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CAPÍTULO 2- “O poder pelo amor do poder”: o desempenho de Zacarias de Góes na

2.4. Diferentes modos de “ser” liberal

Os debates do projeto de Resposta à Fala do Trono na Câmara e as sobressalentes discussões sobre as formas de “ser” liberal, nos indicam a importância de se atentar para a multiplicidade de entendimentos e práticas imbricadas nessa expressão no Brasil em meados do século XIX.

Sobre as diferentes formas do “liberalismo”, Zília Osório de Castro, diz que quando o substancial da reflexão se trata da ideia de liberdade, devemos falar em “liberalismos” e não apenas em “liberalismo” ou “liberalismo autêntico”:

Falar em liberalismo enquanto regime político que consubstancia a ideia de liberdade implica lembrar a exaltação da razão enquanto valor em si, e perspectivar o ser humano entendido na individualidade da sua natureza, e a emergência do temporal como condição da existência. Mas implica igualmente considera-lo do ponto de vista da subjetividade romântica dos sentimentos, com filiação numa comunidade histórica ou contratualmente formada e denominada nação, e a adoção da temporalidade, do tempo que se vive, como característica humana. Ou seja, se bem que liberalismo postule a liberdade, nem esta tem um sentido unívoco, nem ser liberal pressupõe um único modo de ser e de estar, nem as sociedades e os estados que a invocam lhe aplicam o mesmo significado.431

Promovendo uma reavaliação das instituições políticas na América no período das independências, Elias José Palti argumenta que ocorrera ali uma ruptura no entendimento que os súditos tinham do pacto monárquico vigente desde o século XVII, o qual concedia ao rei, e

428 ACD. Sessão de 27 de janeiro de 1864. p.413. 429 ACD. Sessão de 28 de janeiro de 1864. p.438. 430 Ibid., p.309.

a seus ministros, plena “soberania” sobre a nação, soberania identificada como emanação imediata da figura divina432. Neste pacto “absolutista”, porquanto “la voluntad popular se

encontraba en el origen de la instituición monárquica, pero no era su fundamento”.433 Para ele,

o próprio pensamento absolutista ao acentuar a brecha entre a esfera do político – pondo em relevo sua natureza convencional – e a esfera social – os sistemas de hierarquias e subordinações espontâneas presentes na sociedade – , no seu afã de afirmar seus próprios fundamentos abriria o campo para a emergência de um conceito que minaria as premissas em se sustentava. Faria finalmente possível a concepção da existência de uma comunidade política organizada com independência daquilo que até então era o centro articulador de que necessariamente emanava: a autoridade real.434

Com as discordâncias em relação do pacto monárquico até então praticado, inclusive, na América hispânica, em virtude da vacância do trono espanhol, opera-se a transladação da “soberania” do rei para o “pueblo”, mais especificamente para os que eram considerados “cidadãos” e compunham a “nación”. Ou seja, a “nación debía ahora asumir su propia representación”.435

Estes “cidadãos” foram responsáveis pelo gerenciamento, em seu próprio interesse, da autoridade política, integrada em instituições como o Parlamento, as Assembleias provinciais e as Câmaras municipais. Também determinavam quem possuía direito de representação e como governar o conjunto dos súditos do Monarca ou de uma parcela deles;436

quem era portador legítimo de uma vontade autônoma e quem não.437 Nos termos de Palti, “un

modo de delimitar quiénes están habilitados a pactar entre sí y construirse como portadores legítimos de una voluntad soberana”.438

Estas instituições, compostas e gerenciadas pelos “cidadãos”, reunia e representava o conjunto de proprietários, figuras beneméritas, de alta graduação, comerciantes e fazendeiros, que se destacaram dos outros seres existentes na natureza pela conquista e posse de bens apropriados desta mesma natureza.439 Dotados, assim, dos requisitos para vivenciar uma

“humanidade” de cunho político: a propriedade privada e a partir dela a liberdade.

432PALTI, Elias José. El tiempo de la politica. El siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Siglo XXI Editores

Argentina, 2007. p.109.

433 Ibid., p.107. “a vontade popular estava na origem da instituição monárquica, mas não foi sua fundadora”. 434 PALTI, Elias José. Entre a natureza e o artifício: a concepção de nação nos tempos da independência. Lua Nova, São Paulo, n.81, 2010, p. 31-32.

