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Depois dessa incursão a um território imaginado de acordo com objetos mobilizados por Mignolo, volto agora à antiga posição conquistada em diálogo com o pensamento de Richard Rorty. Buscarei abordar o autor argentino também como teórico81 que realiza uma crítica do

“ocidentalismo” segundo um conjunto amplo de influências, retrabalhadas com a criação de um robusto ferramental conceitual. A luta aqui não é realizada no nível dos dilemas práticos, vividos no cotidiano de populações e grupos sociais, submetidos a pressões neoliberais, democracias frágeis e uma “colonialidade de poder” fundamentada na hierarquização e

81Mignolo afirma que “a ‘teoria’ (entre aspas) torna-se necessária para distinguir entre um conceito herdado (das

ciências sociais da linguística e semiótica e, às vezes, da transposição de teorias das ciências exatas para as ciências sociais e humanas) e um tipo de prática autorreflexiva e crítica na academia (...) é uma prática teórica daqueles que se opõem ao conceito racional e asséptico de teoria e conhecimento, teorizando, precisamente, a partir da situação na qual foram colocados” (MIGNOLO, 2003, p. 157). Em uma anota resume “a diferença que Horkheimer introduziu foi que a teoria tradicional separa sujeito de objeto enquanto a teoria crítica afirma que o que é conhecido é criado pelo sujeito do conhecimento. A teoria crítica decolonial introduz o sujeito do conhecimento que é perpassado por diferenças imperiais e coloniais” (MIGNOLO, 2011, p. 346).

racializações que se reproduzem em muitos países latino americanos. Esse é o contexto de atuação do “intelectual decolonial” de Mignolo e que existe, presumivelmente, em Mignolo. O confronto de algumas características dessa figura com alguns caminhos tomados pela postura teórica assumida pelo autor permite conjecturar sobre a complexa situação do contexto da atividade de Mignolo, tendo em vista que seu pensamento decolonial radical tenta corroer as bases da perspectiva ocidentalista. A ideia é explorar algo como uma contradição

performativa82 mitigada pelo temperamento ironista decolonial de Mignolo ao mobilizar

aquela autocompreensão positiva esboçada em sua teoria.

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Um ponto de partida pode referir-se à ideia de que o intelectual decolonial atuaria na intersecção entre uma cultura circunscrita e o pensamento “universal”, tal como exemplificado, entre outros, na figura de Rivera Cusicanqui ou na ideia que Mignolo tem de ele próprio realizar uma gnosiologia limiar. O autor argentino argumenta, por exemplo, em uma reflexão em diálogo com Dussel, ter superado um falso universalismo provinciano de origem europeia contido na ideia de “emancipação” (MIGNOLO, 2010, p. 21). Desprende-se dessa alegação que Mignolo, assumindo o valor do diálogo com o “outro”, se disponibilizaria a, de fato, “ouvi-lo” ou, dito de outro modo, acolher seus termos como também consequentes. Estratégia que, extrapolando suas premissas, poderia envolver algo como uma estrita tradução de imaginários políticos diversos buscando sentidos semelhantes ao conceito emancipatório que deseja transcender. O resultado poderia ser um critério mais largo de “homem” e de “autonomia” do que aquele facilitado pelo iluminismo. Ou, então, realizar algo semelhante ao exemplar trabalho da antropóloga Maori Linda Tuhiwai Smith (MIGNOLO, 2009, p.27), desenvolver uma estratégia mais radical e intensiva, um verdadeiro “trabalho de campo”: se

82 A ideia de “contradição performática” tem origem na crítica de Habermas (1990) ao pensamento pós-

estruturalista. Jay explica que “uma contradição performativa surge não quando duas proposições antitéticas (A e não-A) são reivindicadas simultaneamente como verdadeiras, mas sim quando o quer que seja afirmado está em desacordo com as pressuposições ou com implicações que surgem a partir do que foi afirmado” (JAY, 1992, p. 265). Um interessante uso dessa ideia é feito por Anderson (2006, p.126). Mostra que Smith (1997) apesar de professar um “pragmatismo”, uma posição antifundacionalista, cética, e contingente, acaba se mostrando dogmática, fundacionalista e distante da contingência. Ou seja, Anderson radicaliza as premissas das ideias de Smith e coloca contra a própria Smith, podendo afirmar, então, que existe um descompasso. Anderson diz que o “caráter” que Smith esboça como realização encorporada de sua visão pragmatista é o contrário da visão professada.

dispondo a interagir com um único horizonte social de referência, atualizaria um pensamento híbrido, capaz de propor alternativas sociais e políticas libertárias segundo critérios outros que aqueles consagrados pela “metafísica ocidental”.

