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3 ESPECIFICIDADES DO PROGRAMA MAIS CULTURA NAS ESCOLAS NOS

4.3 A materialização da parceria entre escolas públicas e agentes culturais no

4.4.1 Dilemas e conflitos das parcerias público-privadas no âmbito do Programa Mais

As parcerias para efetivação do PMCE em Maceió, embora burocraticamente intermediadas pela SEMED, colocaram frente a frente, de fato, professoras da educação básica de escolas da rede pública e agentes da cultura popular. Essas parcerias foram permeadas por conflitos, revelando relações de poder existentes entre os envolvidos.

Considerando o conjunto das parcerias estabelecidas no âmbito do PMCE em Maceió, foi reafirmada a interpretação da Representante da SEMED:

[...] não foi uma coisa muito fácil, muito pacífica, essa questão, você sabe que a questão do poder é muito forte, né, essa questão de poder é muito, e chegar um artista dentro da escola nem sempre foi pacífico isso [...] (Representante da

SEMED).

Enfatiza-se que os parceiros públicos e privados envolvidos nos projetos do PMCE pertenciam a duas categorias da mesma classe: a classe subalterna. Mas a reprodução da lógica empresarial, de patrão e empregado, sobrepujou o movimento de colaboração e de apoio mútuo que poderia ocorrer entre sujeitos da mesma classe. Como exemplo, a fala de um dos agentes culturais é significativa: “[...] porque eles queriam, eu tive que assinar ponto. Eu

disse: ‘Mas eu não sou funcionário daqui não!’. Mas pra receber... [...]” (ICP2). A utilização

de estratégias de controle da atuação dos agentes de cultura é condizente com a ideia de que algumas coordenadoras do PMCE ressaltaram sua atuação como contratantes de terceiros, nos moldes da perspectiva gerencial, como ressaltado anteriormente neste capítulo. Esse caráter intraclasse, portanto, vai marcar os conflitos identificados na experiência do Programa Mais Cultura nas Escolas em Maceió.

Do ponto de vista técnico-operacional, as tensões na execução do Programa Mais Cultura nas Escolas, identificadas principalmente a partir dos relatos dos entrevistados, recaíam direta ou indiretamente sobre o financiamento das atividades. Esse item acabou ficando restrito à disputa entre interesses institucionais e individuais, ou seja, entre as escolas públicas e os agentes culturais, respectivamente, ou, utilizando os termos oficiais, entre as Unidades Executoras Próprias e Iniciativas Culturais Parcerias. Independentemente da nomenclatura, fato é que as escolas públicas são carentes de recursos financeiros diante da demanda exigida pela cultura escolar, bem como agentes e grupos culturais enfrentam imensa dificuldade de conseguir financiamento público para as atividades culturais que desenvolvem. Dessa maneira, a execução do Programa Mais Cultura nas Escolas foi marcada por conflitos – principalmente no que diz respeito ao financiamento do programa – focados em dois pontos fundamentais: definição do valor a ser pago ao agente cultural e gerenciamento dos recursos do programa.

A respeito do primeiro ponto, o conflito ocorreu pelo questionamento e resistência do pagamento, pelos profissionais que coordenaram os projetos do PMCE nas escolas, da remuneração dos agentes culturais, pois avaliavam que o valor estava alto, como ilustram estes relatos:

Teve até o processo da SEMED quando chegou a verba, a parte dele [agente cultural], que ele colocou, acharam alta, né [...] (P2);

[...] quando o projeto [foi] aprovado, aí coordenação de lá [da escola] achou que o que eu tinha colocado lá como ganho era muito pra mim, entendeu? Eu disse: “Não, nada a ver, se fosse muito eles [técnicos do MEC que aprovaram o projeto] teriam cortado, a gente colocou dentro é, é, dos limites” [...] (ICP2).

Esse conflito expôs uma contradição em relação ao caráter do PMCE como política de financiamento do trabalho do agente cultural: o questionamento do valor da remuneração dos parceiros privados por parte dos parceiros públicos dividiu espaço com o fato de que o pagamento realizado aos profissionais da cultura ficou abaixo de suprir suas necessidades: “[...] foi pouco dinheiro para o monitor. Ele mesmo [O agente cultural] disse que um mestre,

que um mestre graduado ganha mais” (P3).

Mas foi o que a gente tinha, né, porque a gente trabalha com o real e o ideal. O que seria ideal? Que ele recebesse 10 mil reais, o salário pertinente a 8 meses de trabalho. E o que é real? É esse que nós temos, então ele ganhou na época, parece que foi 5 mil [para 8 meses de projeto], só pra o monitor (P3).

Parece importante explicitar que os valores pagos aos agentes culturais estavam bem abaixo da remuneração dos profissionais da educação, como indica o relato a seguir:

[...] teve escolas que optou que ia pagar mensal ao autor só 600 reais, como foi o caso [de uma determinada escola], entendeu? Enquanto outras escolas resolveram pagar 1000 reais mensais aos autores, somente a escola [citada] resolveu pagar 600 reais ao autor. Inclusive, ele me reclamou muito por isso, porque soube que os outros ganhavam muito mais do que ele (Representante da SEMED).

