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Diferença e temporalidade na imanência: o encontro de Bergson e Nietzsche

2. Imanência, Diferença e Ontologia: uma incursão inicial pela filosofia da diferença de

2.4. Diferença e temporalidade na imanência: o encontro de Bergson e Nietzsche

Outro autor a que Deleuze recorre na construção do seu projeto ontológico é Henri Bergson. Ele possui um interesse específico e permeia toda a sua abordagem da filosofia bergsoniana: uma compreensão positiva do ser, da realidade, ancorada no tempo. Michael Hardt nos lembra que, embora Bergson seja tradicionalmente concebido como um autor que veio a fornecer uma teoria da percepção, Deleuze encontrará nele especificamente

uma ontologia115. Em sua abordagem de Espinosa, Deleuze novamente submete a obra

do autor às preocupações de seu projeto filosófico particular.

Observemos que, no tocante ao conceito de imanência, o conceito de expressão evita a hipótese de uma substância indiferenciada. A expressão ocorre no tempo, logo

113 Cf. DELEUZE, Gilles. Expressionism in Philosophy: Spinoza. New York: Zone Books, 1990, p. 176 e

ss.

114 Ver, por exemplo, a relação entre oposição e diferenciação através das noções comuns em Espinosa, Cf.

Cf. DELEUZE, Gilles. Spinoza: Practical Philosophy. San Francisco: City Lights Books, 1988, p. 55; Uma análise do conceito de dobra, como operamos aqui, pode ser encontrada também a partir do estudo sobre Foucault, sobretudo na ideia do duplo como reduplicação do Outro, ou mesmo como interiorização do exterior, que Deleuze observa na reflexão foucaultiana, Cf. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2005, p. 105 e ss. Discussão detalhada do conceito já havia sido realizada a partir da filosofia de Leibniz e o barroco. Para uma relação entre a dobra e o interior/exterior, Cf. DELEUZE, Gilles. The Fold - Leibniz and the Baroque. London: The Athlone Press, 1993, p. 28 e ss.

115 Cf. HARDT, Michael. Gilles Deleuze - An Apprenticeship in Philosophy. Minnesota: University of

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precisamos de uma noção de temporalidade que sirva para esclarecer essa dinâmica ao mesmo tempo em que satisfaça as preocupações da filosofia deleuzeana, especialmente no que concerne à diferença. É no engajamento com a obra de Bergson que Deleuze buscará satisfazer essa exigência teórica.

Podemos adotar, como ponto de partida, a concepção usual que temos do tempo, já que ela tende a informar as nossas concepções mais básicas sobre a diferença e a mudança. A separação entre passado, presente e futuro, assim como unidades divisíveis (épocas, séculos, anos, dias, meses...) mostram não apenas a divisibilidade dos instantes, como também a ausência de um fim, de um limite intransponível: cada resultado alcançado remete a uma nova divisão. O presente, mais especificamente o agora, converte-se em uma idealização, uma suposição que ilustra o momento vivenciado e apreendido pelos nossos sentidos. Encontramos o tempo também antes do primeiro evento, da primeira causa e na mais distante representação do futuro que a nossa imaginação nos permite vislumbrar.

O que amarra todas essas considerações? No contexto da filosofia de Bergson, trata-se de uma compreensão espacial do tempo: não só temos a possibilidade de uma quantidade infinita de divisões, como também de expandir/contrair o foco que temos nesses momentos, seja expandindo até o começo de tudo (o Big Bang) ou ao fim dos tempos (o apocalipse, o juízo final, a extinção)116. A primeira implicação teórica é a

ausência de entrelaçamento entre os eventos: por mais próxima que seja a ocorrência de cada evento, existe um espaço que previne que um venha a se entrelaçar e se confundir com o outro.

Isso aponta também para uma compreensão de tempo como um plano independente que, no entanto, abrange os eventos, a exemplo de um recipiente que contém objetos. Podemos dizer que, assim como o recipiente, o tempo é externo às coisas e não se deixa ser abrangido por elas117.