435 PALTI, 2007, p127; 132. “nação devia agora assumir sua própria representação”. 436Ibid., p.106-130.

437 Ibid., p.144.

438 Ibid., p.148. “uma maneira de definir quem está autorizado a negociar entre si e construir-se como portadores

legítimos de uma vontade soberana”.

Se Palti demonstra as restrições à participação do processo político no século XIX aos “cidadãos”, isto é, a apenas àqueles que cumpriam os requisitos para compor e administrar legitimamente a nação, Maria Sylvia de Carvalho Franco – em estudo crítico da interpretação de C. B. Macpherson sobre os princípios liberais de John Locke – analisa as circunstâncias históricas de origem desta concepção liberal. Nesse sentido, avalia a extensão dos conceitos de igualdade e liberdade naquele teórico, tendo em vista a problematização da tese de que, segundo os princípios liberais, “todos os entes humanos são iguais”.440 Para a autora,

O pensamento liberal se regenera no ardil de produzir e reconciliar esses incompossíveis. Propõe os universais que o configuram – racionalidade, igualdade, liberdade, justiça – e traz em si a negação desses termos, tendo o poder de manter-se justamente por força dessas antinomias.441

Carvalho Franco, argumenta que no pensamento liberal a igualdade é ao mesmo tempo absoluta e determinada, porque “a qualidade do novo homem, isto é, ser proprietário, [...] fundou sua racionalidade e sua liberdade, tanto no sentido de minar as prerrogativas reais quanto de legitimar a dominação de classe e disciplina dos inferiores”.442 Deste modo, a

liberdade “se processa materialmente,[pela propriedade de bens] determinada e referida a certos

homens”.443 A propriedade se torna condição essencial da “humanidade” dotada de razão e

discernimento para o comando de todos os seres. “No mundo físico ou no político, ou nas passagens de uma esfera para outra, a rede de relações é, essencialmente, de dominação”.444

Aplicando as concepções de Carvalho Franco na análise da política praticada no Rio de Janeiro nas duas primeiras décadas do século XIX, que resultou na superação do pacto colonial no Brasil, Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira arrazoa que aqui, já neste período, a atuação dos “proprietários” pode ser caracterizada com primazia na opção pela construção de uma monarquia constitucional. A autora se refere a um movimento interno de

reajustes e pela emergência de múltiplos interlocutores em um jogo político, fluído e complexo, que expressava a luta pela conquista de mercados, terras e capitais. Isso implicava o acesso a cargos públicos decisórios e a articulação de vínculos pessoais e de favor que possibilitassem o exercício de pressões junto ao monarca, no sentido da realização de interesses e ambições.445

440 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. “All the word was America”: John Locke, liberalismo e propriedade

como conceito antropológico. Revista USP, n.17, 1993. p.32

441 Ibid., p.33.

442 Ibid., p.35-36. grifo do autor. 443 Ibid., p.39. grifo do autor. 444 Ibid., p.45. grifo do autor.

445 OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. A astúcia liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de

Por sua vez, em estudo sobre a experiência da prática liberal no Brasil, Christian Edward Cyril Lynch, considera que, desde o período joanino, ainda que com vagar, a difusão do ideário político liberal já se manifestava, sobretudo, por meio do jornal de Hipólito José da Costa446, o Correio Brasiliense ou Armazém Literário. Publicado em Londres entre 1808 e

1823, tinha destinação e ampla circulação no Brasil e “das páginas de seu moderado periódico circularam pela primeira vez, escritos defendendo abertamente a liberdade de imprensa e a necessidade de se reformar a monarquia à maneira das instituições inglesas”.447 As ideias ditas

liberais foram paulatinamente encontrando adeptos e propiciando a formação de grupos políticos. Como explica Lynch, já tratando do período imperial, com a formação do Partido Liberal ou luzia, após a criação do Partido Conservador ou saquarema, o termo “liberal deixava de ser meramente antônimo de absolutista, para se tornar sinônimo de pessoa de ideias avançadas, isto é, progressistas”448.

