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2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS

2.2 PLURILINGUISMO E VARIEDADES EM CONTATO

2.2.1 Diglossia

Outro conceito de grande relevância para nosso estudo é a noção de diglossia. O termo francês diglossie foi utilizado pela primeira vez por Ferguson em 1959 e corresponde a uma

95 „Sprachkontakt ist immer da, wo verschiedene Sprachen oder Varietäten einer Sprache aufeinander treffen, entweder im Kopf eines mehrsprachigen Sprechers oder in mehrsprachigen Gruppen” (RIEHL, 2006, p. 12).

comunidade onde as pessoas utilizam duas ou mais variedades históricas de uma mesma língua em diferentes condições, cada uma desempenhando um papel definido. Para exemplificar esse conceito, Ferguson cita quatro comunidades em situação diglóssica: países árabes (árabe clássico e o coloquial), Suíça (alemão standard e alemão-suíço), Haiti (francês e crioulo) e a Grécia (catarevusa e demótico). Em todas essas comunidades, há uma coexistência de uma variedade alta da língua com uma variedade baixa. No entanto, o uso de cada variedade depende do contexto em que o falante está inserido. A variedade superposta é chamada por ele de variedade H (do inglês high); enquanto que os dialetos regionais, de variedades L (inglês low). A variedade alta usualmente atrai um prestígio social mais amplo (mas com funções sociais restritas), enquanto que a variedade baixa é usada em ambientes familiares e em conversas informais. Conforme Ferguson, existem nove critérios que caracterizam o fenômeno diglóssico: função, prestígio, herança literária, aquisição, padronização, estabilidade, gramática, dicionário e a fonologia. Sendo que a função é o principal critério para a definição do conceito, ou seja, é ela que define se uma variedade é H ou L. Este modelo de diglossia de Ferguson, é muitas vezes, referido como a classic diglossia (MEYERS-SCOTTON, 2006 apud CHIN & WIGGLESWORTH, 2007, p. 113). Segundo Ferguson, uma definição de diglossia mais completa seria:

“DIGLOSSIA is a relatively stable language situation in which, in addition to the primary dialects of the language (which may include a standard or regional standards), there is a very divergent, highly codified (often grammatically more complex) superposed variety, the vehicle of a large and respected body of written literature, either of an earlier period or in another speech community, which is learned largely by formal education and is used for most written and formal spoken purposes but is not used by any sector of the community for ordinary conversation” (FERGUSON, 1971, p. 16).96

Nessa definição, no entanto, Ferguson limitou a diglossia aos casos nos quais a variedade alta (H) e a variedade baixa (L) são pertencentes a línguas com parentesco próximo e na qual a situação de diglossia permanece relativamente estável durante longo tempo: “Diglossia typically persists at least several centuries [...].”97

96 Tradução: “Diglossia é uma situação linguística relativamente estável na qual, além dos dialetos principais da

língua (que podem incluir um padrão ou padrões regionais), há uma variedade superposta, muito divergente, altamente codificada (na maioria das vezes gramaticalmente mais complexa), veículo de um grande e respeitável corpo de literatura escrita, quer de um período anterior, quer de outra comunidade linguística, que é aprendida principalmente através da educação formal e usada na maior parte da escrita e fala formais, mas que não é usada por nenhum setor da comunidade na conversação usual” (FONSECA & NEVES, 1974, p.111). Sublinhado no original.

Para a descrição de situações de língua em contato, por outro lado, faz-se necessário um conceito de diglossia mais abrangente. Fishman (1967) ampliou o conceito de diglossia para línguas sem parentesco próximo, ou melhor, para pares que não são relacionados com comunidades bilíngues. Na situação diglóssica típica de Fishman, as duas línguas na comunidade possuem status e prestígio distintos e têm diferentes funções.

Seguindo as posições de Fishman, Kloss (1976, p. 316) introduz os conceitos de Binnendiglossie (diglossia interna) e Außendiglossie (diglossia externa), sendo a primeira mais próxima ao conceito clássico de Ferguson (duas variedades funcionalmente distintas de uma mesma língua); e a segunda, mais na linha de Fishman, admitindo a distinção funcional de duas línguas. Mackey (1986) reformula esses conceitos, rotulando-os de ‘In-diglossia’ e ‘Out- diglossia’, respectivamente. Em ambos os casos, trata-se de uma aproximação aos conceitos de Ferguson e de Fishman, sem transformações maiores em termos teóricos.

Para Kloss (1976), a definição de diglossia deveria, de acordo com a intenção original de Ferguson, e depois por Fishman, não só expressar uma divisão de função entre duas línguas ou formas linguísticas, mas, ao mesmo tempo, expressar um alto grau de íntima interdependência simbiótica de ambas as línguas quanto ao uso que faz uma determinada classe social ou um grupo étnico.

Embora ambas – a diglossia clássica e a variação diglóssica de Fishman – sejam usadas em duas esferas separadas de influência, a diferença entre elas é fundamental. Meyers-Scotton (2006 apud CHIN & WIGGLESWORTH, 2007, p. 114-115) diz a respeito:

“Under classic diglossia, at least everyone in the community speaks the same L variety as a home language. That is, the L variety is everyone’s L1. The High variety is always a variety that is learned trough special study; it is not simply acquired as part of a natural process in the home. Some sufficient schooling is the gateway to potential power. Under extended diglossia, everyone in the community speaks his or her L1, of course, and it is acquired in the home. But here’s the catch: For some people the L1 is also the h variety, but for others, their L1 is only an l variety. Thus, by the accident of family, some people have more access to participating in status-raising interactions” (MEYERS-SCOTTON, 2006, p.87 apud CHIN & WIGGLESWORTH, 2007, p.114-115).98

98 Tradução: Na visão diglóssica clássica, todos na comunidade falam a mesma variedade L(ow) como a língua de

casa. Isto é, a variedade L(ow)de todos é L1. A variedade elevada é sempre uma variedade que é aprendida através de um estudo especial; não é adquirida simplesmente como parte de um processo natural. Uma educação suficiente é a passagem ao poder potencial. Na visão da diglossia mais ampla, todos na comunidade falam a L1 naturalmente, a qual é adquirida em casa. Porém, aqui está a questão: para algumas pessoas, a L1 é igualmente a variedade H; mas para outras, sua L1 é somente a variedade L. Assim, dependendo da família, algumas pessoas têm mais acesso à participação em interações que elevam o status.

