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5. A dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: um caso de trivialização e constitucionalização simbólica?

5.6 Estudo empírico do conceito de dignidade humana na jurisprudência do STF

5.6.9 Dignidade humana e uniões homoafetivas

Por intermédio da ADPF 132, o STF conferiu interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723 do Código Civil, a fim de garantir a possibilidade de casais homoafetivos constituírem uniões estáveis, tal qual casais heterossexuais. Alega-se que o STF teria extrapolado vários limites ao decidir dessa forma e que sua decisão seria evidente exemplo de ativismo judicial, consistente em “reescrever” o parágrafo 3º do art. 226 da Constituição Federal. Há argumentos defensáveis, entretanto, para afastar a tese de que o dispositivo mencionado vedaria o reconhecimento de uniões homoafetivas. Alguns deles estão, inclusive, registrados no acórdão.

Em todo caso, não se pode deixar de registrar que, ao menos em um primeiro olhar, a decisão aparenta ser um tanto excêntrica, já que, por meio dela, o STF deu interpretação conforme a Constituição a um artigo do Código Civil que é praticamente idêntico a um artigo da própria Constituição, o que soa prepóstero.

Nada disso, contudo, é relevante para o presente texto. Aqui, mostra-se central perquirir sobre o uso do conceito de dignidade humana pelo STF quando do julgamento da ADPF 132.

Há vários pontos da decisão que recorrem à dignidade humana como fundamento para exigir do Estado a obrigação de tratar igualmente casais homossexuais e heterossexuais. No voto do MIN. AYRES BRITTO, relator do caso, deixou-se claro que a dignidade humana implica autonomia da vontade para definir as próprias preferências sexuais e para buscar a própria felicidade. Assentou-se, naquela ocasião, que uniões homoafetivas não violam direitos de terceiro e que não são vedadas por qualquer norma do direito brasileiro.

Se for assim, então, nos termos do MIN. AYRES BRITTO, a obrigação de o legislador reconhecer as uniões homoafetivas decorre da missão maior do Estado de garantir o “(...) livre desenvolvimento da personalidade de todos os indivíduos, permitindo que cada um realize os seus projetos pessoais lícitos.”103 Todo projeto de vida, salvo se causar efetivo dano a outros, é “(...) merecedor de respeito, consideração e reconhecimento, inclusive jurídico.”104

Não há dúvidas de que várias citações doutrinárias, inclusive de filósofos como Nietzsche e Hegel, constantes do acórdão da ADPF 132, são extremamente questionáveis e descontextualizadas, senão estapafúrdias. Contudo, salvo algumas inapropriadas mostras de falsa erudição, no que diz respeito ao uso do conceito de dignidade humana, o caso em questão parece ser um dos felizes exemplos em que o STF se valeu da dignidade da pessoa humana de maneira coerente e lúcida.

Em apertada síntese, o argumento de que lançou mão a maioria dos Ministros vem do fato de que, em geral, a dignidade humana garante uma autodeterminação sexual, isto é, quando se trata da esfera íntima e sexual de um indivíduo adulto e capaz, é imperioso garantir um amplo grau de autonomia, como ficou registrado no item 3.2, supra.

Poder-se-ia dizer que não reconhecer uniões estáveis não interfere na vida sexual ou afetiva das pessoas. Ocorre, todavia, que a prerrogativa de concertar as próprias relações jurídicas é um atributo de todo sujeito livre e racional. Daí a importância que possuem a

103 cf. Voto do MIN.AYRES BRITTO na ADPF 132. 104 cf. Voto do MIN.AYRES BRITTO na ADPF 132.

liberdade contratual, o direito à propriedade e a autonomia da vontade em sentido amplo, nos termos do item 4.3, supra.

Negar que qualquer indivíduo se case é algo lícito ao legislador? Instituir um regime único e obrigatório de regime de bens para todos, indistintamente, é permitido ao legislador? Ao que nos parece, ceteris paribus, não. Isso importaria agredir a prerrogativa de autodeterminação ínsita a cada um. Em certas esferas da vida do indivíduo, a ingerência estatal está subordinada a onera argumentandi tão graves, que ela praticamente nunca ocorre (ALEXY, 1994, p. 272) ou, pelo menos, não em algumas formas extremas, como acabar, tout court, com a instituição casamento.

Nas atuais circunstâncias fáticas e jurídicas, acabar com o casamento seria desproporcional, por onerar excessivamente a garantia constitucional de autonomia, sem favorecer outro interesse de envergadura constitucional, seja ele coletivo ou individual, em igual medida.

Por conseguinte, o cerne da questão em torno das uniões homoafetivas é saber, se, de fato, elas são análogas às uniões heterossexuais em tudo, salvo a diversidade do sexo das partes envolvidas. Se o forem, tudo indica que deve ser garantido aos homossexuais o direito de celebrar uniões estáveis e casamentos. Ambos os institutos trazem consigo uma série de possibilidades jurídicas que fortalecem os laços afetivos e dão segurança patrimonial.

É por isso que toda argumentação em favor das uniões homoafetivas tem o dever de rebater e refutar as teses que advogam ser a união homoafetiva essencialmente distinta da união estável entre heterossexuais. Uma vez feito isso, nenhum argumento mais é necessário, porque o ônus argumentativo cabe àquele que quer introduzir ou manter o tratamento desigual (ALEXY, 1994, p. 390). Logo, se se trata de uniões iguais em praticamente tudo, então a dignidade humana - que garante a autonomia, sobretudo em esferas existenciais, como a religião e a sexualidade - serve, automaticamente, para obrigar o Estado a estender os benefícios concedidos aos casais heterossexuais àqueles homoafetivos. Configurar-se-ia, nessa hipótese, uma clara omissão parcial do art. 1.723 do Código Civil.

Note-se que a questão, mais do que jurídica, é fático-ético-filosófica. A divergência está em saber se, entre os dois tipos de uniões, há alguma diferença relevante que justifique um tratamento diverso. Haveria, por exemplo, algum alentado interesse coletivo que

justificasse o não reconhecimento de uniões homoafetivas? Evidentemente, o STF respondeu essa pergunta negativamente.

5.6.10 Dignidade humana e mínimo existencial: o benefício de prestação