Ao invés disso o autor se enreda em uma operação semiótica particular: esvazia os conteúdos substantivos dos conceitos a ponto de torná-los largos e leves o suficiente para poder ser encaixados em “outras experiências”. É nesse contexto que afirma se apropriar do impulso dado por “emancipação”, mas preferindo “liberação”, termo conector que capturaria “a diversidade racializada de etno-grupos colonizados pelas burguesias que se emanciparam das monarquias” (MIGNOLO, 2010, p.27). Esse mecanismo de “desenganche” permite Mignolo dar a entender ter escapado dos vícios do pensamento monotópico e, ao projetá-lo no conjunto de experiências “subalternas” ilustradas em sua teoria, provocar a eclosão dos multiversos dessas cosmologias. Se “liberação” não pertence a “lugar algum”, podendo servir a “uma diversidade de experiências”, surge a indagação se tal conceito não pertenceria ao “mesmo lugar de sempre”. Ao reconstruir as bases simbólicas da dominação, delineando as condições de possibilidade de quem a experimenta, Mignolo parece realizar sua análise genealógica com nenhum outro que o conceito de emancipação ocidental como fundamento. Esse valor, assentado na compreensão do homem como sujeito criativo, autodeterminado e dotado de razão, embora não ser usado em seu sentido estrito, liberal ou marxista, parece atuar em Mignolo como um condutor para o modo como teoriza. Resulta que projetar um outro quadro de referência, de termos não substantivos tal como “liberação”, não subtraí a vinculação de sua intervenção à “ weltanschauung do ocidente”.

É possível dizer que, ainda que indique a possibilidade de filiação a outras cosmovisões, a valores conformados em outros locais, um resquício de ideal de “liberdade” é o único a ser atualizado de forma consequente, em termos analíticos, na crítica à violência epistêmica realizada por Mignolo. De modo semelhante a Foucault (RORTY, 1989, p. 65), se entrevê em Mignolo, para além das alegações mais ou menos autoconscientes de sua teorização, um resíduo de self fundacional, em filiação direta com o conceito iluminista de homem que o próprio autor argentino tenta expurgar ao dizer que tal ideia não daria conta dos “menos humanos que habitam o mundo além do coração europeu” (MIGNOLO, 2011 p.133). Parece, desse modo, conceber um potencial libertário imanente, suprimido por uma colonialidade difusa, que seria preciso liberar ao liberalizar as sociedades periféricas vitimadas pela subalternização. Guiado por esse pressuposto, seu esquema privilegia sujeitos individuais e coletivos que desejam realizar um vínculo significativo, uma identificação com formas pré-

existentes e locais de identidades culturais, de “epistemes”, de acordo com as quais novos pensamentos e novos mundos despontariam. Claro está que, assim que conquistada, essa libertação pode adquirir conteúdos diversos, mas isso não anula o fato de que o meio de realização é delineado a partir da teorização de Mignolo - um esquema que não deixa de ser uma reinterpretação da prática existencial de diversos sujeitos segundo o vínculo de Mignolo a uma certa tradição crítica.

Parece manifestar-se no pensamento de Mignolo algo como um “mecanismo de empuxo”, com uma tendência decolonial que tende a ser contrabalanceada por uma força contrária, a “colonialidade”, que chama à ordem as tentativas de externalização do pensamento que o autor ensaia. Uma direção dessa dinâmica pode ser concebida na extrapolação da máxima de que a aproximação de visões de mundo locais, tais como a quéchua, a aimará ou a quixé-maia, a partir de “onde” os intelectuais instrumentalizam o conhecimento ocidental, é fundamental na atividade daqueles que buscam a “desobediência epistêmica”. Isso acarretaria em um “risco”, tal como descrito no caso dos zapatistas, para o sujeito adestrado na tradição acadêmica. Mas que risco é esse? O perigo a que Mignolo se refere parece dizer respeito à capacidade que o intelectual tem em deixar-se contagiar pelo ponto de vista desse “outro”, fazendo com que seus problemas, expectativas e pensamentos impregnem os habituais frames constituídos pelo pensamento de origem moderna/colonial. Refere-se, portanto, a oportunidade de um engajamento profundo, espécie “conversão” que possibilite àquele que maneja os saberes questionar as bases ocidentais de sua própria atuação em favor da afirmação do potencial epistêmico, do valor da vida e cosmovisão dos povos com os quais dialoga. Isso exige uma atitude de certa suspeita em relação ao próprio discurso, organizado a partir do pensamento racional e cientifico. Mas demanda, fundamentalmente, um movimento de ir-se em direção a esse “Outro”, ao seu pensamento, experienciado, muitas vezes, de forma prática e não proposicional.

