• Nenhum resultado encontrado

3. Dignidade humana como conceito jurídico

3.10 Liberdade de expressão, dignidade humana e o hate speech

3.10.10 Liberdade de expressão abrange até mesmo os críticos da democracia

Mesmo os críticos da democracia (e.g. defensores de uma monarquia absolutista) merecem ampla tutela do direito de expressão do pensamento.31 Somente no caso de ameaça à continuidade democrática e aos direitos fundamentais, o que se revela bastante extremo, é que o contrário poderá ocorrer. Como coloca KELSEN (1932, p. 237), antecipando a derrocada iminente da República de Weimar, a democracia é aquela forma de Estado que menos se defende contra seus opositores. Parece ser seu trágico destino nutrir em seu próprio seio até mesmo o seu pior inimigo (Demokratie ist diejenige

Staatsform, die sich am wenigsten gegen ihre Gegner wehrt. Es scheint ihr tragisches Schicksal zu sein, daß sie auch ihren ärgsten Feind an ihrer eigenen Brust nähren muß.).

Percebe-se, porquanto, que a democracia toma para si um risco e que o deve fazer, sob pena de transvestir-se de outra forma de Estado. A Constituição de Weimar (rectior:

Verfassung des Deutschen Reichs) deu, a duras penas, certas lições à doutrina constitucionalista. Dentre elas, a de que a neutralidade estatal não deve ser absoluta e que

31 São conhecidas e multicitadas as palavras de JOHN STUART MILL (1859,p. 26), no insigne On Liberty, no

qual ele chega a algumas conclusões diversas do utilitarismo hard core de JEREMY BENTHAM:“Strange it is, that men should admit the validity of the arguments for free discussion, but object to their being ‘pushed to an extreme’; not seeing that unless the reasons are good for an extreme case, they are not good for any case. Strange that they should imagine that they are not assuming infallibility when they acknowledge that there should be free discussion on all subjects which can possibly be doubtful, but think that some particular principle or doctrine should be forbidden to be questioned because it is so certain, that is, because they are certain that it is certain. To call any proposition certain, while there is any one who would deny its certainty if permitted, but who is not permitted, is to assume that we ourselves, and those who agree with us, are the judges of certainty, and judges without hearing the other side.” STUART MILL(1859, p. 21) diz, igualmente, o seguinte: “If all mankind minus one, were of one opinion, and only one person were of the contrary

opinion, mankind would be no more justified in silencing that one person, than he, if he had the power, would be justified in silencing mankind.” Vale indicar que o harm principle de STUART MILL (1859, p. 91) funda, a seu modo, uma priority of liberty, de maneira levemente semelhante à dignidade humana, ainda que isso deva ser dito cum grano salis. Sobre o uso do harm principle no que concerne à pornografia, na jurisprudência dos tribunais ingleses, cf. STONE, 2012, pp. 398ss.)

se devem tomar certas cautelas contra os abusos das maiorias transitórias. Daí a importância dos direitos fundamentais e da sua coerente tutela (KELSEN, 1920, p. 9):

Die Grundrechte werden zu einem wesentlichen Requisit jeder demokratischen Verfassung. Sie dienen vor allem als Schutzwall gegen den Herrschaftsmißbrauch, der seitens eines absoluten Monarchen nicht mehr zu befürchten ist als seitens der Majorität, dem König der Demokratie. So fungieren die Grundrechte der Demokratie als Minoritätsschutz und sichern die Gleichberechtigung auch demjenigen, der nicht die politische, religiöse oder nationale Ueberzeugung der Mehrheit teilt.

[Os direitos fundamentais tornam-se um requisito essencial de toda constituição democrática. Eles servem, sobretudo, como muro de proteção contra o abuso do domínio, o qual, se, por um lado, não deve mais ser temido por parte do rei, deve sê-lo por parte da maioria, o rei da democracia. Portanto, os direitos fundamentais da democracia funcionam como proteção da minoria e asseguram igual legitimidade até mesmo àquele que não partilha da convicção política, religiosa ou nacional da maioria.]

Nesse contexto, nas palavras de ROBERT CHR. VAN OOYEN (2003, p. 131), interpretando HANS KELSEN, revela-se de crucial importância o papel da Jurisdição Constitucional, a ser entendida não como uma contradição face à democracia, mas sim como garante dela; essa visão, completamente nova, de ligação entre a democracia pluralista e a Jurisdição Constitucional, que ganha sua genuína expressão na competência universal de controle de normas, como postulada por KELSEN (Ein Verfassungsgericht

nicht als Widerspruch sondern als Garanten der Demokratie zu begreifen, diese vollständig neue Sicht der Verbindung von pluralistischer Demokratie und Verfassungsgerichtsbarkeit findet ihre genuinen Ausdruck in der von Kelsen postulierten Kompetenz allgemeiner Normenkontrolle).

