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menciona A história da loucura a propósito da psiquiatria e O nascimento da clínica a propósito da

medicina. Cf. FOUCAULT, M. « Verdade e poder ». In: Microfísica do poder, p.1-2.

342 Foucault reflete sobre algumas diferenças fundamentais entre os dois modelos políticos: 1. Na cultura hebraica, o pastor é aquele que exerce seu poder mais sobre o rebanho que sobre a terra (ao rebanho Deus promete uma terra), ao passo que para os gregos os deuses possuíam originariamente a terra e a partir dela se davam as relações entre os homens. 2. Enquanto para os hebreus a existência do rebanho dependia diretamente da existência do pastor, para o agrupamento e a condução, para os gregos a lei é que dava unidade à polis e, portanto, às suas vidas, de tal modo que a divindade e o rei gregos eram responsáveis pela salvação da cidade quando prestes ao perigo, ao passo que entre os hebreus devia se salvar as ovelhas todos os dias, de sua fome e sede, daí a « benevolência constante, individualizada e finalizada” do pastor. (FOUCAULT, M. « Omnes et singulatim », op.cit., p.138). 3. « O exercício de poder entregue ao líder grego era um dever glorioso, que prometia a ‘imortalidade’; a ‘bondade pastoral’, ao contrário, está muito mais próxima da ‘abnegação’. Tudo o que faz o pastor, ele o faz para o bem de seu rebanho ». Ibidem, p.139.

343 Interessante a imagem de teia de aranha que Sólon usa para se pensar a lei: « Sôlon comparou as leis a teias de aranha, que se mantêm intactas quando qualquer objeto leve e flexível cai nelas, enquanto qualquer coisa maior irrompe e vai adiante ». LAÊRTIOS, D. Vida e doutrina de filósofos

uma alma por cujos segredos o pastor, aquele quem dirige a consciência, jamais dorme. Para essas técnicas de exame de si e confissão cristãs, segundo a escuta de um diretor de consciência, o fim (moral) é sempre o mesmo: renúncia do eu, aniquilação de si, em uma palavra, a mortificação na terra para a vida no céu,344

sob a forma (política) da obediência. O que interessa é perceber, com a leitura de

Omnes et singulatim, como duas tradições inicialmente distintas puderam, por uma

astúcia na história do Ocidente, verem-se não mais uma diante da outra, porém uma na outra: as leis e o pastor, os cidadãos e as ovelhas, os gregos e os hebreus, em prol não mais de uma negação do eu, mas de um proveito da vida (zoe) e das formas de vida (bios).

Claro, os jogos políticos em torno da morte, da obediência, da confissão, esses jogos do cristianismo, enfim, deram aos pastores políticos de nosso tempo um ouvido mais à escuta e uma visão cientificamente perscrutadora para o desempenho dos homens na vida social, sem que necessário fosse prometer o além, nem exigir a renúncia do eu ou a negação do corpo. Em contrapartida, deram aos indivíduos mais vontade de falar de si, sob uma sensação mais presentemente contínua, e nem sempre desagradável, da vigilância. O pastor, sob a metáfora de seu sentido político, conduz cada vez mais difusamente seu poder por tão múltiplos “pastores” existir, médicos, psicólogos, psicoterapeutas, para os problemas de toda a espécie e as soluções de todo o gosto, ao passo que as ovelhas falam e se mostram a todo instante deliberadamente, se possível saudáveis e ocupadas, caso contrário, encontram ainda razão no discurso verdadeiro para o que sentem impotentes de realizar e de escolher para si mesmas. “Conseguindo combinar estes dois jogos ⎯ o jogo da cidade e do cidadão e o jogo do pastor e do rebanho ⎯ naquilo que nós chamamos de Estados Modernos, nossas sociedades se revelaram verdadeiramente demoníacas”.345 Se o daimon de Sócrates acompanhava invisivelmente suas

decisões para evitar o mal (ou seja, o prejudicial para si mesmo), o demoníaco da aliança entre a cidade e o pastor antecipa a vigilância antes de apelar para lei e oferece tratamentos para evitar tanto a dor da “alma” quanto a punição sobre o corpo (que no sentido clássico de Beccaria,346 nada mais é do que o efeito de uma

ação prejudicial a todos, antecipada representativamente no Código, pelo princípio do contrato e para fins de segurança). Cada ovelha, ainda no sentido metafórico da

344 Cf. FOUCAULT, M. « Omnes et singulatim », I, op.cit., sobre a origem e o desenvolvimento da analogia entre Deus-pastor e Povo-rebanho.