À baixa remuneração se pode acrescentar a ocorrência de descontos típicos de uma relação de compra e venda de força de trabalho que inclui pagamento de serviços a terceiros, diminuindo ainda mais o valor recebido pelos agentes culturais. Assim, como relatou ICP4: “[...] daquele valor total era retirado o percentual de imposto, tinha o imposto federal e tinha

um imposto estadual, estadual não, perdão, municipal. Acho que era isso, tinha o imposto federal e o imposto municipal”.

O reconhecimento da necessidade de ampliação dos recursos para financiamento das atividades do PMCE, elemento indicado por vários entrevistados, não contemplava, necessariamente, a remuneração dos agentes culturais, como expressou um deles:

[...] tem que ter um projeto como esse pra poder custear, pra poder alavancar [atividades culturais nas escolas]. Não falo nem da questão da remuneração, porque muita das vezes o trabalho é mais voluntário, às vezes, a gente tem uma ajuda de custo, mas não é algo que vai manter ou vai deixar aquela pessoa, mensalmente, sustentada por aquele valor, mas é mais mesmo o custo do projeto

Uma justificativa possível para esse tipo de pensamento é a visão do trabalho dos agentes culturais e, por extensão, dos artistas em geral, “[...] como uma missão, como um caminho de autorrealização e de intensa satisfação pessoal” (PITOMBO; BARBOSA, 2017, p. 178) e, por isso, dissociado da questão econômica, isto é, de um retorno financeiro.

O segundo ponto de conflito foi o gerenciamento dos recursos do programa. Como o dinheiro foi direto para a conta de cada escola, devido ao formato do PDDE, o manuseio do recurso ficou restrito à escola. Apesar da construção coletiva do orçamento do projeto cultural da escola constar como uma das orientações do PMCE (BRASIL, 2013a), a prática ficou distante disso, devido à escola ter assumido o papel de gerência do recurso: “[...] o nó todinho

é porque o recurso era administrado por eles [pela escola] [...]” (ICP2).

Fora a discussão do valor da remuneração dos agentes culturais por ocasião da elaboração dos projetos, os representantes das Iniciativas Culturais Parceiras entrevistados afirmaram que não se envolveram com as decisões do uso do recurso, quando questionados sobre o tema:

Não, não, isso porque o dinheiro não veio pra mim, o dinheiro, o recurso foi administrado pela escola, por isso que deu esse problema todo (ICP2);

22 mil, tanto ficaria pra escola tanto para o parceiro, né, e aí teve algumas vezes que a gente demorou pra receber, tivemos alguns probleminhas com relação com a escola por causa do dinheiro, ficamos uns meses sem receber, num foi? (ICP1.1);

A gente teve alguns problemazinhos [financeiros]... mais de gerenciamento lá da escola (ICP1.2.);

[...] Existia a coordenadora do projeto, que hoje é a atual diretora da escola, que era quem trabalhava essa questão mais burocrática do projeto, de organização financeira do projeto, da documentação e organizava toda a pasta” (ICP4); [...] na hora de pagar, eu só escolhia a pessoa [agente cultural], né, mas quem pagava ela era [diretora da escola]. A gente contava as aulas que tinham dado naquele mês, aí eles recebiam [integrantes do grupo de maracatu], entendeu? A diretora era quem resolvia essa questão, pagava a minha parte (ICP8).

O não envolvimento dos agentes culturais no gerenciamento dos recursos do PMCE revelou a centralização das decisões financeiras na gestão da escola. De fato, segundo informaram as coordenações do PMCE nas escolas, embora este tipo de gestão coubesse aos conselhos escolares, que representavam a UEx (BRASIL, 2013b), os operadores financeiros do programa, no âmbito das escolas, eram profissionais que atuavam em cargos de direção ou vice-direção. As coordenadoras do PMCE nas escolas, quando se envolviam com o

gerenciamento de recursos, o faziam pelo fato de terem assento nos conselhos escolares, como era o caso de P6, que também assumia a função de tesoureira do coletivo de representantes da escola em que atuava.

A centralização indicada acima não foi capaz de impedir que atrasos nas compras e pagamentos referentes ao PMCE ocorressem, por diversas causas: mudanças nas representações dos conselhos escolares; desencontro de datas e de informações sobre pagamentos das parcelas do programa; problemas quanto à prestação de contas, para citar alguns exemplos.

As repercussões das situações narradas acima sobre o desenvolvimento dos projetos tiveram como ponto comum o fato de terem demandado mais trabalho burocrático e pedagógico para os parceiros envolvidos, exigindo uma dedicação além daquela inicialmente prevista. Percebeu-se, entretanto, que não houve a compreensão de que todos eles, gestores/professores e agentes culturais, vivenciaram uma realidade de exploração e de precariedade das condições de trabalho e que os problemas não se encontravam entre eles, mas, sim, tinham origem em questões estruturais – restrição de recursos e descentralização das ações do Estado, por exemplo – que iam além das políticas educacionais.