KELSEN, em seu famoso Referat sobre a essência ou natureza e o desenvolvimento da Jurisdição Constitucional (também chamada, em alemão, quase que de maneira intercambiável, de Jurisdição Estatal), teve a oportunidade de evidenciar e sumarizar, de maneira notável, o papel do controle de constitucionalidade na defesa das minorias, missão essa que, em algumas oportunidades, pode implicar diversos onera ao Tribunal Constitucional, mas que, não obstante, deve por ele ser devidamente desempenhada.

Diz-nos o jusfilósofo austríaco, na conferência proferida em 1928 (KELSEN, 1929, p. 80):

So vor allem für die demokratische Republik. Zu deren Existenzbedingungen gehören: Kontrolleinrichtungen. (…) Indem diese

das verfassungmäßige Zustandekommen und insbesondere auch die Verfassungsmässißkeit des Inhalts der Gesetze sichert, leistet sie die Funktion eines wirksamen Schutzes der Minorität gegen Übergriffe der Majorität, deren Herrschaft nur dadurch erträglich wird, daß sie rechtmäßig ausgeübt wird. Die spezifische Verfassungsform, die im wesentlichen darin zu bestehen pflegt, daß die Verfassungsänderung an eine erhöhte Majorität gebunden ist, bedeutet: daß gewisse fundamentale Fragen nur unter Mitwirkung der Minorität gelöst werden können. Die einfache Majorität hat – wenigstens in gewissen Belangen – nicht das Recht, ihren Willen der Minorität aufzuzwingen. Nur durch ein verfassungswidriges, weil nur mit einfacher Majorität zustande gekommenes Gesetz kann gegen den Willen der Minorität in deren verfassungsmäßig geschützte Interessensphäre eingegriffen werden. Die Verfassungsmäßigkeit der Gesetze ist daher ein eminentes Interesse der Minorität; gleichgültig, welcher Art diese Minorität ist, ob es sich um eine klassenmäßige, eine nationale oder religiöse Minorität handelt, deren Interessen durch die Verfassung in irgendeiner Weise geschützt sind.

Dies gilt insbesondere für den Falle einer Verschiebung des Verhältnisses zwischen Majorität und Minorität, wenn eine Majorität zur Minorität wird, aber noch starck genug bleibt, um jenen qualifizierten Beschluß zu verhindern, der zu einer legalen Verfassungsänderung erforderlich ist. Wenn man das Wesen der Demokratie nicht in einer schrankenlosen Majoritätsherrschaft, sondern in dem steten Kompromiß zwischen den im Parlament durch Majorität und Minorität vertretenen Volksgruppen erblickt, dann ist die Verfassungsgerichtsbarkeit ein besonders geeignetes Mittel, diese Idee zu verwirklichen. In der Hand der Minorität kann schon die bloße Drohung mit der Anfechtung vor

dem Verfassungsgericht ein geeignetes Instrument sein,

verfassungswidrige Interessenverletzungen durch die Majorität, letzten Endes: Diktatur der Majorität zu verhindern, die dem sozialen Frieden nicht minder gefählich ist, wie die Diktatur einer Minderheit.

[Logo, acima de tudo, para a república democrática, cujas condições de existência incluem instituições de controle. (...) Por meio delas, enquanto assegura a formação constitucional [das leis] e, em especial, também a constitucionalidade do conteúdo das leis, serve à função de uma proteção efetiva da minoria contra ataques da maioria, cujo domínio apenas se torna tolerável, se exercido conforme o direito. A forma de Constituição específica que, em essência, consiste em manter a alteração constitucional atrelada a uma maioria mais elevada, significa: que certas questões fundamentais apenas podem ser resolvidas com a participação da minoria. A maioria simples não tem – ao menos em algumas matérias – o direito de impor sua vontade à minoria. Apenas por meio de uma lei inconstitucional (porque feita por meio de uma maioria simples), pode-se intervir contra a vontade da minoria, em uma esfera de interesses constitucionalmente protegida. A constitucionalidade das leis é, porquanto, um eminente interesse da minoria; independentemente de que tipo de minoria se trate: uma de classe, religiosa, nacional, cujos interesses, de alguma maneira, estejam protegidos por meio da Constituição.

Isso vale especialmente para os casos de deslocamento das relações entre maioria e minoria, em que uma maioria se torna minoria, porém mantém- se forte o suficiente para impedir qualquer decisão qualificada, legalmente exigível para uma mudança da Constituição. Se se vislumbra

a essência da democracia não no domínio ilimitado da maioria, mas sim na constante transigência ou compromisso entre os grupos populares que representam a maioria e a minoria, então a Jurisdição Constitucional é um meio especialmente adequado para desenvolver tal ideia. Nas mãos da minoria, a mera ameaça de questionamento perante o Tribunal Constitucional pode ser um meio adequado para impedir lesões inconstitucionais a interesses, por meio da maioria, e [impedir], em derradeira instância, uma ditadura da maioria, a qual não é menos perigosa à paz social do que uma ditadura de uma minoria.]

O excerto deixa muito claro o papel central que a jurisdição constitucional pode e deve desempenhar no que diz respeito à tutela de minorias.