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didáticos de língua portuguesa

No documento Linguística Cognitiva (páginas 193-200)

Ao estudar a natureza polissêmica de dar, tomar, pegar e foder, em obras literá- rias e não literárias, em variados períodos da língua portuguesa, considerando as modalidades oral e escrita, busquei averiguar se fatores sociais, linguísticos, his- tóricos e cognitivos interferiam na conceptualização dos sentidos encontrados, em cada sincronia examinada, e se propiciavam alterações no comportamento

10 nesses casos, o domínio-alvo herda os esquemas básicos e propriedades semânticas

semântico dos verbos estudados. Os resultados foram diversos, mas comprovaram algo em comum: se, por um lado, os predicadores verbais citados refletem atos básicos da experiência humana, porque indicam deslocamento espaço-temporal, emprego de força, contato físico, transferência de posse material e controle; por outro lado, são semanticamente complexos e, por conseguinte, bastante polissê- micos, uma vez que a saliência conceptual dos atos físicos que expressam serve de base experiencial para inúmeras projeções, em diferentes domínios da experiência humana.

Assim, de modo mais ou menos semelhante ao que foi feito nos estudos refe- ridos, são objetivos nossos identificar o que está na base das variações dos sentidos encontrados em um corpus de língua escrita, constituído por Manuais de Professores que constam do encarte dos livros didáticos das coleções Singular e Plural, da Editora Moderna (2012); Mundo da Língua Portuguesa, da Editora Positivo (2012); Textos e Linguagens, da Editora Escala Educacional (2012), e Português: a arte da palavra, da Editora AJS (2012), destinadas às séries finais do segundo segmento do Ensino Fundamental, as quais, doravante, serão denominadas C1, C2, C3 e C4.

Origem e acepções de leitura nos dicionários de língua portuguesa

Leitura vem do latim, lectura, que deriva do verbo legere, equivalente a ler em português. Tal como a maior parte dos predicadores verbais de origem latina, ler possui um significado proveniente da agricultura. O verbo legere tinha os sentidos de "colher", "escolher", "recolher", em latim. (CUNHA, 1986) Ao passar para o português, esses usos especializaram-se e ler passou a significar "obter infor- mações através da percepção de letras e palavras", sem perder, contudo, algumas nuances do seu sentido experiencialmente básico, já que esse ato também está atrelado à capacidade de escolher, selecionar, não mais grãos, frutos ou cachos, mas sinais gráficos, para deles extrair sentido, conhecimento. Há, inclusive uma expressão latina, legere oculis, que significa "colher com os olhos". Portanto, o verbo ler e o substantivo dele derivado, leitura, na língua portuguesa, são prove- nientes de uma experiência físico-espaço-sociocultural que, como vemos, se abs- tratizou no contexto educacional.

Todavia, por ser leitura, de modo geral, definida como um ato intelectual de seleção e combinação de grafemas para extrair significados, o que pressupõe uma iniciação, um preparo, acessível a poucos, a contar pelos números elevados

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de analfabetos funcionais, ainda hoje, no Brasil e em outras nações em desenvolvi- mento socioeconômico, é comum tanto educadores quanto autores de livros didá- ticos e, até mesmo, teóricos da Educação, que discutem esse tema e suas especifici- dades taxionômicas, recorrerem a experiências físico-espaciais para explicarem-na, com vistas a estabelecer uma aproximação entre o conhecimento linguístico-textual e o conhecimento de mundo do estudante-leitor-sujeito interpretante.

Nas obras lexicográficas da língua portuguesa consultadas para este estudo, aparecem uma média de oito sentidos para o vocábulo leitura (ainda que muitos possam ser excluídos por representarem repetições e outros sequer sejam regis- trados), o que evidencia a sua irrefutável natureza polissêmica. No Dicionário Online de Português Houaiss, por exemplo, estão registradas nove acepções, assim como no Michaellis Online. Já o Aulete Digital, diferentemente dessas obras, incluem os chamados sentidos "figurados", isto é, as extensões metafóricas.11

11 1. Ação ou resultado de ler. 2. Hábito de ler. 3. Aquilo que se lê; OBRA; tEXtO: Essa

revista, uma leitura leve, me distrai. 4. modo de interpretar, forma como se vê ou com-

preende uma obra ou uma situação; intERpREtAçãO: "[...] uma personagem de vida confusa o suficiente para suportar duas leituras, uma cômica e outra trágica [...]" (O

Estado de S. Paulo, 27 maio 2005) 5. Obras lidas: Tornou-se mais crítico com tanta leitura.

