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Palavras iniciais

No documento Linguística Cognitiva (páginas 183-187)

Não é raro ouvir dizer que "a cigana leu o destino de alguém", que a "leitura do filme foi boa", que é preciso "fazer a leitura de um gesto, de uma situação". Também, é comum afirmar, na área da Educação, que "a leitura da palavra deve ser precedida pela leitura do mundo", conforme preconizou o educador bra- sileiro Paulo Freire (1989), cuja obra está permeada de metá- foras sobre alfabetização, letramento, leitura, pedagogia.1

1 Sardinha (2007), em estudo feito sobre metáforas na escola,

mostra como conceitos peculiares dessa área são metafóricos. Esses e os outros usos, às vezes, estão tão presentes na vida cotidiana, que não nos damos conta de que, subjacentes a essas construções linguísticas, há pensamentos metafóricos que refletem a forma como as pessoas concebem não só o ato de ler, mas o estar no mundo, a forma de interagir com os outros e com os objetos à sua volta. Entre alguns exemplos que ilustram as concepções combatidas pela pedagogia freireana, podemos citar: educação bancária e, por conseguinte, escola como banco,

No livro do mesmo autor intitulado A importância do ato de ler, por exemplo, é possível identificar muitas passagens em que aparecem conceptualizações de lei- tura que exemplificam o seu uso metafórico:

[...] a 'leitura' do meu mundo, que me foi sempre fundamental, não fez de mim um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas. A curio- sidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais. E foi com eles, preci- samente, em certo momento dessa rica experiência de compreensão do meu mundo imediato, sem que tal compreensão tivesse significado malquerenças ao que ele tinha de encantadoramente misterioso, que eu comecei a ser intro- duzido na leitura da palavra. A decifração da palavra fluía naturalmente da 'lei-

tura' do mundo particular. não era algo que se estivesse dando superposta-

mente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz. com ela, a leitura da palavra, da frase, da sentença, jamais significou uma ruptura com a 'lei-

tura' do mundo. com ela, a leitura da palavra foi a leitura da 'palavramundo'.

(FREiRE, 1989, grifo nosso)

Como podemos perceber, a palavra leitura apresenta, nos trechos trans- critos, valores semânticos distintos. Tanto encontramos o sentido de "conhecer e juntar as letras de uma palavra", como encontramos o sentido metafórico de "compreender o que está além das palavras". Nesse último caso, as expressões metafóricas "leitura do mundo" e "leitura do real" trazem subjacente à metá- fora conceptual que norteou o modelo pedagógico freireano: LEITURA É EXPERIÊNCIA FÍSICO-SENSORIAL.2

Para Martins (2012, p. 17, grifo nosso), os primeiros passos para aprender a ler são dados assim que começamos a compreender e a dar sentido ao que e a quem nos cerca:

Quando começamos a organizar os conhecimentos adquiridos, a partir das situações que a realidade impõe e da nossa atuação nela; quando começamos

professor como depositante, aluno como recipiente, conhecimento como bem doado, depositado.

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CONCEPTUALIZAÇÕES DE LEITURA: APORTES DA LINGUÍSTICA COGNITIVA PARA COMPREENSÃO DO SIGNIFICADO |

a estabelecer relações entre as experiências e a tentar resolver os problemas que se nos apresentam – aí então estamos procedendo leituras, as quais nos habilitam basicamente a ler tudo e qualquer coisa.

Ainda que não fique explícito o modelo teórico adotado, na referida citação, o posicionamento assumido pela autora corrobora a relação entre os sentidos que podem ser acionados pelo ato de ler e as experiências cotidianas do sujeito leitor. Retomando, ainda, as suas palavras, a leitura, "vai além do texto e começa antes do contato com ele" (MARTINS, 2012, p. 33); ler, nessa perspectiva, é, portanto e antes de tudo, "produzir sentido" ou, mais especificamente, "sentir".

Assim, partindo do pressuposto de que o item lexical leitura apresenta uma evidente complexidade semântica, ilustrada pelos diferentes conceitos que pode apresentar, é propósito deste artigo investigar as conceptualizações dessa palavra, em contextos de uso previamente selecionados, à luz dos pressupostos teórico- -metodológicos da Linguística Cognitiva.

