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Filosofia da diferença e imanência: repensando o significado da ontologia

2. Imanência, Diferença e Ontologia: uma incursão inicial pela filosofia da diferença de

2.3. Filosofia da diferença e imanência: repensando o significado da ontologia

Diferente da ontologia tradicional, a ontologia deleuzeana estabelece um mundo de devires constantes que se fundam sobre uma diferença que, ela mesma, não pode ser capturada pelas operações que constituem a representação. O bom senso e o senso comum apreendem tão somente a superfície dos fenômenos: a estabilidade e a permanência que acompanham a sua determinação102.

A transcendência, ao longo da história da filosofia ocidental, apontou para essa direção: Deus cria um mundo que o transcende, assim como o sujeito moderno organiza e estabelece um mundo que também lhe é transcendente, mas ambos se encontram dissociados daquilo que criam. Em ambos os casos, um polo, Deus ou o sujeito, deriva um outro, marcado pela diversidade e diferença, a exemplo do mundo e da natureza. Confrontar a transcendência significa, em linhas muito gerais, colocar em questão o primado da identidade sobre a diferença, da estabilidade sobre o fluxo, e do ser sobre o devir, portanto, em buscar uma alternativa a uma ontologia comprometida com o que existe e permanece. É possível pensar diferentemente?

Uma estratégia possível consistiria em inverter a relação entre

identidade/diferença, mas é um caminho pouco promissor porque ainda confina o pensamento no horizonte da representação, mantendo a filosofia na transcendência, como Nietzsche já o observara103. Embora seja possível sustentarmos a existência de um plano

superior em que o devir está situado, e um plano inferior baseado na permanência. É a continuação do platonismo por outros meios. A contraposição à transcendência será realizada através do conceito de imanência104. Com este conceito, Deleuze pretende

102 Cf. DELEUZE, Gilles. Difference and Repetition. London: Continuum, 2001, p. 36 e ss. A distinção

entre essência e aparência não pode servir para ofuscar uma outra que, no âmbito da reflexão platônica, mostra-se ainda mais primordial, a saber, a do modelo e de sua cópia, Cf. DELEUZE, Gilles. Difference and Repetition. London: Continuum, 2001, p. 264 e ss.

103 Cf. DERRIDA, Jacques. Of Grammatology. Baltimore and London: The Johns Hopkins University

Press, 1997, p. 19 e ss.

104 Acerca do conceito de imanência no contexto da filosofia de Espinosa, Cf. DELEUZE, Gilles. Spinoza:

eliminar qualquer duplicação de substâncias, seja aquela que engloba a relação entre o sujeito e um fundamento transcendente, como a que integra a relação entre sujeito e mundo.

Deleuze encontra em Espinosa um dos seus mais importantes aliados para o trato dessa temática. O filósofo holandês desenvolve um conjunto de conceitos que permite uma reconfiguração das relações que compõem a transcendência, abrindo espaço para uma alternativa: uma filosofia da imanência. Deleuze dedica dois livros exclusivamente para a análise da filosofia de Espinosa, Espinosa e o Problema da Expressão e Espinosa:

Filosofia Prática. A análise de ambos é algo que extrapola em muito os propósitos de

nossa incursão seletiva pela filosofia deleuzeana105. Buscaremos nos deter em alguns elementos da filosofia de Espinosa bastante pertinentes para compreendermos certos usos dos conceitos de imanência e expressão na filosofia deleuzeana.

Na filosofia cartesiana, as duas substâncias, pensamento (res cogitans) e extensão (res extensa) são marcadas por uma conexão que Descartes teve grande dificuldade em esclarecer. Atributos e modos são dois conceitos que tradicionalmente acompanharam o conceito de substância no desenvolvimento das filosofias racionalistas: atributos são as características de uma determinada substância, enquanto os modos consistem nas manifestações concretas daqueles atributos. Ambas as substâncias são definidas em termos de um atributo principal: a extensão tem como atributo a matéria, enquanto o pensamento, a mente106.

Espinosa, por outro lado, afirmou a existência de apenas uma substância, Deus. Pensamento e extensão, ao invés de substâncias distintas, são agora concebidas como atributos de Deus, assim como onipotência e omnisciência107. Entretanto, se a relação

entre a substância única e os atributos forem marcadas por uma independência, então ainda é possível um retorno à transcendência. De que modo? Duas espécies de relações

ponto ao contrastarmos a metafísica ocidental com a oriental, Cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, v. 1. São Paulo: Editora 34, 1995, p. 29 e ss.

