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entre o que é incomunicável e mudo e o que é comunicável e dizível, nos foi tolhida de uma vez por

todas. E nós não somos apenas, nas palavras de Foucault, animais em cuja política está em questão suas vidas de seres viventes, mas também, inversamente, cidadãos em cujo corpo natural está em questão a sua própria política ». AGAMBEM, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. Em todo caso, penso que o bios, como existência humana, é também parte do biopoder, cuja microfísica se dirige não apenas ao biológico do cidadão, mas àquilo que se faz e se pensa, ao modo de se viver, de sentir prazer e de agir: « a realização de suas virtualidades », como diz Foucault: « o que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida como as necessidades fundamentais, a essência concreta do homem, a realização de suas virtualidades, a plenitude do possível ». (FOUCAULT, M. A vontade de saber, p.136). A biopolítica intensifica, sem dúvida, o cuidado com a vida do ponto de vista biológico, porém bios, na distinção clássica de Aristóteles de zoe, é uma espécie de praxis (Política, 1254 a). Como o problema de toda política são as ações e os discursos humanos, seus meios e seus fins, a biopolítica interfere na praxis, coletiva e individual, em função do ideal de vida que ela pretende atingir, vida como sáude, produtividade, seguridade... Cf. ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. 3. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

336 Entre outros temas em torno do morrer e do afastamento da morte na nossa civilização, Norbert Elias mostra o quanto a morte, da Idade Média aos Estados Modernos, se torna um evento menos público e mais privado, ou melhor, privatizado (Cf. ELIAS, N. A solidão dos morimbundos, p.25): “morrer é no presente uma situação amorfa, uma área vazia no mapa social. Os rituais seculares foram esvaziados de sentimento e significado”. (Ibidem, p.36) O tratamento dos cadáveres e o cuidado das sepulturas passa das mãos da família a especialistas remunerados (Ibidem, p.37). “Para a possível clientela, a morte se tornou de mau gosto”. (Ibidem, p.39). O afastamento da morte revela o aumento do poder dos vivos (para Foucault: o aumento do poder sobre a vida): “São os vivos que exigem reverência pelos mortos, e têm suas razões”, diz Elias: “Essas incluem seu medo da morte e dos mortos; mas muitas vezes também servem como meio de aumentar o poder dos vivos”. (Ibidem, p.40). 337 Nos Cadernos de Malte Laurids Brigge (Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge), Rainer Maria Rilke narra a morte lenta e dramaticamente pública do camarareiro Christoph Detlev Brigge, para a qual a longa e antiga casa senhorial ficou pequena demais, em oposição às mortes institucionais do Hôtel de Dieu: “Esse excelente Hôtel é muito antigo (...) Hoje, morre-se em quinhentos e cinqüenta e nove leitos. Produção em série, naturalmente. E numa produção dessas não se excetua tão bem a morte individual, mas também isso é coisa que pouco importa. O que interessa é a quantidade. Quem, hoje, dá valor a uma morte bem executada? Até os ricos, que poderiam dar-se o luxo de morrer bem, começam a se mostrar relaxados, indiferentes; faz-se cada vez mais raro o desejo de uma morte particular. Mais um pouco, e será tão raro quanto ter uma vida particular (...) Nos sanatórios, onde se morre tão voluntariamente, com tanta gratidão para com médicos e enfermeiras, morre-se das mortes oferecidas pela instituição”. Cf. RILKE, R. M. Cadernos de Laurids Brigge. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.8.

(sujeitá-lo como objeto de saber e convertê-lo em sujeito da própria verdade, segundo dispositivos e técnicas tais como a sexualidade e a confissão). Penso que haja uma questão moral, enquanto vontade de verdade, no fundo da história (bio) política do homem moderno: como somos governados, por quais saberes, por quais poderes? Nas últimas obras de Foucault, inversamente, o exercício de poder sobre si mesmo, em cujo aprendizado se encontra, nos termos gregos, uma finalidade política (qual seja, o governo dos outros338), se converte no ponto de partida para a

proposta de uma ética na atualidade: como posso governar a mim mesmo para, senão necessariamente dominar, conviver com os outros sob a medida possível, e algumas vezes transgressiva, do uso da liberdade?