Meyers-Scotton ainda acrescenta que a diglossia estável na situação prolongada é difícil de ser preservada, porque envolve manter L199 como uma variedade baixa ao lado da L2, a qual é a variedade de prestígio (high variety). Há alguma evidência que, em tais situações diglóssicas, a variedade baixa é mais suscetível à substituição como o status baixo; e o prestígio da variedade baixa influencia finalmente as atitudes dos falantes para o uso da língua de uma maneira negativa. Clyne (2006 apud CHIN & WIGGLESWORTH, 2007, p. 115) identifica a diglossia no país de origem dos emigrantes como um fator que contribui para o deslocamento da língua nas comunidades imigrantes.

A divisão de variedades em H ou L, na qual está implícita a diferença de atitude dos falantes em relação à língua de prestígio e à língua com menos status (muitas vezes, caracterizada como dialeto ou língua minoritária), no entanto, nem sempre é adequada para a descrição da divisão de funções entre as línguas. Por esse motivo, Auburger (1979) desaprova a questão de colocar de antemão as variedades H e L como partes integrantes de uma situação diglóssica:

„Dieses [...] definitorische Bestimmungsstück, einer high- vs low-Bewertung ist angesichts der empirischen Vielfalt in der Bewertung und Hierarchisierung der in einem Polyglossiekomplex enthaltenen Sprachen besser unabhängig vom Moment der produktionslinguistischen Spezialisierung zu behandeln und als solches nicht bereits definitorisch mit dem Begriff einer Polyglossie zu setzen“ (AUBURGER, 1979, p. 143).

Neste sentido, o critério imposto por Ferguson, de que a divisão de funções de uma situação diglóssica deve perdurar por séculos, não é viável para a caracterização de divisão de funções entre línguas em situações de línguas em contato.

Segundo Steffen (2006, p. 47), fatores como a percepção de que uma determinada variedade é mais adequada para um determinado âmbito, como também o uso exclusivo dessa variedade nesse contexto são fatores que se fortalecem mutuamente. Afinal, algumas línguas em comunidades multilíngues são aprendidas somente em determinados âmbitos e, por isso, são também tradicionalmente mais usadas em tais contextos.

Ainda de acordo com Kloss (1976, p. 321), a diglossia, como uma sólida divisão de função entre os membros de um grupo, é teoricamente apenas um caso especial de poliglossia, apesar de a triglossia e a quadriglossia ocorrerem raramente. No caso das comunidades menonitas

no Brasil, somente a distribuição dos âmbitos de cada uma das línguas é mais complexa. Lembrando que podemos diferenciar, entre as funções específicas, as línguas trazidas pelos próprios imigrantes menonitas (Plautdietsch e Hochdeutsch) e aquela língua que resultou do contato com a sociedade hospedeira. No primeiro caso, referimo-nos a uma antiga diglossia, a qual pertence a determinadas áreas da comunidade, enquanto os outros âmbitos foram preenchidos pela “nova” língua do país de imigração.

Na descrição da distribuição dos âmbitos das diversas comunidades menonitas ficará evidente que, de forma alguma, podemos analisar a diglossia como uma estrutura estável ou rígida (dependendo de cada comunidade em si), mas que, sobretudo, pode vir a ser corrompida e deslocada.

Vale destacar, por fim, que também as diferentes línguas e variedades usadas pelas diversas comunidades menonitas em estudo podem ser classificadas em variedades altas (high - consideradas de prestígio) e variedades baixas (low - consideradas com menos status), conforme mostra o quadro abaixo:

Variedades linguísticas usadas nas comunidades menonitas do Rio Grande do Sul e Paraná

Variedades linguísticas usadas na comunidade menonita de Goiás

H¹ = PT H¹ = PT

H² = HD H² = EN

H³ = HDm H³= ENm

L¹ = PD L¹= PD

Quadro 3 - Variedades linguísticas usadas de forma diglóssica em comunidades menonitas Legenda das abreviações:

H = High (variedade alta) L = Low (variedade baixa)

HD = Hochdeutsch (alemão standard da Alemanha) EN = English (inglês standard dos EUA e Canadá) PT = Português standard (português padrão)

HDm = Hochdeutsch menonita (alemão standard local / menonita) PD = Plautdietsch (variedade substandard menonita)

ENm = English menonita (inglês standard local / menonita)

Conforme podemos observar no quadro acima, as comunidades menonitas no Brasil usam diferentes variedades linguísticas de forma diglóssica. No RS e PR, o português standard, o

Hochdeutsch standard, bem como o Hochdeutsch menonita são considerados pelos seus falantes variedades altas e usufruem de prestígio. Já na comunidade menonita de Goiás, o português standard, o inglês standard, bem como o inglês menonita são considerados variedades altas. Chama atenção que, em todas as comunidades menonitas do Brasil, somente o Plautdietsch é considerado como variedade baixa, de menor prestígio, usada somente em contextos informais.