Sem pretensão de esgotar o tema e considerando especificamente a condição da classe trabalhadora, as situações de conflito vivenciadas pelos representantes das escolas e as Iniciativas Culturais Parcerias podem ser compreendidas à luz da ideia de consciência de classe, em especial quando se toma como referência as noções de “classe em si” e “classe para si” elaboradas por Marx (EUZÉBIOS FILHO, 2010) e os conceitos de “econômico- corporativo” e “ético-político”, conforme definidos por Gramsci (LIGUORI; VOZA, 2017). Embora digam respeito às classes sociais que se confrontam na sociedade burguesa, tais noções e conceitos serão brevemente indicados a seguir, restritos à consideração da classe trabalhadora, como indicado acima, visto que a ela pertencem os parceiros envolvidos no PMCE.

“Classe em si” e “classe para si” se referem a diferentes graus de consciência do ser social sobre a realidade. O conceito de “classe em si” atribui-se aos sujeitos que compartilham da mesma condição econômica de só possuir a força de trabalho para vendê-la em troca da sobrevivência, se reconhecendo enquanto trabalhadores, mas não agindo como classe. Por isso, as iniciativas se pautam tanto em buscar alternativas centradas nas necessidades apenas do indivíduo, como por ações de grupos que se restringem a lutas econômicas, por exemplo, o aumento do salário (EUZÉBIOS FILHO, 2010). “Classe para si”, por sua vez, situa-se na ampliação da consciência do indivíduo de se reconhecer enquanto classe e, como tal, entende

que, para conquistar a efetiva emancipação política e econômica, faz-se necessário lutar para extinção do motivo que o torna explorado e aprisionado ao capital: a propriedade privada. “Classe para si”, neste sentido:

Trata-se, em última instância, de um conjunto de valores que as classes oprimidas possam aderir, conscientemente, para por fim às condições concretas que lhes foram impostas. Valores estes baseados em uma factibilidade revolucionária, na possibilidade concreta de construção de uma sociedade socialista. Valores que pretendem fundar uma nova cultura impulsionada pela práxis no campo da economia e da política, mas uma práxis voltada também para a preocupação em estabelecer uma nova forma de nos relacionarmos uns com os outros, entre homens e mulheres, a relação da sociedade com ela mesma, para apreender a totalidade do gênero humano e do meio ambiente como duas dimensões de uma mesma realidade (EUZÉBIOS FILHO, 2010, p. 75).

As definições de “classe em si” e “classe para si” podem ser relacionadas aos termos “econômico-corporativo” e “ético-político”, os quais, conforme definidos por Gramsci, correspondem a diferentes graus e/ou fases da consciência política coletiva (LIGUORI; VOZA, 2017). Tomando-se novamente apenas a classe trabalhadora como referência, tem-se que a fase econômico-corporativa possibilita a solidariedade entre os trabalhadores, embora restrita ao campo econômico, ou seja, ao nível das necessidades imediatas; o ético-político corresponde à fase em que a classe subalterna se desenvolve além da fase econômico- corporativa para alcançar a hegemonia na sociedade civil, tornando-se dominante no Estado (LIGUORI; VOZA, 2017).

As ideias de Marx e de Gramsci sobre os níveis de consciência de classe, apreendidas aqui a partir das leituras de Euzébios Filho (2010) e de Liguori e Voza (2017), permitem inferir que a relação entre as representantes das escolas e os agentes culturais se situou no nível da consciência da “classe em si” e/ou na fase econômico-corporativa de consciência política, visto que os conflitos se relacionaram basicamente ao financiamento do PMCE. Ou seja, ao mesmo tempo em que existiu uma ação coletiva e de trabalho conjunto na realização dos projetos culturais nas escolas, não se reconheceu que limites estruturais do PMCE acabaram por colocar os sujeitos em conflitos envolvendo interesses/prioridades individuais, impossibilitando sua identificação enquanto classe, para que, assim, pudessem juntos criar uma alternativa ou pressionar a SEMED e o Governo Federal para uma melhor realização do PMCE nas escolas municipais de Maceió.

A ausência da consciência coletiva da realidade social e, especificamente, da política educacional e cultural do país, impossibilitou os sujeitos de perceberem as estratégias políticas e econômicas que interferiam em sua área profissional, bem como de se

reconhecerem como produtos destas relações e como reprodutores de práticas impostas externamente, muitas vezes, sem consciência. A naturalização das Parcerias Público-Privadas, pelos participantes do PMCE, como ferramenta de gestão da política educacional e cultural, é expressão desse movimento. Outro aspecto, revelado pelo Programa Mais Programa nas Escolas, que se insere nesta situação de reprodução sem consciência pelos sujeitos é a categoria subordinação da cultura à educação, que é a unidade de análise do próximo capítulo.

5 A SUBORDINAÇÃO DA CULTURA ÀS PRERROGATIVAS DA EDUCAÇÃO NO