O conceito de memória problematiza essa concepção. As lembranças que possuímos existem em nós: são circunstâncias que, embora não estejam ocorrendo agora, aconteceram em um determinado momento, logo integram um determinado estado de

116 Cf. BERGSON, Henri. Creative Evolution. New York: The Modern Library, 1944, p. 6; HARDT,

Michael. Gilles Deleuze - An Apprenticeship in Philosophy. Minnesota: University of Minnesota, 1993, p. 14 e ss.

117 A vida humana, no entanto, consiste em variação contínua que se desdobra no tempo, Cf. BERGSON,

coisas118. A depender da perspectiva adotada, a constituição dessas circunstâncias

também varia consideravelmente. Optando por uma concepção linear, a existência está circunscrita ao que acontece, ao instante do agora no presente, sendo o termo passado uma designação para os eventos que deixaram de existir: se o passado já não existe de maneira alguma, as lembranças são dotadas de uma existência evanescente na memória, como um receptáculo sem fundo, que tudo engole e elimina. O conjunto de coisas e acontecimentos existentes se encontram circunscritos ao presente119.

O problema dessa concepção é que, embora não ignore que o presente se torna passado, não consegue esclarecer essa transição. O agora é um ponto idealizado: tenta capturar um instante que é também fugaz, passageiro. Mas o que significa esse passar? Deixar de existir? Não, uma vez que, para que o presente se torne passado, é necessário que o passado precise existir, e que exista concomitantemente com o presente. A relação não pode ser de sucessão. O passado é condição de necessidade para a existência do presente. Ambos, presente e passado, são dotados de realidade, existem, mas não do mesmo modo, e é precisamente nessa diferença que iremos ressaltar dois importantes conceitos para a filosofia deleuzeana: o atual e o virtual.

O que configura o presente? A percepção sensorial que temos dele: o presente como designando a experiência imediata que temos com as coisas e com o mundo. É neste sentido que o presente se associa ao atual. E o passado? Ele também existe, mas como virtualidade: é preciso concebê-lo não como um instante, como algo que poderíamos demarcar com precisão. A existência do virtual não implica em sua atualidade, e sim na possibilidade de sua atualização. Ao invés de passar, de deixar de existir, o passado se acumula120.

Momentos depois de memorizarmos um número de telefone ou endereço, ao orientarmos o nosso pensamento para outras coisas, aquela informação deixou de ser atual, mas não deixou de existir: caso a situação assim demande, como no caso de alguém nos perguntar pelo endereço ou número de telefone, a informação será prontamente trazida à tona, ou seja, atualizada. À princípio parece se tratar de uma relação entre

118 Cf. BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaios sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo:

Martins Fontes, 1999, p. 84.

119 Cf. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 88-89. Cf. WILLIAMS,

James. Gilles Deleuze´s Logic of Sense – A Critical Introduction and Guide. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2008, p. 2 e ss.

120 Cf. PEARSON, Keith Ansell. The Reality of the Virtual: Bergson and Deleuze. MLN, Vol. 120, No. 5,

Comparative Literature Issue, p. 1117, Dec/2005; ZOURABICHVILI, François. Deleuze: uma filosofia do acontecimento. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 105 e ss.

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realidade e possibilidade, ou seja, entre aquilo que já foi estabelecido, portanto dotado de realidade, e o que ainda não foi. Entretanto, o possível ainda não é real, o que torna a aproximação com a distinção atual/virtual inadequada uma vez que ambos são dotados de realidade. O virtual existe, embora não seja atual, ao contrário do possível, que ainda não existe121.

O possível é uma imagem do real que ainda não passou à existência: a possibilidade de um avião cair é exatamente igual à queda de um avião, assim como a possibilidade de alguém pegar febre é igual à aquisição da enfermidade, exceto que, em ambos os casos, as possibilidades ainda não se materializaram, portanto não são reais. O real e o possível possuem a mesma estrutura.

Em termos constitutivos, o virtual não é um reflexo do atual porque não se trata de um atual ultrapassado. Virtual e atual são indissociáveis: não existe nenhuma percepção atual que não seja carregada por lembranças, por elementos de experiências anteriores122. Na obra de Bergson, o virtual é associado à ilustração de um cone invertido: quanto mais próximo da base for o corte, maior a relação com o nosso engajamento prático e operacional que integra o nosso cotidiano123.