345 Ibidem, p.147.

346 Cf. BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Condessa. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

racionalidade política, converte-se no pastor que zela por si mesma, enquanto a cidade lhe exige boa disposição dentro dos termos da norma e da lei e, ao mesmo tempo, cada cidadão é o pastor que vigia o rebanho, pela segurança jurídica e biológica da espécie à qual pertence.

A razão de Estado dos séculos XVI e XVII, em contraposição ao modelo político que aproximava a ordem da terra ao reino dos céus, reclama um governo capaz de potencializar a máquina do Estado como um fim em si mesma, não mais sob os princípios antigos da sabedoria (sapientia) e da prudência (prudentia), mas segundo uma técnica de intervenção moral sobre a vida dos indivíduos: a polícia (Politizei). A polícia da idade clássica não é “uma instituição ou um mecanismo funcionando no seio do Estado, mas uma técnica de governo próprio do Estado”.347

De tudo o que a polícia se ocupa, da religião, dos edifícios públicos, da segurança, do comércio, das artes, o que está em questão é a qualidade moral da vida. “É um homem vivo, ativo e produtivo que a polícia vigia”.348 A polícia é uma técnica de

intervenção moral sobre a vida social e, ao mesmo tempo, uma instituição de controle sobre a ética de cada vivente, de cada ser humano. Ainda em nossos dias se utiliza o conceito poder de polícia.349 Seu serviço está na fiscalização do comércio,

da saúde e da propriedade urbana, e na polícia propriamente dita, como parte do poder executivo. O termo polícia (Politizei), no início dos Estados modernos, serviu para uma gama de atividades com base nas quais o governo cuidava da vida de quem vivia, no trabalho, no lazer, nas ocupações de todos os dias. O Estado se torna o novo pastor, mais do que isso, ele multiplica os poderes do pastor. Sua potência depende do quanto bem vivem seus governados, se com higiene,

347 Ibidem, p.153. Em Omnes et singulatim Foucault recorre a autores dos séculos XVI e XVII, tais como Turquet e N. de Lamare , para mostrar como o pensamento político da época contava com a administração da polícia (Politizei) nos âmbitos da justiça, das finanças e do exército. (Cf. Ibidem, Conferência III). “Em suma, a vida é o objeto da polícia: o indispensável, o útil e o supérfluo. É a polícia que permite aos homens sobreviver, viver e fazer algo além disso”. Ibidem, p.157.

348 Ibidem, p.155. Cf. também La technologie politique des individus sobre a função de cuidado individual e de regulamentação social por parte da polícia, retirada de Traité de la police (de Lamare, 1705): « La police veille à tout ce qui touche ao bonheur des hommes » e « La police veille à tout ce qui réglemente la societé » (FOUCAULT, M. « La technologie politique des individus ». In: Dits et écrits, IV, p.823). E, neste mesmo ensaio de Foucault, a referência a outro teórico, J.H. Justi retirada de

Élements de police (1756), a propósito da diferença entre die Politike e die Politizei. Diz Foucault: « Die Politik est foncièrement à ses yeux la tâche négative de l’ État. Elle consiste, pour l’ État, à se battre

contre ses ennemis de l’ intérieur comme de l’ extérieur, usant de la loi contre les premiers, de l’armée contre les seconds. La Polizei, en revanche, a une mission positive, et ses instruments ne sont pas plus les armes que les lois, la défense ou l’ interdiction. Le but de la police est d’ accoître en permanence la production de quelque chose de nouveau, censé consolider la vie civique et la puissance de l’ État. La police gouvernne, non par la loi, mais en intervenant de manière spécifique, permanente et positive dans la conduite des individus ». Ibidem, p.825.