E existe, de fato, em Mignolo, um renovado impulso em aproximar-se dos “degredados na própria terra”. Isso é ensejado, por exemplo, no mergulho na plêiade de autores “marginais”, “limiares”, de origem “negra”, “indígena” e “mestiça”, que se avolumam em suas páginas. Ler Mignolo se assemelha a frequentar uma biblioteca de autores esquecidos pelos cânones de referência e que funcionam como um prisma que dá acesso a seus mundos: os mundos que projetam com suas ideais, o mundo que Mignolo retrata em sua teoria e sobre o qual desenvolve suas reflexões. Mas esse movimento paripatético, esse pensar em movimento, também é tentado em sua curiosidade refinada, demonstrada ao prestar atenção

em “conversas”, especialmente de “todos os que têm algo a dizer sobre suas experiências locais e sua percepção de projetos globais” (MIGNOLO, 2003, p.12). Nesse contaminar-se, afirma a importância de “todo tipo de pessoas estranhas à academia, motoristas de taxi, até médicos, de empregadas domésticas na Bolívia até executivos de pequenas indústrias”. Esse “método” englobaria também a atividade de docência e pesquisa, base que permite o autor “manter diálogo com intelectuais da América latina”, especialmente dos Andes e do México. Os cursos de Mignolo em Duke parecem abrigar estudantes, ativistas, artistas, provenientes de diversas partes do globo, facilitando ao autor argentino se manter informado a respeito dos problemas específicos enfrentados por coletividades e movimentos sociais ao redor do mundo.

Em uma dimensão, a teorização, visando manter seu caráter paradigmático, parece exigir de Mignolo que se mantenha abrigado das contingências externas ao esquema teórico. Contudo, com ajuda do ideal “intelectual decolonial” o autor argentino traça uma rota de fuga em direção a esses outros mundos. Afastando-se da catedral bem organizada e refinada de seus conceitos, vai caminhando em direção ao universo escorregadio, contraditório e, às vezes, doloroso da experiência “real” dos sujeitos que vivem a complexa situação da colonialidade. Ilumina, desse modo, saberes que são avessos aos estilos de pensamento, ocidentais, portanto “orais”, “cotidianos”, “não teóricos” ou “pré-teóricos” e que, animados por “homens simples”, em contextos diversos, permitiriam um acesso ao modo como sustentam suas realidades. A ideia, também projetada na teoria de Mignolo, é que existem mundos plurais diante dos quais o pensador, adestrado na tradição ocidental, deve manter um pudor, pois as experiências e visões de mundo animadas nesses lugares têm sempre algo a ensinar àqueles que sempre foram arrogantes em sua administração do conhecimento/poder. Exigem, portanto, um diálogo “impossível”, cheio de aporias, erros, mas cuja atualização poderia permitir não somente reforçar as “potências epistêmicas” daqueles que sofrem, mas também enriquecer a tradição filosófica latino-americana, a partir das concepções e ideias provenientes daqueles a quem sempre foi recusado o papel de “pensadores”.