Apontamos antes para o processo de rememoração de um endereço ou número telefônico, mas também poderíamos mencionar o aprendizado sensorial que precisamos desenvolver para que possamos dirigir veículos com certa habilidade. Inicialmente a novidade cria bloqueios e produz hesitações: precisamos nos lembrar das instruções para ligar, passar a marcha e subir uma ladeira.

Com o passar dos anos, a repetição desses gestos permite uma reprodução pré- consciente: já não pensamos na passagem das marchas, bem como se altera drasticamente a nossa percepção espacial referente aos outros veículos e à extensão das vagas, o que faz com que levemos menos tempo para produzirmos avaliações das situações em que nós encontramos e para que certas ações sejam praticadas. O corpo “aprendeu” a realizar esses

121 Cf. RAJCHMAN, John. Existe uma inteligência do virtual? In: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze:

uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 397.

122 Cf. BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaios sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo:

Martins Fontes, 1999, p. 84.

123 O cone invertido é central para a abordagem desenvolvida por Lefebvre em torno da decisão judicial,

Cf. LEFEBVRE, Alexandre. The Image of Law: Deleuze, Bergson, Spinoza. Stanford, California: Stanford University Press, 2008, p. 136; BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaios sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 118.

gestos em contextos específicos de modo que a hesitação inicial cedeu espaço para uma ação natural e espontânea124.

Uma outra situação, muito bem ilustrada no principal romance de Marcel Proust,

Em Busca do Tempo Perdido, consiste no caráter involuntário que envolve a atualização

do virtual125. O protagonista, ao experimentar uma Madeleine com chá, reconstitui um conjunto de lembranças, aí construindo também relações das mais diversas com os momentos de sua infância. Diferentemente do exemplo do carro, essa situação não aponta para um conhecimento operacional a ser atualizado, leia-se reproduzido, conforme as exigências práticas de uma circunstância determinada, mas de uma ruptura temporária em meio ao desempenho de um conjunto de atos habituais126.

O virtual, portanto, atualiza-se de diversas formas e conforme uma lógica específica127. Na medida em que não é uma cópia do atual, o virtual estabelece uma relação diferencial e contínua entre os seus elementos constitutivos, como lembranças e saberes. Neles não encontraremos uma imagem fidedigna de tudo o que foi, antes recortes, partes e associações que podem se mostrar incoerentes, distantes, e também ilógicas: um cheiro pode remeter a uma paisagem que, por sua vez, associa-se a um evento traumático ou a uma situação emblemática na vida de alguém.

Os eventos atualizados não reproduzem o ocorrido, no sentido de não constituírem uma fotografia de um acontecimento em que podemos examinar todos os detalhes, antes o que temos são fragmentos que se mesclam com outros fragmentos não necessariamente vinculados direta ou indiretamente com aquele acontecimento128. Como a atualização do

virtual é sempre criativa, a cada instante novas associações vão sendo estabelecidas o que, por sua vez, produzem novas conexões com elementos já apreendidos129. Não apenas o

passado existe, como é também vivo, dinâmico. Cada ato realizado transforma o passado130. Conforme John Rajchman:

124 Cf. BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaios sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo:

Martins Fontes, 1999, p. 106; DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 78.

125 Como bem observa Deleuze, a atualização do virtual é sempre criativa, Cf. DELEUZE, Gilles.

Bergsonismo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 79.

126 A emoção é dotada de um caráter pré-representativo, sendo também fonte produtora de ideias novas, Cf.

Cf. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 90.

127 Acerca das diversas modalidades do virtual, Cf. PEARSON, Keith Ansell. The Reality of the Virtual:

Bergson and Deleuze. MLN, Vol. 120, No. 5, Comparative Literature Issue, Dec/2005, p. 1113.

128 Para uma exposição mais aprofundada em torno da atualização dos eventos, Cf. DELEUZE, Gilles.

Logic of Sense. London: The Athlone Press, 1990, p. 151 e ss.

129 Cf. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 79.

130 À ideia do tempo como círculo, portanto, como repetição do mesmo presente, podemos observar uma

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O virtual se torna, portanto, essa potência estranha do singular e da série, que “subsiste” e “insiste” em nossas vidas e nossas maneiras de ser, sem se efetuar definitivamente em nenhum lugar. Ele exige então uma inteligência e uma lógica nas quais as “implicações” se tornem potências complicadas, as “disjunções” se tornem inconclusas, e as “conjunções” passem por outro lugar que não nas identidades131.