349 Segundo Caio Tácito (O poder de polícia e seus limites), o « poder de polícia é, em suma, o conjunto de atribuições concedidas à Administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público adequado, direitos e liberdades individuais ». Cf. CAIO, T. « O poder de polícia e seus limites ». Apud: WENDT, E. Ensaio sobre o poder de polícia da administração pública frente à intervenção na

segurança, emprego, entre o índice de mortos e vivos, como forças potencialmente produtivas sobre as quais, e em razão das quais, se governa. Como instrumento de uma razão de Estado, a gênese pastoral do poder é o caminho para se compreender de que modo a polícia continua e se modifica nas nossas sociedades.

No século XVIII uma das grandes novidades para as técnicas de poder foi o surgimento da população, como problema econômico e político, mostra Foucault em

A vontade de saber.350 A arkhe da tecnologia moderna de governo se estabelece na

vida de cada um como objeto de preocupação de todos. “O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”.351 Se o bios politikos de Aristóteles se constituía

pelo exercício de duas atividades, a ação (praxis) e o discurso (lexis), a política do homem moderno se sustenta por um discurso e uma prática que valorizam, sobretudo, o labor e a produção dos indivíduos em uma sociedade.

Associar a multiplicidade de homens, no ápice da explosão demográfica, ao crescimento dos aparelhos de produção, é uma das primeiras tarefas da biopolítica.352 A racionalidade de tal poder se apóia, basicamente, em dois pólos:

nas disciplinas do corpo e no controle regulador da população.353 Corpo enquanto

máquina e corpo enquanto espécie, objetos de um mesmo poder sobre a vida, que

350 “Os governos percebem que não têm que lidar simplesmente com ‘sujeitos’, nem mesmo com um ‘povo’, porém com uma ‘população’, com seus fenômenos específicos e suas variáveis próprias: natalidade, morbidade, esperança de vida, fecundidade, estado de saúde, incidência das doenças, forma de alimentação e de habitat”. FOUCAULT, M. A Vontade de saber, p.28.

351 Ibidem, p.134.

352 Ibidem, p.131-132. Em Vigiar e punir, Foucault observa que o desenvolvimento das disciplinas sobre o corpo dependeu da correlação do homem ao capital, quando se deu a explosão demográfica do século XVIII paralelamente ao crescimento do aparelho de produção. FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p.192. A formação de uma sociedade industrializada, de um capital não mais monetário apenas, nem constituído maioritariamente por terras, porém por estoques, máquinas, mercadorias, incentivou a apropriação das técnicas de controle populacional por parte das classes mais altas. No século XVIII, diz Foucault em A verdade e as formas jurídicas, “o grande problema do poder na Inglaterra é o de instaurar mecanismos de controle que permitam a proteção dessa nova forma material da fortuna”. (Ibidem, p.101). A Polícia, como instituição de segurança, foi criada na Inglaterra por Colquhoun: “era alguém que a princípio foi comerciante, sendo depois encarregado por uma companhia de navegação de organizar um sistema para vigiar as mercadorias armazenadas nas docas de Londres” (Ibidem). Foi preciso um novo programa de organização dos espaços, preparação dos corpos, controle do tempo, para ajustar gente e capital, por parte sobretudo daquelas instituições não propriamente estatais, de cujas práticas nasceram os mais diversos domínios de saber e poder sobre o corpo. O capital não se desenvolveria sem a inclusão de uma multidão de indivíduos em aparelhos específicos, sob um cuidado permanente do que fazem, do que estão prestes a fazer, de como fazem, de por que fazem. E este controle não se tornaria mais minucioso se as exigências do capital, e o fato de ele ter se tornado mais complexo, não fosse algo historicamente realizado.

