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Segundo questionamento: a coesão entre a reflexão jurídica deleuzeana e a sua

1. Considerações Metodológicas

1.4. Segundo questionamento: a coesão entre a reflexão jurídica deleuzeana e a sua

O principal entrave na articulação de uma reflexão jurídica deleuzeana que não é usualmente discutida nas leituras jurídicas da obra do autor, consiste em explicitar o seu caráter político. É este, sem dúvida, o ponto mais complexo e difícil de se discutir na relação entre Deleuze e o direito: como articular a reflexão sobre jurisprudência, em parte desenvolvida por Lefebvre, Mussawir e MacLean, com as considerações políticas de Deleuze e Guattari, sobretudo no tocante ao Estado e ao Capitalismo? Qual é o papel que o Estado vai desempenhar neste arranjo teórico? É possível ter uma filosofia do direito sem abandonar a pretensão de uma crítica radical ao direito estatal e ao capitalismo que, por vezes, vai lhe servir de fundamento?

Todas essas indagações podem ser concebidas em dois pares: a relação entre Direito e Estado e a relação entre Direito e Capitalismo. São as obras escritas com Guattari, como Anti-Édipo, Kafka, Mil Platôs e O Que é a Filosofia que precisam ser lidas à luz daqueles dois eixos e no contexto da reflexão aqui desenvolvida sobre a jurisprudência/jurisdição. Seria algo pouco significativo, e mesmo contraditório, sustentar uma compreensão de decisão judicial que toma como pressuposto a criatividade ao mesmo tempo em que a implicação política desse conceito parece ser bastante restrita. Lefebvre e Mussawir reconhecem a relação entre o estudo que fazem sobre jurisprudência e jurisdição, mas o aprofundamento deste ponto parece fugir ao propósito inicial das suas respectivas pesquisas.

Após desdobrarmos a reformulação da decisão judicial pela filosofia da diferença, seguiremos o trabalho de Paul Patton sobre a democracia como base para a construção de um elo entre a prática do direito e a política no âmbito interno da filosofia deleuzeana. O conceito de democracia desempenha uma função estratégica: ele certamente se encontra no campo da política, abrindo espaço para pensá-la em articulação com o poder estatal, mas também em franca oposição a ele. Sendo um termo semanticamente carregado, o conceito de democracia pode servir para compor um imaginário político radical desconectado, e insuscetível de ser subsumido, por qualquer programa político particular.

A democracia é avaliada negativamente, concebida em sua relação direta com o capitalismo, portanto também com a dominação e a exploração de certas parcelas da sociedade. Em suas obras mais tardias, mais especificamente O Que é a Filosofia, Patton

aponta uma reconsideração do conceito de democracia e de sua importância política, desta vez sob uma avaliação mais positiva. Patton escreve:

Ao mesmo tempo, os comentários críticos acerca das democracias existentes neste livro parecem implicar que outras atualizações do conceito de democracia podem ser possíveis. Deleuze e Guattari contrastam a atual universalidade do mercado com a universalidade virtual dos estados democráticos globais66.

O itinerário de nossa investigação acerca da interseção entre a filosofia política de Deleuze e Guattari e a presente discussão sobre jurisprudência e jurisdição consiste em aprofundar as implicações da abertura criativa do direito. Embora cada um desses autores tenha se preocupado em mostrar essa dimensão criativa como algo que já se encontra presente nas práticas dos juristas, acreditamos que essa abertura, quando inscrita no contexto das democracias contemporâneas, pode ser associada, de maneira proveitosa, a duas outras noções jurídico-políticas hoje bastante discutidas: a imunização e a exceção. Ambas as noções são conectadas por um terceiro termo e que permaneceu implícito ao longo deste primeiro capítulo, a saber, a própria comunidade.

A criação do direito existe enquanto resposta e abertura aos problemas que cortam, atravessam e dividem a comunidade. Entretanto, essa mesma criação encontra a sua condição de possibilidade a partir de um contexto institucional que seletivamente se deixa alterar e se reconstituir com base nesses encontros, e essa seletividade consiste nas abstrações estabelecidas pelo próprio direito como forma de operacionalizar os problemas com que ele se defronta. A criatividade existe até o ponto em que a existência das operações do direito não é posta em risco.

A desconstrução de Jacques Derrida se mostra bastante produtiva para se pensar um aspecto da criatividade diferente daqueles levantados por Lefebvre, Mussawir e MacLean, a saber, a criatividade que se inscreve na preservação do direito na medida em que o expõe ao não-direito, ao que lhe ultrapassa, e que também pode lhe anular. A auto- imunização, quando pensada através da perspectiva da criatividade introduzida por Lefebvre, Mussawir e MacLean, pode ser concebida como um processo inventivo de construção de exceções através de situações específicas e pontuais.