A compreensão da biopolítica, e do poder específico dos Estados modernos, depende da gênese de um poder que Foucault chama de pastoral.339 Antes de

criticar o processo de racionalização das sociedades modernas, tal como a escola de Frankfurt, Foucault prefere descrever racionalidades concretas, pela narrativa de histórias, clássicas, modernas ou antigas, no decorrer das quais certos acontecimentos determinam a modificação em regiões da experiência humana: a loucura como doença, a delinqüência como crime, a sexualidade como desejo340 (e

nos últimos trabalhos, a ética como cuidado de si). A história das racionalidades revela como no domínio de uma prática ou de um discurso se produzem verdades e se constitui uma « ciência » (Foucault se concentra na análise das ciências humanas341), por meio da qual, a constituição de um sujeito de um lado e de um

338 Cf. PLATÃO. « Alcibiades ». In: Obras completas. Trad. Maria Araujo, Francisco Yagüe, Luis Gil, Jose Antonio Miguez, Maria Rico, Antonio Rodriguez Huescar e Francisco Samaranch. Madrid: Aguilar, 1990. Cf. interpretação de Foucault sobre Alcibíades: Hermenêutica do sujeito (1982).

339 O desenvolvimento do Estado moderno se explica, de um lado, por uma progressiva centralização jurídica do poder, quando o soberano, pouco a pouco, priva das armas os menos poderosos, e deste modo confisca tanto a justiça, quanto a circulação dos bens (processo que se inicia na Alta Idade Média e amadurece na grande monarquia medieval, em fins do século XII). Cf. FOUCAULT, M. A

verdade e as formas jurídicas, Conferência III.; de outro lado, a proliferação de um poder pastoral,

também contribui para o domínio do Estado moderno e de seu governo sobre os homens. (Cf. FOUCAULT, M. “Omnes et singulatim”. In: Dits et écrits, p.144). Não haveria o Leviatã dos séculos XVII e XVIII sem uma burocracia centralizada, de caráter estatal, e um poder cuja gênese pastoral levará em conta a vida de indivíduos vivos e atravessará, para além do corpus do Estado, a normalização e o cuidado dos corpos humanos no mundo contemporâneo.

340 Se em Kant a filosofia procura impedir que a razão ultrapasse os limites da experiência, com os Estados modernos, sobretudo no século XIX, a filosofia tem feito uma crítica (Kritic) aos abusos de poder por parte da racionalidade política. E embora seja evidente o laço entre a racionalização da sociedade e as arbitrariedades do poder moderno, não basta, diz Foucault, “denunciar a razão em geral. O que é preciso recolocar em questão, é a forma da racionalidade existente”. FOUCAULT, M. “Omnes et singulatim”. In: Dits et écrits, IV, p.161.

341 Pergunta Foucault: « se perguntarmos a uma ciência como a física teórica ou a química orgânica quais as suas relações com as estruturas políticas e econômicas da sociedade, não estaremos colocando um problema muito complicado (...) Se, em contrapartida, tomarmos um saber como a psiquiatria, não será a questão muito mais fácil de ser resolvida porque o perfil epistemológico da psiquiatria é pouco definido, e porque a prática psiquiátrica está ligada a uma série de instituições, de exigências econômicas imediatas e de urgências políticas de regulamentações sociais? ». Foucault

objeto de outro, é elaborada por regras racionalmente precisas e formas institucionais.

Omnes et singulatim é o nome do ensaio no qual Foucault reconstitui a

história de dois modos distintos de governar os outros, duas tecnologias de poder: gregos e hebraicos. O Deus como pastor, o pastor como guia, o povo como rebanho, segundo a tecnologia hebraica, se contrapõem à forma grega de governar, sob o princípio e unidade da lei e da cidade.342 A junção de tais modelos se converte no

mecanismo moderno de poder sobre a vida, entre a lei da cidade e a saúde da espécie, entre sujeitos de direito e indivíduos vivos, ou ainda, entre cidadãos de um Estado e população de um planeta.

Enquanto a cidade pode ser deixada por um cidadão sem que suas leis se rompam, e tal como uma teia de aranha, na metáfora de Sólon, resiste às maiores e menores ofensas,343 as ovelhas não podem se afastar do poder que por elas vela

cuidadosamente em proveito do grupo. O acompanhamento individual sobre cada ovelha no dia-a-dia do grupo, entre os hebreus, se aperfeiçoa ainda mais na prática de governo do cristianismo: o pastor (político) não cuida apenas da vida e da saúde de quem governa, mas das ações e dos pensamentos, do bem ou do mal que são capazes de fazer ao longo de toda uma vida, do nascimento ao juízo final. O conhecimento se dirige mais aplicadamente ao outro, seja com respeito aos seus pecados públicos ou ao que se passa privadamente na alma de cada governado. A apropriação de duas técnicas de cuidado e de conhecimento de si, usadas entre os pitagóricos, estóicos e epicuristas, se desloca para fins de condução moral e política do indivíduo, quais sejam: o exame e a direção de consciência. Contudo, tratava-se menos de um trabalho do eu sobre si mesmo (a ascética do pensamento moral antigo), pela escuta, por exemplo, do conselho de um mestre ou amigo, do que de