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3. Dignidade humana como conceito jurídico

3.9 Titularidade da dignidade humana

3.9.1 Dignidade humana post mortem?

Resta saber, então, se há uma tutela pós-morte da dignidade humana. Cumpre esclarecer, nesse sentido, que a dignidade humana possui estreita relação com as disposições post mortem. Se a dignidade humana funda um direito à autonomia, é certo que se garante, àquele que vive, a faculdade de concertar, para após sua morte, a organização patrimonial daquilo que é sua propriedade. Igualmente, não se pode usar, indiscriminadamente, os atributos da personalidade de alguém, mesmo após sua morte. Em vida, adotam-se posturas e tomam-se medidas para moldar a visão da posteridade. Se alguém, por exemplo, escolhe esconder, em vida, um dado segredo, estar-se-ia a violar aquilo que esse alguém desejou em vida, se se revelasse tal segredo. Com efeito, em alguns casos, a ordem jurídica, legitimamente, opõe à coletividade a obrigação de respeitar vontades expressadas em vida por pessoas que já morreram.

É possível notar, porquanto, que a dignidade humana, como esclarece PETER BADURA (2012, p. 34), implica uma “tutela ‘pós-morte’ da personalidade” („postmortalen“

Persönlichkeitsschutz), porque certos atributos do indivíduo permanecem protegidos juridicamente, a despeito do fim da vida. Isso ocorre, amiúde, com características imateriais, como nome, honra, criações artísticas do morto, etc. Essas esferas continuam a receber resguardo por parte do Estado, mesmo que seu titular já não seja sujeito de direitos.

Observa-se esse fato não porque o antigo titular desses atributos tenha um direito a isso, mas porque permanece a obrigação imposta pelo Estado. A dignidade humana, enquanto direito fundamental, finda com a morte de um ser humano. Contudo, ela pode gerar obrigações de proteção na forma de efeitos posteriores (nachwirkende

Schutzpflichten) (JARASS; PIEROTH, 2011, p. 43). Entende-se ser legítimo que o Estado imponha respeito àquilo que um dado ser humano estipulou para a sua própria vida e para os atributos da sua personalidade. O direito do indivíduo perdura apenas durante a vida, mas as obrigações por ele geradas protraem-se no tempo, para após o falecimento.

Não se trata de um “direito pós-morte à dignidade humana”, mas sim de reconhecer o valor de validade moral, pessoal e social que a pessoa adquiriu durante sua própria experiência ou modo de vida (der sittliche, personale und soziale Geltungswert, den die

Person durch ihre eigene Lebensleistung erworben hat).25 Por via de consequência, esse

25 Nesse contexto, são claras as observações de PETER BADURA (2012, p. 34): “Die in Art. 1 Abs. 1 GG aller

staatlichen Gewalt auferlegte Verpflichtung, dem Einzelnen Schutz gegen Angriffe auf seine Menschenwürde zu gewähren, endet nicht mit dem Tode. Es würde mit dem Gebot der Unverletzlichkeit der Würde des Menschen unvereinbar sein, wenn der Mensch, dem Würde kraft seines Personseins zukommt, in diesem allgemeinen Achtungsanspruch auch nach seinem Tode herabgewürdigt oder erniedrigt werden dürfte. Diese Schutzpflicht kann jedoch als Teil des Persönlichkeitsrechts, das nur einer lebenden Person zustehen

valor faz com que aquilo decidido em vida, por um sujeito autodeterminado, seja vinculativo mesmo após a sua morte.

Processualmente, será sempre necessário que uma pessoa ainda viva reclame ou imponha o cumprimento de tais obrigações. Geralmente, fá-lo-á a família do morto ou algum outro legitimado, a quem interessa ver cumpridos os desejos do falecido. Eventualmente, inclusive, é possível que esses mesmos legitimados tenham, eles próprios, um direito subjetivo à implementação do que queria o morto. É o que poderá ocorrer com o herdeiro testamentário. Todavia, mesmo um juiz da vara de sucessões ou um promotor de justiça, atuando como custos legis, poderá defender a imposição das obrigações testamentárias.

Nesse sentido, ainda que não haja um direito subjetivo independente, de titularidade de alguém que ainda esteja vivo, parece temerário defender a existência do direito de um morto, uma vez que este não é mais sujeito ou pessoa, não possui mais vida, vontade, autodeterminação, prerrogativas, relações jurídicas, etc.26

Nada impede, porém, que o vivo estipule, com base em sua autonomia da vontade e na órbita jurídica sob a qual ele possui controle, deveres cujos efeitos subsistirão mesmo após sua morte ou ainda que só passem a ter efetividade, precisamente, após seu falecimento.

Também não parece problemático defender que o Estado imponha deveres para a conservação de cadáveres. Não se trata de um direito de um morto, mas sim de um dever

dos vivos. Dessa maneira, o direito fundamental à dignidade humana, corolário do art. 1º,

kann, nicht nach dem Tode als Recht des Verstorbenen fortbestehen und ist als höchstpersönliches Recht auch nicht übertragbar. Gleichwohl sind in erster Linie der vom Verstorbenen zu Lebzeiten Berufene und daneben seine nahen Angehörigen als „Wahrnehmungsberechtigte“ eines „postmortalen“ Persönlichkeitsschutzes anzusehen. Dieser Schutz kann gegen eine grobe Entstellung des durch die Lebensstellung erworbenen Geltungsanspruchs des Verstorbenen in Anspruch genommen werden Die Schutzwirkungen des postmortalen Persönlichkeitsrechts sind nicht identisch mit denen, die sich aus Art. 2 Abs. 1 in Verb. mit Art. 1 Abs. 1 GG für den Schutz lebender Personen ergeben; denn das auf die freie Entfaltung der Persönlichkeit gerichtete Grundrecht des Art. 2 Abs. 1 GG setzt die Esistenz einer wenigstens potentiell oder zukünftig handlungsfähigen Person, also eines lebenden Menschen als unabdingbar voraus. Postmortal geschützt wird – kraft des Art. 1 Abs. 1 GG – zum einen der allgemeine Achtungsanspruch der dem Menschen als solchem zusteht, zum anderen der sittliche, personale und soziale Geltungswert, den die Person durch ihre eigene Lebensleistung erworben hat (BVerfGE 30, 173/194 – Mephisto; BVerfG DVBl. 2001, 985 – Wilhelm Kaisen; BGHZ 50, 133/137 ff. – Mephisto; BGH JZ 2009, 212 – „Ehrensache“, kunstspezifische Betrachtung eines Theaterstücks mit Wirklichkeitsbezug unter Vermengung tatsächlicher und fiktiver Schilderungen, Anm. C. AHRENS, ebd., S. 214).”

26 Nesse sentido, é mister rechaçar aquelas visões quixotescas e insustentáveis conceitualmente que pregam,

de maneira intransigente, haver um “direito além da vida”, ao partirem, ainda que implícita e entimematicamente, da discutível premissa de que a toda obrigação corresponde um direito (cf. MIGLIORE, 2009, passim).

III, da CF, assegura uma proteção contra agressões que transcende à morte, sem que isso importe um direito post mortem.