O conceito de Carl Schmitt, mas que desenvolveremos através de uma articulação entre Giorgio Agamben e Roberto Esposito, visa à paradoxal suspensão da aplicabilidade

66 PATTON, Paul. Deleuze and Democracy. Contemporary Political Theory, v. 4, p. 401, 2005. No original:

“At the same time, the critical remarks about existing democracies in this book appear to imply that other actualizations of the concept of democracy might be possible. Deleuze and Guattari contrast the actual universality of the market with the virtual universality of global democratic state”.

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do direito como forma de manter a sua força e intervenção. Como ocorrera no USA Patriot

Act ou na prisão de Guantánamo, a preservação das democracias liberais demanda a

suspensão das principais noções jurídico-políticas que caracterizam o imaginário dessas democracias, ou seja, um flerte com aquilo que potencialmente as destrói, mas que, neste caso, tende a salvá-las. As reflexões de Jacques Rancière sobre o potencial desestabilizador da democracia, em contraposição à sua assimilação a mais uma forma de organização institucional do poder político, mostram-se de grande importância para a nossa investigação.

Pensar a imunização e a exceção, no contexto das democracias liberais, é importante para observar como as duas noções se circunscrevem aos imperativos econômicos e políticos do capitalismo tardio. Neste panorama, o sacrífico, a suspensão de alguns direitos, a intervenção judicial na política institucional, podem ser discursivamente revestidas como forma de proteger, impulsionar e amadurecer as democracias liberais. A distinção entre o jurídico e a violência incontrolável se torna possível a partir do momento em que os dois âmbitos se contaminam.

Pensar a criação como ontológica implica em virtualizar a exceção a partir da decisão judicial, ou seja, tomando-a não como uma possibilidade constante, e sim como um recurso sempre disponível a partir da performatividade da linguagem jurídica. A mesma plasticidade que permite a ampliação e a justificação de novas formas de vida a partir do direito, que parece nortear a reflexão política sobre a democracia que Patton elabora a partir de sua leitura particular da filosofia deleuzeana, também constrói reiteradamente novos conceitos que juridificam novas formas de opressão. As formas são circulares e ambíguas: nem sistema de opressão, nem espaço privilegiado de transformação social.

Considerando a reflexão deleuzeana, mas lembrando Foucault, então, à criatividade da jurisprudência, precisamos acrescentar a ideia do direito como administração de ilegalismos67. Discorrendo sobre esse mesmo tempo, Martin Hardie aponta para uma intuição sobre a prática do direito que perpassa todo o nosso trabalho:

Deleuze e Foucault também nos fornecem uma outra ideia de jogo quando eles se referem a uma noção nova do direito quando direito e ilegalidade são substituídos pela correlação, mais sútil, entre ilegalismos e direitos. O direito, neste sentido, não é mais um sistema de justiça, mas uma estrutura de ilegalismos. O direito administra ilegalismos – as “brechas na lei” consistem no objeto do direito. As regras foram feitas para serem dobradas e quebradas e

67 Esse é basicamente um dos pontos que Foucault desenvolve em Vigiar e Punir, Cf. FOUCAULT, Michel.

as “brechas na lei” permitem alguns ilegalismos e tornam possível a invenção de outros. Ao mesmo tempo, elas proíbem e isolam outros ilegalismos68. Aqui já não se trata mais da tradicional tensão entre uma abordagem jusnatural ou positivista do direito, e menos ainda de uma compreensão histórica que ressalta a positivação como característica determinante do direito moderno, mas de situar a construção e reconstrução do direito em um único plano: o fundamento - caso essa palavra se faça aceitável neste contexto - das construções e distinções construídas pelo jurista terminam por recair em sua própria prática.

68 HARDIE, Martin. Deleuze: "Had I not done philosophy I would have done Law". International Journal

for the Semiotics of Law, v. 20, p. 101-102, 2007. No original: “Deleuze and Foucault also give us another idea of play when they refer to the new notion of law where law and illegality are replaced with the subtle correlation of illegalisms and laws. Law in this respect is not a system of justice but a structure of illegalisms. Law administers illegalisms - loopholes are the stuff of law. Rules are meant to be bent and broken and loopholes allow some illegalisms and make possible and invents others. At the same time they forbid and isolate others”.

2. Imanência, Diferença e Ontologia: uma incursão inicial pela filosofia