Nesta direção, é valido pontuar o estudo de Richard Graham, sobre o “liberalismo brasileiro”.449 O historiador elenca quatro perfis da classe média britânica comprometida com

construção de uma modalidade de estado liberal nos meados do XIX, que também poderiam ser reconhecidos no Brasil Para tanto, analisa o desempenho de quatro líderes liberais “progressistas” atuantes na década de 1860 e seguintes (Francisco Otaviano de Almeida Rosa, Zacarias de Góes e Vasconcellos, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa) que considera sensibilizados pelo sistema político inglês. É importante ressaltar que o autor empreende uma distinção entre “liberais” e efetivos membros do Partido Liberal, constatação significativa para entendermos o multifacetamento da vivência liberal no Brasil. Deste modo, para Graham, ter ou praticar ideias “liberais” não seria sinônimo de ser filiado ao Partido Liberal.

Sobre os conceitos compartilhados pelos liberais considera que o primeiro deles estabelecia o imperativo de “cancelar todos os privilégios de grupos ou indivíduos”450, os quais

deveriam se submeter a uma mesma lei, incluso a família real. O segundo, baseava-se na ideia de as leis serem “promulgadas visando uma solução racional dos problemas existentes, mesmo que isso significasse a radical transformação de velhas tradições”,451 sobretudo, por se tratarem

de industriais e comerciantes que fundamentavam seus direitos políticos nas posses resultantes

446 Para mais informações sobre o personagem ver: PAULA, Sergio Goes de. Hipólito José da Costa e o Correio Braziliense ou Armazém Literário. In: COSTA, Hipólito José da Costa. Hipólito José da Costa. São Paulo: Ed.

34, 2001. p. 11-47.

447 LYNCH, Christian E. C. O Conceito de Liberalismo no Brasil (1750-1850). Araucaria (Madrid), v. 9, 2007.

p.218.

448 Ibid., p. 230. Grifo do autor.

449 GRAHAM, 1973, p. 261-286. Cf. “A classe média britânica e o liberalismo brasileiro”. 450 Ibid., p.261.

dos frutos de seus empreendimentos. O terceiro objetiva tornar o indivíduo o mais livre possível para atuar e atingir seus objetivos. E o quarto conceito, fundamento de todos os outros, estabelecia

que somente deveriam fazer parte dos órgãos governamentais pessoas cuja contribuição para a melhoria das comunidades a que pertencessem fosse publicamente reconhecida. Seriam, em resumo, os capitalistas, os homens de empresa e outros, que enriquecendo-se com seus negócios, contribuíam também para o enriquecimento da nação.452

Grosso modo, os autores mencionados sustentam o entendimento de todo liberal ser partidário de um pacto político negociado entre os membros qualificados da nação, o que justificaria a prática do voto censitário tanto na Europa e nos Estados Unidos quanto no Império. Nesse sentido, os liberais eram favoráveis à liberdade de imprensa, de ideias e de associação, possibilitando o estabelecimento de acordos e alianças sustentadas por interesses pessoais. Todavia, no que diz respeito aos monopólios, em princípio eram contrários, porém desde que não usufruíssem de um contrato ou empreendimento regido por esse regime. O exemplo de Mauá é lapidar nesse sentido: ao mesmo tempo que batalhava pela liberdade bancária na Câmara, conforme vimos, defendia também os contratos exclusivos a ele concedidos em vários empreendimentos, a exemplo da exploração da navegação no Amazonas que trataremos no capítulo seguinte. Deste modo, podemos considerar o perfil contraditório das relações liberais e a possibilidade de várias práticas e pactos de cunho liberal, mas sem esquecer que princípios autoritários e excludentes as fundamentam desde a origem.

Izabel Andrade Marson e Cecília H. L. de Salles Oliveira453 indicam que a partir

das últimas décadas do século XX, novos estudos sobre a história política do Império vem, reconhecendo práticas e princípios liberais em várias circunstâncias454, por exemplo, na “ sua

452 Id., Ibid.

453 MARSON, Izabel A.; OLIVEIRA, Cecília H.L.S. Liberalismo, monarquia e negócios: laços de origem. In:

____Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013. p.9.

454 Destacam-se as pesquisas de: ALVES, Walquiria de Rezende Tofanelli. Expectativas para a "nação portuguesa" no contexto da independência: o projeto de Joaquim José da Silva Maia (1821-1823). 2018. 231 f.

Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. FERRAZ, Paula Ribeiro. O Gabinete da

Conciliação: atores, ideias e discursos (1848-1857). 2013. 159 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-

graduação em História, Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2013. HÖRNER, Erik. Em defesa da constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838-1844). 2010. 376 f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. BITTENCOURT, Vera Lucia Nagib. Da alteza real a imperador: o governo do príncipe D. Pedro, de abril de 1821 a outubro de 1822. 2007. 394 f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. ABREU, Eide Sandra Azevedo. O evangelho do comercio universal: o desempenho de Tavares Bastos na liga progressista e no Partido Liberal (1861-1872). 2004. 402 f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós- graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. SCANAVINI, João Eduardo Finardi Alvares. Anglofilias e anglofobias: percursos historiográficos e

cultura, na formação da opinião pública, na constituição de projetos políticos, na atuação de estadistas e dos grupos sociais e nas relações da sociedade imperial com a escravidão”.455

Nesta perspectiva, compartilhando argumentos de Osório de Castro, Palti, Oliveira, Marson e Graham, compreendemos o “ser” liberal de maneira ampla, como prática assentada desde a independência, especialmente consolidada pela elite política que rejeitou o pacto absolutista, recusou o desempenho de Pedro I e fundou a nação nos moldes concebidos durante o período regencial e o Segundo Reinado. Isso implica reconhecer procedimentos “liberais” não apenas em figuras vinculadas aos quadros do Partido Liberal, mas também considerar a participação dos conservadores na constituição de uma nação liberal. A partir destas referências admitimos diferentes formas de composição liberal no Império, tendo-se em vista o pacto de governo e o exercício das “liberdades”.

Como vimos, na apresentação do gabinete 15 de janeiro de 1864 e na discussão da Resposta à Fala do Trono, colocou-se com clareza a questão dos diversos entendimentos do “ser liberal”, quando o principal alvo das críticas foi o perfil do “liberalismo” do presidente do Conselho de Ministros, Zacarias de Góes e do Partido Progressista que ele anunciava. Nesta circunstância, Zacarias foi questionado duramente pelos liberais “históricos”, representados por Lopes Neto, que se consideravam liberais “autênticos” para se diferenciar dos conservadores “moderados” e até mesmo dos liberais “moderados” ou liberais “modernos” , ou ainda liberais “progressistas” nas palavras de Dias de Carvalho (pg. 123) – no geral parlamentares que não haviam vivenciado a Regência, a Maioridade e as rebeliões da década de 1840 por terem adentrado a política na década de 1860.456 O debate em torno do “liberalismo

de Zacarias nos possibilita identificar distintos modos de “ser” liberal expressos na Câmara entre janeiro e fevereiro de 1864.

O “liberalismo” de Zacarias, recusado pela artilharia dos “históricos” e dos conservadores “puros”, determinados a questionar as propostas do gabinete, é plenamente reconhecido por Richard Graham. Para ele o presidente do Conselho fora um dos “mais

políticos da questão do comercio de africanos (1826-1837). 2003. 293 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. FERREIRA NETO, Maria Cristina Nunes. Memória, política e negócios: a trajetória de Theophilo Benedicto Ottoni. 2002. 302 f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002. BARBOSA, Silvana Mota. A Sphinge Monárquica: o poder moderador e a política imperial. 2001. 414 f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.

455 MARSON; OLIVEIRA, op. cit., p.11.

456 CARVALHO, José Murilo de. Clamar e agitar sempre: os radicais da década de 1860. Rio de Janeiro:

importantes líderes liberais brasileiros”.457 A natureza “liberal” de Zacarias procedia da moda,

na época de sua formação na Academia de Recife, das leituras de Jeremy Bentham e John Stuart Mill traduzidas por um editor de Recife. Para o historiador, “o conhecimento da História Britânica e dos autores ingleses era mais difundido entre os possuidores de um nível de cultura mais amplo”.458 Zacarias, neste aspecto, abusava das citações de Thomas Babington Macaulay,

Henry Peter e Lorde Brougham em seus discursos.459

Tendo passado por diversos cargos administrativos provinciais sob a égide do Partido Conservador, com a política de Conciliação suas “concepções liberais” foram se desenvolvendo, com exceção da questão da Igreja460, posicionamento que servia para alimentar

os questionamentos sobre seu verdadeiro “caráter liberal”. Apesar disso conclui que Zacarias “contribuiu substancialmente para o progresso da ideologia liberal no Brasil”461, especialmente

por seu prestígio e força nos setores políticos. Para ele “os liberais brasileiros alimentaram-se assim das concepções transmitidas pelos escritores ingleses, que lhes permitiram prosseguir em sua luta contra as pressões exercidas sobre os indivíduos pela sociedade tradicional”.462