O passado é sempre atualizado em sua totalidade a cada momento ao invés de seletivamente. Presente e passado não constituem dois instantes temporais independentes que podem ser seccionados conforme a percepção que temos das coisas e as exigências dos contextos práticos em que já nos inserimos132. Bergson opera uma inversão do nosso senso comum: acreditamos que para lembrarmos de algo, é necessário perceber alguma coisa que nos conduza a isso, mas, no entendimento do autor, lembramos para perceber, e não o contrário. O passado envolve cada uma das nossas experiências, moldando o nosso engajamento com o mundo, ao mesmo tempo em que é formado por novos atos que compõem esse engajamento.

O passado não é apenas o nosso passado, uma dimensão estritamente subjetiva, antes engloba também todo o contexto social e político que nos circunda, como aqueles que nos antecederam. A nossa existência se desdobra em meio às circunstâncias e aos eventos históricos que não estão necessariamente relacionados com as nossas escolhas, mas que nem por isso deixam de compor os contextos em que elas ocorrem. Toda existência é sempre contextualmente situada e em permanente relação com o passado. Mediante a percepção, a memória ou algum tipo de ação, então, o virtual é atualizado, ou seja, é remetido ao presente, às vezes de maneira bastante surpreendente, como ocorre na narrativa de Proust133.

A reflexão sobre o tempo deixa de lado as metáforas espaciais, com a linha e o ponto, para assumir a forma de uma continuidade dinâmica, de um puro devir: trate-se de

Pál. O Tempo Não-Reconciliado. In: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 93.

131 RAJCHMAN, John. Existe uma inteligência do virtual? In: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma

vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 398.

132 Cf. ZOURABICHVILI, François. Deleuze: uma filosofia do acontecimento. São Paulo: Editora 34,

2016, p. 106.

133 Cf. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 80. Esse ponto pode ser

aprofundado através de uma investigação sobre a experiência real de um sujeito concreto encarnado e contextualmente situado. Protevi realiza essa investigação ao colocar a filosofia deleuzeana em contato com a escola de pensamento 4EA ("embodied, embedded, extended, enactive and affective", presente nas ciências cognitivas, Cf. PROTEVI, John. One More ´Next Step´: Deleuze and Brain, Body and Affect in Contemporary Cognitive Science. In: BRAIDOTTI, Rosi; PISTERS, Patricia. Revisiting Normativity with Deleuze. London: Continuum Press, 2014, pp. 25-36.

compreender o tempo como fluxo134. O conceito central de Bergson aqui é o de duração.

Em síntese, ao contrário da concepção espacial de tempo, a duração nos oferece uma abordagem temporal fundada sob dois pontos significativos: a unidade temporal e a coexistência entre passado e presente135. O tempo é um único fluxo contínuo e indivisível, estabelecendo a coexistência entre presente e passado.

Uma consequência que podemos vislumbrar do conceito de duração e que nos é pertinente ainda não foi apropriadamente desenvolvida: a sua relação com a diferença136. Observamos, na seção anterior e também no início desta, que a afirmação de uma substância única suscita a possibilidade de eliminarmos a diferença uma vez que a substância se mostra também idêntica a si mesma, logo carente de qualquer determinação exterior. A duração, porém, caracteriza-se como uma diferença interna, não-dialética, e compreendida em termos temporais ao invés de espaciais: um puro diferir que, ao mesmo tempo em que escapa à representação, faz com que ela seja possível137. Escreve Deleuze:

Na ciência e na metafísica, Bergson denuncia um perigo comum: deixar escapar a diferença, porque uma concebe a coisa como um produto e um resultado, porque a outra concebe o ser como algo de imutável a servir de princípio. Ambas pretendem atingir o ser ou recompô-lo a partir de semelhanças e de oposições cada vez mais vastas, mas a semelhança e a oposição são quase sempre categorias práticas, não ontológicas... O ser, de fato, está do lado da diferença, nem uno nem múltiplo. Mas o que é a nuança, a diferença da coisa, o que é a diferença do pedaço de açúcar? Não é simplesmente sua diferença em relação a uma outra coisa: nós só teríamos aí uma relação puramente exterior, remetendo-nos em última instância ao espaço138.