6. Fís. Registro das informações dadas por um instrumento de medida. 7. tec. processo de reconhecimento, decodificação e reprodução, por meio de dispositivo apropriado, de som, imagem ou dados armazenados num suporte.8. Rel. texto, ger. extraído da Bíblia, lido ou cantado por uma só pessoa. 9. matéria de ensino elementar. [F.: Do lat. med. lectura.].

Leitura à primeira vista

1 mús. Execução de trecho musical ao se ler a partitura pela primeira vez, sem estudo prévio.

Leitura da fala 1 Ver Leitura labial. Leitura dinâmica

1 método de leitura que, por meio de várias técnicas, visa a uma apreensão mais rápida e eficiente dos significados do texto, utilizando não a varredura visual linear das pala- vras, palavra por palavra, com saltos nas mudanças de linha, mas por captação de blocos, ou pela ampliação do ângulo de visão do texto etc; leitura fotográfica; leitura rápida. Leitura dramática

1 teat. Leitura do texto de uma peça diante do público, com todas as inflexões vocais e descrições necessárias, mas sem ação cênica no palco.

Leitura fotográfica 1 Ver Leitura dinâmica. Leitura labial

1 percepção que tem um surdo da fala de alguém pela interpretação dos movimentos de seus lábios, da mandíbula e dos músculos faciais; leitura da fala.

Sobressaem-se, em todos os dicionários consultados, acepções relativas à ação de ler, adotada no contexto educacional, escolar, ou seja, a leitura como decodificação, com vistas à interpretação do que está escrito. Por se tratar de um substantivo que deriva de um verbo epistêmico, uma vez que esse ato pres- supõe uma atividade mental, cognitiva, considero leitura, também, um evento cognitivo, pois tanto indica uma atividade físico-espacial sensório-motora, já que pressupõe o contato dos olhos com o código alfabético, como também pressupõe compreensão e aquisição de conhecimentos, a partir do que é visto e lido, de modo que engloba, desde o reconhecimento das letras até as conceptualizações decorrentes. Afinal, conforme preconiza Kleiman (2000, p. 26-27, grifo nosso), pesquisadora das áreas de leitura, letramento e interação em sala de aula, "o mero passar de olhos pela linha não é leitura, pois leitura implica uma atividade de procura por parte do leitor, no seu passado, de lembranças e conhecimentos, [...]".

Conceptualizações de leitura no corpus: projeções metafóricas geradoras de polissemia

Nas coleções de livros didáticos consultadas, as projeções metafóricas que estão na base da significação de leitura se concentram nas atividades relativas ao estudo da coletânea de textos e nas orientações que constam do Manual do professor das cole- ções C1 (FIGUEIREDO; BALTHASAR; GOULART, 2012); C2 (FINKLER, 2012); C3 (SIMÕES, 2012); e C4 (RODELLA; NIGRO; CAMPOS, 2012).

A recorrência de metáforas ontológicas, orientacionais e estruturais refe- rentes à leitura identificadas nesses materiais escolares e a sua motivação devem-se, possivelmente, à similaridade entre alguns conceitos e, por conseguinte, à utili- zação de conhecimentos baseados na experiência cotidiana de educandos e edu- cadores, como uma estratégia didática, para facilitar a compreensão de conteúdos mais complexos. Essa concepção parece estar clara e bem delimitada no Manual do professor da coleção C4, quando seus autores destacam, no tópico intitulado Leitura, o seguinte:

1.1 Acervo de documentos portugueses, copiados em letra caligráfica cursiva por ordem de D. manuel i.2 P. ext. cópia do texto de documento em letra vigente na época da cópia.