105 Para uma análise sucinta, mas sólida, Cf. HARDT, Michael. Gilles Deleuze - An Apprenticeship in

Philosophy. Minnesota: University of Minnesota, 1993, p. 56 e ss; PEDEN, Knox. Toward a Science of the Singular: Gilles Deleuze between Heidegger and Spinoza. In: PEDEN, Knox. Spinoza Contra Phenomenology: French Rationalism from Cavaillès to Deleuze. Stanford: Stanford University Press, 2014, pp. 191-218; PEDEN, Knox. Nothing Is Possible: The Strange Spinozism of Gilles Deleuze. In: PEDEN, Knox. Spinoza Contra Phenomenology: French Rationalism from Cavaillès to Deleuze. Stanford: Stanford University Press, 2014, pp. 219-256.

106 Cf. DELEUZE, Gilles. Spinoza: Practical Philosophy. San Francisco: City Lights Books, 1988, p. 91 e

ss.

107 Cf. DELEUZE, Gilles. Spinoza: Practical Philosophy. San Francisco: City Lights Books, 1988, p. 53 e

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podem ser esboçadas. A primeira espécie é a da criação: o criador cria algo que lhe é distinto, logo independente. A segunda consiste na emanação: aquilo que é criado é extraído do próprio criador, portanto a criação permanece também independente108.

A pretensão de Deleuze consiste em inscrever os atributos na própria substância, eliminando essa independência ao garantir que o criador não detenha uma superioridade sobre a criação, caso contrário estaríamos retornando à metafísica cristã. Para isso, os conceitos usuais de criação e emanação mostram-se problemáticos. O conceito de expressão, que desempenha um papel relativamente menor no contexto da Ética de Espinosa, é aqui deslocado por Deleuze para o centro de uma ontologia da imanência. Mais um exemplo de sua interpretação seletiva e peculiar109.

Romper com a transcendência significa afirmar a univocidade de Deus, mas essa afirmação é distinta daquela que visualizaremos no cristianismo: a indivisibilidade de Deus significa que todos os atributos ou propriedades não podem ser dispostos sobre uma ordem verticalizada110. A principal fragilidade deste argumento é a de que se sustenta a distinção clássica da filosofia racionalista entre substância, atributos e modos, mas ao mesmo tempo, conforme a tese da univocidade de Deus, não deveria existir essas distinções111. Uma saída seria negar a existência de atributos e modos, mas o resultado, para uma ontologia da imanência e para que possamos transcender a imagem dogmática do pensamento, mostra-se inadequado: uma única substância que se identifica consigo mesma reitera o primado da identidade e rejeita a diferença.

A solução deleuzeana consiste em conceber os modos como expressão dos atributos, e os atributos como expressão da substância112. O conceito de expressão trata do problema acima. Primeiro, ele não introduz uma independência entre substâncias, atributos e modos: os dois últimos são expressões do primeiro, ou seja, consistem na própria substância. Segundo, a diferença é mantida porque os atributos e modos são

108 Cf. DELEUZE, Gilles. Spinoza: Practical Philosophy. San Francisco: City Lights Books, 1988, p. 51;

DELEUZE, Gilles. Expressionism in Philosophy: Spinoza. New York: Zone Books, 1990, p. 172 e ss.

109 A argumentação de Deleuze neste ponto é altamente complexa e um tanto quanto controvertida,

sobretudo na sua interpretação ontológica dos atributos, Cf. HARDT, Michael. Gilles Deleuze - An Apprenticeship in Philosophy. Minnesota: University of Minnesota, 1993, p. 75-76.

110 Cf. DELEUZE, Gilles. Spinoza: Practical Philosophy. San Francisco: City Lights Books, 1988, p. 108-

109.

111 Para um comentário pontual sobre a abordagem de Espinosa quanto a este ponto em particular, Cf.

DELEUZE, Gilles. Expressionism in Philosophy: Spinoza. New York: Zone Books, 1990, p. 164.

112 Cf. DELEUZE, Gilles. Expressionism in Philosophy: Spinoza. New York: Zone Books, 1990, p. 41 e

formas dinâmicas e ativas que se desdobram e se transformam113. Uma imagem conhecida

na filosofia deleuzeana é a da folha de papel: ela pode adquirir várias formas e desempenhar várias funções, mas tudo a partir da mesma e única folha de papel que continuamente se deforma e reforma. A substância deixa de ser um ente, a exemplo de um Deus cristão, para tornar-se um processo interno contínuo de diferenciação imanente114.

Através do seu engajamento com Espinosa, Deleuze desenvolve uma noção de imanência permeada pela transformação através do conceito de expressão, o que permite sustentar a existência de um só plano sem incorrer em uma substância indiferenciada. Até esse ponto, porém, o plano surge não apenas como uma totalidade indiferenciada, como ainda se carece de um conceito de diferença que não implique no estabelecimento de uma relação de transcendência inscrita a partir do plano estabelecido. O conceito de expressão será também relevante na incursão que faremos, no capítulo quarto, pela reflexão deleuzeana sobre a linguagem.