Como ocorrera com o conceito de expressão na filosofia de Espinosa, é significativo como o conceito de duração bergsoniana atende aos propósitos centrais da

134 Sobre a ideia de um puro-devir, Cf. DELEUZE, Gilles. Logic of Sense. London: The Athlone Press,

1990, p. 1 e ss.

135 Cf. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 58. 136 Cf. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 60.

137 Cf. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 80; HARDT, Michael. Gilles

Deleuze - An Apprenticeship in Philosophy. Minnesota: University of Minnesota, 1993, p. 6-7; PEARSON, Keith Ansell. Germinal Life - The Difference and Repetition of Deleuze. London: Routledge, 1999, p. 21 e ss.

138 DELEUZE, Gilles. Bergson, 1859-1941. In: DELEUZE, Gilles. Desert Island: and Other Texts, 1953-

1974. New York: Semiotext(e), 2004, p. 25. No original: “Bergson denounces a common danger in science and in metaphysics: allowing difference to escape - because science conceives being as something unmovable that serves as a principle. Both seek to attain being or to recompose it starting from resemblances and ever greater oppositions, but resemblance and opposition are almost always practical, not ontological, categories... Being in fact is on the side of difference, neither singular nor multiple. But what is nuance, the difference of the thing, what is the difference of a sugar cube? It is not simply its difference from another thing: there we would have only a purely exterior relation, leading us, in the final instance, back to space”.

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filosofia deleuzeana139. A expressão, agora concebida como duração, permite-nos situar

as múltiplas alterações e diferenças na substância como um processo contínuo, porém único e circunscrito a ela mesma, um desdobramento interno de si mesma. Na filosofia de Bergson, Deleuze encontra um conceito estritamente afirmativo de diferença e que não só antecede, como independe, da identidade, e a ela chamaremos de diferença em espécie140.

Uma outra concepção de diferença, no entanto, é aquela situada entre entes distintos, ou seja, uma diferença que emerge através da contraposição e da identidade. Quando queremos apontar a diferença entre um computador e uma cadeira, é dessa última perspectiva que nós estamos tratando. É esta a concepção de diferença, mais comum e tradicional, que tanto Deleuze quanto Bergson compreendem como diferença de grau141. A percepção temporal através da diferença de grau exige cortes, distinções e limitações: é preciso determinar instantes e momentos para que, posteriormente, o que é diferente e distinto entre eles possa ser delimitado.

O presente perceptível é dado como um conjunto determinado de elementos organizado por relações estáveis, ou seja, trata-se do campo das diferenças de graus em que podemos delimitar a identidade dos entes que nos circundam. Entretanto, a diferença em espécie abrange e corta esse cenário, apontando a sua própria imanência ao presente. A estabilidade das identidades se revela muito mais tênue do que parecia de início uma vez que, considerando que a diferença em espécie é imanente ao presente, ela é capaz de desestabilizar e desestruturar quaisquer identidades estabelecidas.

O cerne dessa reflexão é apontar a existência de um excesso em nossa relação cognitiva com a realidade, ou seja, ela é sempre mais do que as nossas descrições tendem a representar142. Podemos nomear esse excesso de virtualidade da diferença. Se pensarmos em termos espaciais, a diferença em graus será difícil de apreender: os entes veem ao nosso encontro com características específicas, o que nos permite determina-los através do isolamento das suas propriedades específicas143. Ao adotarmos uma

139 Cf. DELEUZE, Gilles. Expressionism in Philosophy: Spinoza. New York: Zone Books, 1990, p. 13 e

ss.

140 Cf. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 74.

141 Cf. BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaios sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo:

Martins Fontes, 1999, p. 19.

142 Sobre este ponto, as considerações de Deleuze sobre o conceito de estrutura em Lévi-Strauss mostram-

se pertinentes, especialmente no tocante ao excesso e à ausência, Cf. DELEUZE, Gilles. Logic of Sense. London: The Athlone Press, 1990, p. 49 e ss.

143 Cf. BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaios sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo:

perspectiva temporal, nós precisamos considerar também os arranjos distintos com que o