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Nas alegações mais incisivas do Grupo M/C fala-se não apenas em uma quebra de paradigmas, mas em uma nova perspectiva que provém de “outra história”. Mignolo chega a desenterrar uma genealogia de pensamento própria da América Latina que se inicia tão longe quanto a primeira crítica de um “intelectual” de origem não europeia como Guaman Poma de Ayala (MIGNOLO, 2011, p. 88). O mote é valorizar formas de conhecimento e existência soterrados pela colonialidade. Assume-se a tarefa de desvelar e potencializar o que foi esmagado por uma lógica de saber/poder que se reproduziu, com deslocamentos, desde o início da situação colonial. Esse caráter de questionamento do status quo e uma “ética” de ação e pensamento parece criar uma elevada solidariedade entre seus membros. A utopia de um “mundo em que vários mundos possam coexistir” (MIGNOLO, 2011, 275), em que a voz do oprimido seja não apenas ouvida, mas exteriorizada em práticas sociais, não raro aparece como móvel central de seus representantes. Um caminho ainda não percorrido, mas para cuja edificação a intervenção apaixonada do grupo quer contribuir. E, embora bebendo na fonte do passado, é na articulação de um vocabulário novo e na projeção de uma imagem da política a maior contribuição do grupo.

Essa “tarefa” parece se relacionar com a ideia de “regresso do futuro” (QUIJANO, 2014, p. 833) e do lugar que os pensadores pertencentes à corrente decolonial têm na conformação de uma nova perspectiva de conhecimento. A tese é que um “velho futuro”, espaço de realização dos ideais humanos de liberdade e igualdade, forjados no iluminismo, fora solapado durante o século XX. Não sobreviveu ao teste da história: a emergência de regimes totalitários de feições ideológicas distintas; o horror do holocausto europeu e da violência praticada em terras colonizadas; o aprofundamento da “exploração do homem pelo homem” e da destruição dos recursos naturais51. O racionalismo instrumental e o capitalismo tornaram-se hegemônicos e aquilo que deveria ser seu oposto, o socialismo, gangrenou em um

51Rorty, em relação a uma decepção aos elevados ideais sociais do liberalismo, afirma que a dificuldade em reter

grandes esperanças não se deu por algo como uma falha em encontrar uma “cola teórica”, mas sim devido a “contingências históricas” tais como: o sovietismo corrompido, a caráter obtuso e ganancioso de lideres de sociedades democráticas e a ampliação da miséria de grupos humanos do hemisfério sul. Não seria a “filosofia”, em suas mais diversas formas ou vocabulários, uma panaceia para tais males (1989, p. 86).

burocratismo oligárquico. Imaginar um futuro distinto tornou-se uma tarefa difícil para muitos intelectuais progressistas que experimentavam a incapacidade da teoria em forjar explicações sobre uma realidade socioeconômica e crenças que sustentassem práticas anti- hegemônicas.

Uma dezena de anos depois, o cenário pós-muro de Berlim não parece melhor. Embora termos alcançado níveis técnicos capazes de resolver muitos de nossos problemas, a direção da evolução tecnológica não parece ser conduzida para minorá-los. Na “idade da globalização”, da tecnologia de comunicações avançada, há um enfraquecimento dos Estados- nações, limitados em seu poder pelas grandes corporações multinacionais e os movimentos livres do mercado financeiro. A nova configuração do mercado de trabalho caracteriza-se por um desmonte de direitos trabalhistas e de seus órgãos de representação. A nível mundial, vê- se a escalada do consumismo, da desigualdade entre regiões e de um produtivismo com efeitos deletérios para o homem e para a natureza. O horizonte de possibilidades de realização dos ideais iluministas parece ter se fechado (ALEXANDER, 2000). Diante desse quadro orwelliano, intelectuais liberais, de esquerda, se viram animando ideologias que respondiam a pergunta “que fazer?” de forma não convincente. Não tinham a segurança de “estar do lado da história”. Alguns “optaram” por uma guinada à direita, a uma terceira via ou a um pensamento mais atento à real politik e às possibilidades de transformação lenta de algumas “questões sociais”. Outros se mantiveram obstinados na defesa do “sonho da razão”, esperando uma época mais propícia a sua efetivação.