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como lembra Alberto manguel em seu livro Uma história da leitura, o sentido da leitura não é restrito às letras impressas numa página de papel: os astró- logos leem as estrelas para prever o futuro; o músico lê a partitura para tocar seu instrumento; o médico lê a doença em seu paciente; a mãe lê a necessi- dade no rosto de seu filho; o agricultor lê o céu para saber como cuidar de sua cultura. Enfim, todas essas maneiras de leitura estão associadas à possibi- lidade de decifrar e traduzir signos. (RODELLA; nigRO; cAmpOS, 2012, p. 10, grifo nosso)

Vários teóricos, estudiosos do assunto, ao discorrerem sobre essa temática, fazem também uso de metáforas. Em Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura, por exemplo, Kleiman (2000, p. 19) as emprega, para explicar os conceitos de texto e de leitura:

Os textos também podem ser classificados levando-se em consideração o caráter de interação entre autor e leitor, pois o autor se propõe a fazer algo e, quando essa intenção está materialmente presente no texto, através das marcas formais, o leitor se dispõe a escutar, momentaneamente o autor, para depois aceitar, julgar, rejeitar [...].

Projeções metafóricas são, também, ativadas em O texto na sala de aula, quando João Wanderley Geraldi (1999, p. 107, grifo nosso) ressalta que "[...] a leitura é entendida como um processo de interlocução entre leitor/texto/autor", e é retomada no livro O que é leitura, quando Martins (2012, p. 33, grifo da autora), por sua parte, afirma:

A leitura se realiza a partir do diálogo do leitor com o objeto lido – seja escrito, sonoro, seja um gesto, uma imagem, um acontecimento. Esse diálogo é refe- renciado por um tempo e um espaço, uma situação; desenvolvido de acordo com os desafios e as respostas que o objeto apresenta, em função de expec- tativas e necessidades, do prazer das descobertas e do reconhecimento de vivências do leitor.

Para dar continuidade ao que vimos até aqui, destacarei, a seguir, as metá- foras linguísticas e conceptuais identificadas no corpus, os quais atestam as dife- rentes conceptualizações do conceito de leitura nas coleções de livros didáticos

consultados, bem como farei considerações analíticas embasadas no instru- mental teórico-metodológico esboçado nas seções anteriores.

LEITURA É CONSTRUÇÃO

Nos trechos extraídos das coleções C1 e C2 transcritos, a seguir, ao fazerem menção às capacidades de compreensão do estudante ante a leitura de um texto, as autoras recorrem a um mapeamento metafórico, tal como descrevem Lakoff e Johnson (2002), entre um domínio-fonte, CONSTRUÇÃO, e um domínio alvo, LEITURA, conforme podemos visualizar:

[...] as atividades de leitura também têm como objetivo desenvolver as capaci- dades e os procedimentos de leitura necessários para formação de um leitor proficiente, ou seja, capaz de construir sentidos para os textos lidos e de se colocar criticamente diante deles. (FigUEiREDO; BALtHASAR; gOULARt, 2012, p. 10, grifo nosso)

A construção inicial dos sentidos do texto se baseará, então, na confirmação ou não das hipóteses levantadas. (FigUEiREDO; BALtHASAR; gOULARt, 2012, p. 10)

[...] para tanto, o  leitor, além de se valer de seus conhecimentos prévios e específicos desses recursos, vale-se também de suas vivências anteriores como leitor para (re)construir os sentidos do texto. (FinKLER, 2012, p. 14)

É possível notar que essas projeções decorrem de associações entre um domínio mais familiar e um outro menos familiar para o falante, com vistas à compreensão de uma experiência (a leitura), em termos de outra, possivelmente, mais conhecida, vivenciada (a construção). Nos exemplos dados, os mapeamentos entre os dois domínios mencionados evidenciam as seguintes correspondências ontológicas: a leitura é uma construção; o estudante-leitor é um construtor; os conhecimentos prévios são as experiências materiais do construtor; o texto é uma casa construída ou em construção; a confirmação das hipóteses levantadas sobre o texto e as vivências do leitor são os alicerces da construção; os sentidos da leitura de um texto são paredes ou colunas de sustentação.

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A noção de texto como construção é atestada, também, no livro intitu- lado O texto e a construção de sentidos, no qual Koch (1998, p. 48), ao retomar as palavras de Kristeva (1974, p. 60), afirma: "qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a absorção e transformação de um outro texto".