353 FOUCAULT, M. A vontade de saber, p.131. A primeira forma, à qual Foucault se dedica em Vigiar e

punir, é desenvolvida a partir do século XVII, por via do adestramento dos corpos, da extorsão de suas

forças, da vigilância intensiva, no exército, na escola, nas fábricas, nos hospitais e nas prisões, nas instituições num primeiro momento, sem a elas historicamente se reduzir. O segundo pólo do biopoder investiu na população enquanto um órgão da espécie, um órgão vivo e complexo, com suas taxas de nascimento e mortalidade, longevidade, nível de saúde, com o apoio de saberes como a Estatística.

adestra, regula, distribui funções, normaliza as forças e incentiva a produção (de saberes, desejos, doenças, curas, capital). A articulação dos dois corpos, o disciplinar e o biológico, não é feita especulativamente, « mas na forma de agenciamentos concretos que constituirão a grande tecnologia do poder no século XIX: o dispositivo da sexualidade será um deles, e dos mais importantes ».354 Ao

contrário de se supor uma moral ascética para desqualificação do corpo na emergência do capitalismo, a vida, os fenômenos da vida, se integra cada vez mais, desde o século XVIII, ao campo de técnicas políticas. O controle dos nascimentos, óbitos, epidemias, as medidas sanitárias, são aperfeiçoados na administração do Estado e, socialmente, produzem sistemas de seguridade e de previdência, contra a possibilidade natural da morte e sob a garantia política de mais vida: « Pela primeira vez na história », diz Foucault, « biológico reflete-se no político ».355

Na racionalidade do poder régio, em razão do qual todo o sistema jurídico moderno foi construído, ora para justificar seu poder, ora para limitá-lo356 segundo

o modelo da soberania, o poder se exercia muito mais sobre a morte que sobre a vida, conforme sua gênese no patria potestas romano,357 embora tal instituto,

penso, tenha sido historicamente deslocado da esfera privada ao domínio público. O Estado moderno resguarda tal privilégio de poder, porém menos incondicionalmente, pois se no ritual do suplício o rei matava seu súdito como réplica imediata à infração cometida,358 em Hobbes, é a eventualidade da guerra

que permite ao soberano dispor “indiretamente” da vida e da morte de seu súdito.359

O

poder soberano, em todo caso, se funda no direito de causar a morte ou deixar viver,360 ao passo que a racionalidade do poder moderno, por sua gênese pastoral,

corresponde a utilidade do corpo à saúde da população, de tal modo que encontra na vida dos indivíduos o princípio de seu investimento e a finalidade de suas estratégias. Não mais o confisco do corpo, mas a maximização de suas forças. Não mais o apelo à morte, mas as exigências da vida, inclusive o que lhe é supérfluo. A própria guerra se justifica menos pela conservação jurídica do soberano (do Estado)

354 Ibidem, p.132. 355 Ibidem, p.134.

356 Cf. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. « Aula de 14 de janeiro de 1976 ». Trad. Maria Eramntina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

357 Foucault lembra que este poder é derivado do patria potestas romano, com base no qual o pai podia ‘dispor’ da vida de seus filhos e escravos, já que as tinha ‘dado’. Cf. FOUCAULT, M. A vontade de

saber, p.127.

358 Cf. FOUCAULT, M. Vigiar e punir, capítulo sobre o suplício.

359 Diz Hobbes: “quando a defesa do Estado exige o concurso simultâneo de todos os que são capazes de pegar em armas, todos têm essa obrigação, porque de outro modo teria sido em vão a instituição do Estado, ao qual não têm o propósito ou a coragem de defender”. HOBBES, T. “Leviatã”. In: Os

pensadores. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p.134. 360 FOUCAULT, M. A vontade de saber, p.130.

do que pela sobrevivência biológica das populações.361 Trata-se de fazer viver e

deixar morrer, diz Foucault, não o inverso. No lugar de se voltar aos sujeitos de direito, o poder se ocupa dos sujeitos de vida.362 Com o passar dos tempos, mais o