Podemos assim definir, que a prática liberal adotada por Zacarias de Góes no gabinete 15 de janeiro de 1864, não fugiu ao explicado em seu polêmico discurso em 5 de julho de 1861, quando afirmou: “inovação é salutar, [...] mas sempre com receio”.463 Sendo assim,

seu modo de “ser” liberal, tão questionado, sugere-nos uma posição moderada do liberalismo. A este respeito, José Murilo de Carvalho afirma que

No segundo gabinete desse político, em 1864, a Liga já se transformara no Partido Progressista, o primeiro a redigir e publicar um programa, tornado público no Senado em 6 de junho de 1864 pelo senador Silveira da Mota. Muito moderado, o programa afirmava explicitamente não buscar reformas na Constituição, eleição direta, descentralização política. Mantinha-se muito preso às temáticas de Nabuco e Zacarias.464

457 GRAHAM, 1973, p. 271. 458 GRAHAM, 1973, p.268.

459 As referências aos autores citados por Richard Graham podem ser conferidas no catálogo da biblioteca pessoal

de Zacarias leiloada após sua morte. Cf. FBN. VASCONCELOS, Zacarias de Goes e. Catálogo da Livraria de

Zacarias de Góes e Vasconcelos a ser leiloado. [S.l.: s.n.], 02/07/1878. Seção de Manuscritos - I-03,11,009. 460 Na década de 1870, Zacarias se envolveu no conflito denominado à época como “Questão Religiosa”. Ferrenho

católico, defendeu judicialmente os bispos de Olinda e do Pará, considerados ultramontanos, e processados pelo próprio imperador por desobediência. Este episódio determina com clareza o caráter “conservador” de Zacarias em relação a religião, onde os dogmas e orientações do Papa não eram passíveis de interpretação no contexto nacional e o catolicismo mantido como religião oficial do Império. Cf. SANTOS, Eduardo. J. N. A batina e o malhete: A 'Questão Religiosa' no Brasil Império sob a perspectiva de fontes documentais. ARS HISTORICA, v. 11, p. 206-217, 2015. Entre outros ver: NEVES, Guilherme Pereira das. Questão Religiosa. In: VAINFAS, Ronaldo. (Org.). Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

461 Ibid., p.271. 462 Ibid., p.272.

463 ACD. 5 de julho de 1861 (apêndice). p.91, grifo nosso. Cf. (Cap. 1) Entre liberais e “moderados”: Zacarias e a

Liga Progressista.

A afirmação de José Murilo de que o Partido Progressista não queria alterações significativas na Constituição contrasta com o programa do gabinete de Zacarias enunciado por Silveira da Mota, que elencou 19 pontos cardeais como meta, sendo que alguns deles interferiam no texto constitucional.465 Destacam-se a responsabilidade dos ministros pelos atos

do Poder Moderador, a liberdade individual como regra, a execução do Ato Adicional, a economia do dinheiro público, reforma da lei eleitoral, reforma judiciária, separação da polícia e justiça, reforma hipotecária e organização do crédito territorial, revisão do Código Comercial e a reforma da Guarda Nacional.466 Temas que foram, em algum momento, propostos ou/e

discutidos no plenário da Câmara entre janeiro e agosto, conforme observa-se no Apêndice B (p. 233).

A este respeito, a política “liberal” de Zacarias e sua relação com a monarquia após 1862 – como também ocorre com Olinda, Saraiva e Sá e Albuquerque – sugere o exercício de um “conservadorismo progressista”, na denominação de Fernandes da Cunha (p. 83), ou de um “conservadorismo moderno”, nas palavras do ministro José Bonifácio (p. 123). Isto é, dizia respeito à prática de um grupo de políticos oriundos do Partido Conservador que flexibilizara orientações do pacto monárquico do Antigo Regime remanescentes na Constituição de 1824, dentre elas a intervenção direta do Monarca na política parlamentar. Mostravam-se favoráveis a alterações na legislação, a exemplo da lei nº 261 de 3 de dezembro de 1841, que reformava o Código de Processo Criminal e estabelecia a separação da polícia judiciária da eleitoral; reformas na legislação da Guarda Nacional promulgada em 1850; no recrutamento; na