É preciso deixar claro, porém, que não é nosso intuito promover discus- sões nem teorizações sobre o que é leitura e suas especificidades, segundo as abor- dagens preconizadas pelos teóricos da Pedagogia, da Educação, da Linguística Aplicada ou da Linguística Textual. Muito embora sejam feitas referências às con- tribuições de especialistas dessas áreas, almejo mostrar que, ao contrário da obje- tividade que, supostamente, poderia ser atribuída a textos do gênero instrucional, as orientações sobre o trabalho com leitura constantes de alguns Manuais do pro- fessor, que integram coleções de livros didáticos de língua portuguesa do Ensino Fundamental, apresentam conceitos metafóricos relativos à leitura, que ratificam a afirmação de Lakoff e Johnson (2002) de que grande parte das ações cotidianas e pensamentos humanos são embasados por metáforas conceptuais.3 No entanto, isso sequer é mencionado nesses livros, quando os seus autores e autoras discorrem sobre metáfora.

Como se trata de uma pesquisa qualitativa, de caráter descritivo-interpre- tativo e sincrônico, foi constituído um corpus de língua escrita, com publicações

3 É objetivo deste trabalho, também, dar continuidade às pesquisas realizadas no

Doutorado e no grupo de Estudos em Semântica cognitiva (gEScOg/pROHpOR – UFBA/UnEB), bem como ampliar os projetos que vêm sendo desenvolvidos no âmbito institucional e da iniciação científica, articulando-os à linha de Linguagens, Discurso e Sociedade e ao núcleo de Estudos do Léxico (nEL), ambos vinculados ao programa de pós-graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia (UnEB).

de livros do ano de 2012. Para proceder à interpretação dos contextos de uso, foi utilizado o método de introspecção, que se apoia naquilo que o pesquisador pensa sobre os significados encontrados, o que pressupõe uma análise, até certo ponto, intuitiva das ocorrências identificadas, alicerçada, porém, ao contexto sócio-histórico-cultural e pedagógico em que os textos foram produzidos e nos fundamentos teóricos em que o estudo se baseia. A adoção desse modelo baseado no uso e aliado à análise introspectiva encontra respaldo em alguns princípios da própria Linguística Cognitiva, que segue a orientação hermenêutica para os estudos semânticos, uma vez que adota um enfoque interpretativo e, por conse- guinte, inter/multi/trans/disciplinar no exame dos dados.

Para respaldar teoricamente o trabalho, foram levados em conta estudos de diferentes autores cognitivistas, a exemplo de Augusto Soares da Silva (1999, 2006), entre outros estudiosos que interpretam a polissemia como um fenômeno

de conceptualização, com o intuito de mostrar como "corporizamos" as culturas por meio dos significados atribuídos às palavras e às coisas que nos cercam. Para discorrer sobre as extensões de sentido do substantivo leitura, busquei mostrar como as metáforas conceptuais embasam os conceitos que conhecemos e como esse fenômeno está presente no nosso cotidiano (na fala, na escrita, no pensamento e nas ações), considerando os pressupostos da Teoria da Metáfora Conceptual (TMC), de Lakoff e Johnson (2002), e intercalando, simultaneamente, afirma- ções de alguns estudiosos acerca de conhecimentos e experiências humanas refe- rentes às concepções de leitura.

Visando a uma melhor compreensão do conteúdo abordado, dividi o artigo em duas seções que se somam às "Palavras Iniciais" e às "Considerações Finais". Na primeira seção, apresento uma breve revisão sobre o contexto de surgimento da Linguística Cognitiva, sobre o estudo do significado, segundo essa perspectiva, e sobre a polissemia. Já na segunda seção, teço alguns comentários sobre os usos da palavra leitura identificados no corpus, com o intuito de compreender e, ao mesmo tempo, mostrar como a linguagem se interconecta com a cognição e com o corpo humano nos espaços socioculturais. Para tanto, procuro analisar os meca- nismos cognitivos que propiciam a multiplicidade de sentidos desse item lexical, recorrendo, particularmente, às noções de conceptualização, bem como de metá- fora conceptual.

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CONCEPTUALIZAÇÕES DE LEITURA: APORTES DA LINGUÍSTICA COGNITIVA PARA COMPREENSÃO DO SIGNIFICADO |

O contexto de surgimento da Linguística Cognitiva

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