Estado se afasta do príncipe, mais a sociedade se aproxima da polícia. Não é à toa que a lei, fundada por excelência na morte, esteja se tornando cada vez menos lei e mais norma. Norma que ordena, classifica, distribui, corrige e, sobretudo, valora a vida e o modo de se vivê-la. Norma que não pune a todos, pois trata de alguns e controla a maioria (mesmo no caso da punição, a norma serve de apoio à sentença judicial: o comportamento de Meurseault, narrador de O estrangeiro de Albert Camus, é observado no júri pelo fato de não ter chorado no velório e no enterro de sua mãe, fato que contribui para a sua condenação). Norma, mais uma vez, para a qual a lei é apenas o instrumento de sua eficácia e pela qual se rege a pontualidade nas empresas, a reforma moral do delinqüente, a premiação do funcionário mais produtivo do mês, de acordo com o programa ao qual se está submetido. Embora no latim norma queira dizer esquadro e normalis perpendicular, como diz Ganguilhem,363 no século XIX, ensina François Ewald, norma « já não será um

outro nome para regras, antes vai designar ao mesmo tempo um certo tipo de regras, uma maneira de as produzir e, sobretudo, um princípio de valoração (...) a sua referência já não é o esquadro, mas a média; a norma toma agora o seu valor de jogo das oposições entre o normal e o anormal ou entre o normal e o patológico ».364 A lei não desaparece, diz Foucault, nem as instituições de justiça,

mas ela passa a funcionar mais como norma, ao passo que o direito “se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos, etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras”.365 Se o fundamento dos códigos estava no

corpo do rei, de modo que morria quem o lesionasse, agora é a saúde da espécie que a lei protege, por via da norma. “Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida”.366 E a norma se sustenta

na difusão do discurso verdadeiro sobre as ações e os pensamentos, sobre o que se é e quem é o outro.

361 “As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver”. Ibidem, p.129.

362 O poder, diz Foucault, “não estará mais somente a voltas com sujeitos de direito sobre os quais seu último acesso é a morte, porém com seres vivos, e o império que poderá exercer sobre eles deverá situar-se no nível da própria vida”. Ibidem, p.134.

363 GANGUILHEM, G. Le normal et le pathologique. Paris: PUF, 1966, p.177.

364 EWALD, F. Foucault. A norma e o direito. Lisboa: Comunicação e Linguagem, 1993, p.79. 365 FOUCAULT, M. A vontade de saber, p.135.

O homem moderno se vê entre a cidadania que lhe garante o direito e a norma que lhe exige a vida ⎯ o tempo, a capacidade, o desempenho, a produtividade, a iniciativa ⎯ para lhe devolver vida: um bom emprego, um hobby, um corpo perfeito, uma prole saudável. Enquanto sujeitos de direito somos também sujeitos de vida (e a ‘vida’ se aproveitou destes novos poderes para reivindicar seus ‘direitos’367). Somos sujeitos de um corpo e sujeitos de uma espécie, mais do que

sujeitos de uma lei ou de um sistema jurídico. Em termos simbólicos, o rei dá lugar aos pastores e o indivíduo está mais próximo do rebanho que da cidade (isso não significa que a lei não gerencie nossa vida, nem que não possamos pela lei garantir certo modo de viver em certa comunidade, antes, quer dizer que para boa parte de nossos problemas a norma oferece soluções, de remédios para a tristeza a conselhos vocacionais, cuja possibilidade é mais real e imediata que possíveis decisões judiciais ou legislações do Senado em favor do indivíduo). O fato de estarmos vivos faz o presente ser o tempo no qual estamos. E o presente faz de nossa vida o fim último do bom funcionamento de tudo, a realidade material de sua ficção. Ficção que é, ao mesmo tempo, o que somos enquanto pensamos e agimos, a pluralidade de todos os pensamentos e a casualidade de todas as ações na vida em comum, que desde antes de nós existirmos já se trazia na linguagem, nos discursos, nas práticas, mas que continua e se modifica porque não deixamos de existir.

Como a possibilidade da vida humana é histórica, ou seja, seu sentido se dá no encontro com outros no tempo em comum de diferentes sentidos, o biopoder extrai não apenas o que há de biológico em termos de forças e aptidões para a