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Apesar de apontar para “espaços de experiências” diversos (MIGNOLO, 2007B, p. 497), todos refletindo a sua maneira a onipresença do mundo moderno/colonial, os encontros

com as vivências e saberes desses grupos aparecem, contudo, como rápidos, furtivos, em uma palavra, superficiais. Isso me remete, ainda que por outro ângulo, a discussão de Sousa Santos em relação ao “desperdício da experiência”. O autor português argumenta, em uma teorização semelhante à de Mignolo, que o “paradigma dominante” se caracterizaria por impor uma forma de racionalidade científica que é “totalitária”, negando “o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautam pelos seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas” (SOUSA SANTOS, 2011, p.61). Santos argumenta que o modelo é culpado por uma hierarquização de pessoas e conhecimentos que exclui totalmente, para usar um termo do autor argentino, algumas “gnoses” do horizonte de referência. Mas é possível pensar em uma dissipação da experiência por outra via que a do “pensamento abyssal”: pode ser gerada pelo “excesso” de boa vontade política e teórica. Ao buscar criar uma grande teoria que diagnostique as vicissitudes do pensamento ocidental e que indique saídas para “os becos sem saída pela epistemologia moderna” (MIGNOLO, 2003, p. 48), Mignolo se vê impossibilitado de praticar uma relação mais franca e aberta com os movimentos e grupos sociais que servem de interlocutores em seus livros.

Para o ironista que há em Mignolo, quedar-se nesses mundos traria um outro “risco” que aquela elogiosa ameaça que ronda a atividade do intelectual decolonial, qual seja, a de ser alterado na convivência com a existência e com o pensamento do “Outro”. Falo de um risco verdadeiramente negativo: significaria pôr em perigo todo edifício teórico do autor argentino. Um temor manifestado, talvez, seja que o ganho de ter seu conhecimento tonificado no contato com algum desses sujeitos e seus inventivos e complexos imaginários traga, como contrapartida, um pensamento preguiçoso e pesado, com antolhos perspectivistas, que se contente em olhar as coisas como são a partir de um único ângulo, tal como é característico do pensamento monotópico (MIGNOLO, 2011, p. 61). Por isso Mignolo se furta a uma verdadeira tentativa de imersão nas sociabilidades imanentes a essas coletividades. Tal aventura exigiria a suspeição dos seus próprios pressupostos e a construção de uma representação teórica que refletisse um pouco mais o modo como tais grupos pensam a si mesmos. O fato é que ele se coloca contra concepções ingênuas de pluralidade que, no seu entender, se mostrariam autocorrosivas na sua aceitação de comunidades, indivíduos e práticas, excluindo, de forma arbitrária, outros. Afirma, por exemplo, mover-se em direção ao terreno da “identidade na política”, ao invés do terreno da “identity politics” (MIGNOLO, 2011, p. 69).

Mas esse caráter asséptico de sua ideia de “alternativas” parece ter consequências não pretendidas. Ao se colocar a tarefa de superar um pensamento monotópico, mantendo-se firme a uma concepção não substantiva de “pluralidade”83 epistêmica, fundamento de uma transformação decolonial, Mignolo anima uma concepção “desencarnada” desse conceito. Parece querer desenvolver uma noção de pluralismo que, de um lugar distanciado, facilite a criação de um ambiente em que a fauna de conhecimentos, epistemes e valores políticos, possam eclodir, dialogar e encontrar um fundamento comum. Mas essa concepção, por outro lado, parece manter o autor na jurisdição de um sujeito do conhecimento que emite sua visão a partir de um punto zero, sem referência a nenhum corpo ou história especifica que pudesse registrar seu lócus de enunciação. Seria um olhar soberano que projeta um mundo plural e que, apesar das alusões biográficas e da construção de um espaço virtual de fala latino-americano, ainda guarda para si a posição de uma plataforma primordial e oculta de onde o mundo toma forma. Pretensão que, citando Castro-Gomes, pode indicar “a imagem teológica de um Deus

absconditus (que observa sem ser observado), mas também do panópitico foulcautiano”

(CASTRO-GOMEZ, 2005, p. 18). E uma das ideias centrais aqui é que o “temperamento ironista decolonial de Mignolo” esforça-se justamente para esconder essa sua face mais condenável.