Presumo que a metáfora LEITURA É CONSTRUÇÃO, nos livros didáticos e teóricos consultados, tem uma motivação sócio-histórica, visto que, desde a pré-história, o ser humano buscou construir coisas, espaços, caminhos, desenvolvendo, assim, habilidades físicas e cognitivas. Inicialmente, utilizou madeiras, lascas de pedras e ossos; depois, metal e fogo, a fim de criar objetos e desenvolver atividades laborais, como a construção das primeiras aldeias neolí- ticas.12 Creio, porém, que foi dos latinos que herdamos a aptidão e o talento para construir. Além de abrirem estradas que ligavam o vasto império, os romanos construíram vilas, aquedutos, que levavam água para as casas e para as termas nas cidades, assim como edificaram suntuosos templos, grandiosos monumentos e um complexo e avançado sistema de esgotamento sanitário. De lá para cá, aper- feiçoamos esses conhecimentos, ampliamos e aprimoramos nossas construções, modernizamos nossos instrumentos de trabalho e criamos mecanismos tecno- lógicos para serem empregados em diferentes âmbitos e escalas. Construir, por- tanto, é um conceito historicamente experiencial para nós, latino-americanos, e, por exigir empenho, esforço, participação, interação, disciplina, concentração, objetivos e trazer, em contrapartida, bons resultados, serve de base conceptual, ao que tudo indica, para o entendimento de leitura dentro e fora da escola, o que é atestado, não só pelos Manuais do professor consultados, mas pelos teóricos que discorrem sobre essa temática, como já vimos até aqui.

LEITURA É ALIMENTO/ALIMENTAÇÃO

A alimentação é um dos domínios mais básicos da experiência humana. Desde o ventre da mãe, a criança já se alimenta, por meio do cordão umbilical. Depois do seu nascimento, passa a sugar o leite materno, até que tenha dentes e possa mastigar outros tipos de alimentos. Isso, porém, não é exclusividade dos humanos. Todos os seres animados e vegetais, para manterem-se vivos, precisam

de se alimentar. Na natureza, a alimentação é indispensável para a sobrevivência de qualquer espécie.

Nos fragmentos de textos transcritos a seguir, é possível notar que o ato de ler é comparado ao ato de alimentar-se. Essa associação, provavelmente, se deve à grande importância que tem a leitura na nossa sociedade e as similaridades entre essa atividade e a experiência básica de comer. As autoras da coleção C1, pre- sumivelmente, para atraírem a atenção dos estudantes adolescentes do segundo segmento do Ensino Fundamental e tornarem o uso da coleção de língua por- tuguesa atraente para esse público-alvo, apresentam os conteúdos dos seus livros no sumário e no Manual do professor como se fossem um cardápio de restaurante, no qual os clientes (estudantes) vão ter acesso a vários pratos (diferentes gêneros textuais) para escolher e consumir.

No item "Capacidades/procedimentos de leitura e atividades para desen- volvê-las", na coleção C1, encontra-se a seguinte afirmação:

Além de servir de alimentação temática e contextualização ou oferecer um modelo do gênero a ser produzido, as atividades de leitura têm como objetivo desenvolver as capacidades e os procedimentos de leitura necessários para formação de um leitor proficiente, [...]. (FigUEiREDO; BALtHASAR; gOULARt, 2012, p. 10, grifo nosso)

Nessa passagem do Manual do professor da coleção C1, percebemos que o mapeamento entre os domínios-fonte (ALIMENTO) e alvo (LEITURA) pode ser sintetizado pelas correspondências ontológicas descritas a seguir: "ler, na escola, é alimentar-se em um restaurante"; "o professor é o garçom"; "o estudante é o cliente"; "o livro com a oferta de textos de gêneros variados é o cardápio com seus diferentes pratos"; "leitura é ingestão de comida"; "texto, conhecimento são ali- mentos; a leitura, a aquisição de conhecimentos e a produção de outros textos na escola são o pagamento do serviço oferecido pelo restaurante"; "o gosto pela lei- tura é a satisfação com a comida"; "o desenvolvimento de capacidades de leitura e produção de textos são os nutrientes adquiridos ao proceder à alimentação"; "ler é necessário para nos mantermos vivos".

No documento Linguística Cognitiva (páginas 193-200)