral, no tempo e no pensamento de Nietzsche, toma por imoral a nobreza de caráter, que “empresta honra às coisas, que cria valores”.192 E

cada instante, com as contradições próprias da vida (pelas quais a existência se põe além do bem e do mal), cada instante, enfim, é um instante de valoração, em meio a sensações e impressões no fluir das quais é necessário uma arte da separação e da interpretação, para saber não apenas o que se rejeita ou escolhe, mas como se rejeita e se escolhe. Todo sim traz consigo o custo de muitos não. A dor da existência está no suportar a contradição entre o que se deseja e o que se realiza efetivamente no mundo. A fórmula trágica de Nietzsche é nada negar nem excluir, redimir todo foi assim em assim eu quis, como diz Zaratustra. Amar o necessário e criar necessidades para além das obrigações impostas por outros: eis o trabalho da moral nobre do fazer. “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda eternidade. Não apenas suportar o necessário (...) mas amá-lo”.193 E grandeza para Nietzsche

significa também dar direção: dar direção à própria vida, o que não tem a ver com o ser pobre ou rico em dons.194 Ao fazer algo deixamos de lado uma infinidade de

coisas não feitas. E a escolha por fazer algo como somente eu posso fazê-lo significa fazer de tal modo que não pode ser repetido senão pela própria diferença de quem o faz. Quem faz o que quer que seja determina, ao mesmo tempo, o que deixa de lado. Em outras palavras, o que não é feito também é parte da escolha e do destino de quem se dedica a fazer algo. É nesse sentido que viver é pesar. A todo tempo