Com base nessa breve discussão, é possível fazer um “experimento heurístico” que escapa das meras negações externas ao pensamento decolonial, tão criticadas pelo autor. Um em que Mignolo é colocado diante de Mignolo. Atualizando aquela imaginação decolonial esboçada na “topografia” delineada acima, pode-se fazer aqui o exercício de se perguntar onde esse retrato antinarcísico de Mignolo seria alocado? Como indicado, o pensamento colonial/moderno, em suas versões “imperialistas”, não “hegemônicas” e “pós-modernas”, é agrupado em um espaço proibido, cuja frequentação geraria uma contaminação danosa à atualização da estratégia decolonial. Contra isso, Mignolo se esforça por negar em bloco um conjunto amplo de epistemes e pensadores, em uma estratégia de alusões reiterativas a seus elementos hierarquizadores, racializadores e violentos, em termos epistêmicos. Mignolo admite, é claro, a passagem por aquelas paragens, o espólio do que ela tem de mais positivo,

83 Mignolo diz que “o pensamento limiar é a epistemologia pluriversal (emergindo a partir de diversas

experiências locais em momentos e espaços distintos, entre histórias locais ocidentais e histórias locais não ocidentais) que interconecta a pluralidade e a diversidade de projetos decoloniais” (MIGNOLO, 2012 p. XXII). Em outro lugar explica “um mundo com verdade entre parêntesis, aceito como universal, é um mundo guiado pela pluriversalidade como um princípio universal. Em um mundo pluriversal, fundado na verdade entre parêntesis, não há espaço para guerras. Isso significa que as diferenças entre trajetórias serão negociadas de uma maneira não imperial, o que significa que não haverá espaço para uma reocidentalização exclusiva” (MIGNOLO, 2011, p. 176).

mas indica também que depura seus elementos mais negativos. É a projeção de um lugar de fala distinto, “marginal”, “limiar”, “híbrido”, que lhe permite localizar-se “do lado de cá”, ou seja, no lado de uma intelligentsia sagrada. Entretanto, nesse reflexo ruim, em que aparece como executor de uma macroteoria distanciada que dilapida a experiência alheia, Mignolo poderia ser acusado como alguém cuja obra ilustra aquela intelligentsia profana que critica de uma forma peremptória. Exilaria a si mesmo?

A resistência a essa degradação teórica se dá através da construção do lócus “pós- ocidental de enunciação”, da vinculação a uma genealogia que remete a Guama Poma de Ayala, passando por Mariátegui e chegando a Quijano, entre outros. Mignolo “é onde ele pensa”, um lugar não ontológico muito interessante a um pensador diaspórico que fez sua carreira em prestigiosas universidades do primeiro mundo e que se defronta com a permanente questão de sua identidade. Não há, contudo, uma referência, substantiva em termos epistemológicos, aos “condicionamentos sociais”, às contingências que viveu como “homem”, “filho de imigrantes”, falante de espanhol e outisider na França e nos Estados Unidos. Esses elementos aparecem apenas como alusões gerais autoexplicativas coladas a enunciação do “lugar latino-americano” sem desenvolver um argumento mais elaborado a respeito de como influenciariam o “modo distinto” que teoriza. Não conformam uma “externalidade” ao discurso que habita, ao ponto de entrecruzamento e deslocamento que ele é. A intervenção de Mignolo, desse modo, parece transformar-se em apenas mais uma inflexão ou dobra de outro “discurso”, maior, mais pesado e resistente, que procura superar a partir da projeção do lugar híbrido e limiar que constrói teoricamente. Uma hipótese é que para manter sua teoria como sistema viável, Mignolo constantemente aponte para pontos de contato externos, um dos quais sendo justamente “sua existência” de pensador marginal, sua “biografia” específica. Mas como apenas elemento anunciativo distanciado, como construção semiótica, essa externalidade parece anular a si mesma.

Como já destacado, o outro elemento fundamental na dramatização de Mignolo de sua pertença às práticas do “intelectual decolonial” é a alusão a um vínculo com os damnés, os subalternos decoloniais, sujeitos de particulares histórias, mas que frequentam o terreno comum da colonialidade/modernidade (MIGNOLO, 2005). Zonas de contiguidade surgem em suas discussões a respeito dos Zapatistas ou mesmo de uma cosmologia andina difusa que poderia servir a construção de imaginários políticos e sociais outros. Mas se o pensar de Mignolo se exercita na catalogação, organização e classificação das experiências desses outros que ele entra em contato, o diálogo com tais sujeitos é abortado no momento mesmo

em que suas visões de mundo poderiam ser tomadas como substantivas na criação de novas formas de saber e na crítica às bases do conhecimento ocidental realizadas pelo próprio Mignolo. O que parece haver é apenas uma apropriação das possíveis interpretações e resistências que tais grupos apresentam, integrando-as no esquema do autor, que afirma a emergência de pensamentos novos em grupos que apresentam resistência a partir da “ferida