Talvez o melhor diagnóstico de como esse quadro afetou a teorização tenha sido feito por Lyotard (2000), associando esse contexto ao que chama de “declínio das metanarrativas”, com as pessoas perdendo a fé em expressões científico-filosóficas amplas, histórias globais que buscavam dar conta do caráter do mundo e fornecer bússolas para suas ações. Apesar de atingir principalmente ideologias políticas como o marxismo, um dos grandes sistemas mobilizadores das energias das massas no século XX, esse ceticismo se dirige a qualquer conjunto de crenças que busca fornecer uma compreensão e resoluções para os problemas da humanidade. Segundo Alexander, essas ideias pós-modernistas podem ser pensadas como uma reação de intelectuais marxistas e pós-marxistas ao fato de que o período de radicalismo coletivo e heroico foi suprimido (1995, p. 24). A derrota das utopias trouxe uma sensação de derrota diante da marcha da história. De um ângulo liberal, foi possível falar em um fechamento do horizonte histórico ou “fim da história” (FUKUYAMA, 1992). A guerra fria

marcaria a vitória ideológica do sistema democrático e do capitalismo sobre outras ideologias políticas do século XX.

Mas a corrosão do vocabulário moral e político do iluminismo ampliou a possibilidade de novas linguagens políticas e novas utopias. Nesse contexto, os pensadores decoloniais acreditam que a configuração de poder inaugurada no século XVI, com a invenção da América, nunca esteve tão ameaçada como hoje52. A corrosão da metafísica ocidental e de seus valores de racionalidade, homem e conhecimento, a partir de dentro, condensada na crítica pós-moderna, somou-se à crescente tomada de consciência contra as injustiças e a luta contra a violência colonial. Junto com a morte de Deus e todos os outros “funerais”, ataca-se também a figura de Próspero53. A boa vontade da civilização ocidental é desnuda em vontade de domínio e opressão, ideias que permearam as discussões da Conferência de Bandung (1955), que visava “promover a cooperação cultural e econômica e se opor ao colonialismo” (MIGNOLO, 2011, p. 59). A primavera de 1960 em várias partes do mundo, as lutas contra os colonialismos europeus na Ásia e em África, a luta pela liberdade sob os regimes socialistas reais, plantaram uma semente de esperança, a despeito do malogro do campo das esquerdas54.

É nesse contexto histórico que afirmam ser possível falar de “uma nova perspectiva de conhecimento”, cuja função heurística é subsumida no caráter crítico e propositivo das teorias.

O futuro regressa fornecendo direções para a superação do desespero e do niilismo. Não

caberia mais a experiência moderna da febre do novo, da crença em um progresso inexorável, identificando a realização das grandes potências humanas em uma idade do ouro localizada no futuro. Segundo Santos (2010 a, p.95), a concepção moderna de racionalidade caracteriza-se justamente por contrair o presente, um instante fugaz, entre o passado e o futuro. Ao mesmo tempo expande-se o futuro, numa perspectiva muitas vezes teleológica, totalitária e linear. Tal pensamento metafísico, assumindo uma moral universal, uma “verdade” existindo como fato “objetivo”, e uma ideia etnocêntrica de homem, concebe a história como desenrolar dos

52QUIJANO (1998) afirma que o limite da reprodução do sistema mundo é o próprio limite da reprodução da

vida em geral, com os perigos trazidos pela destruição da natureza, e da reprodução da vida humana, prejudicados pela vitória de uma ética que torna dispensável a vida humana em nome do lucro. Daí a necessidade de outra ética.

53Fanon usa a figura de Próspero, presente na obra shakespeariana e referido na obra de Mannoni, para falar

alegoricamente do colonizador. Diz que esse possui um “complexo de Próspero – definido como o conjunto de disposições neuróticas que desenham (...) a figura do paternalismo colonial” (FANON, 2008, p.101)

54 Em um texto bastante interessante, “Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina” (2005), Quijano

afirma que “a perspectiva eurocêntrica distorce, quando não bloqueia, a percepção de nossa experiência histórica (...) do mesmo modo como a ‘cavalaria’ atuava na visão de Dom Quixote” (2005, p. 15). Mas é também de uma atitude Quixotesca que um novo mundo deve surgir, mas desta vez Dom Quixote representa a tentativa de “desfazer o agravo de partida de toda nossa história: a armadilha epistêmica do eurocentrismo” (QUIJANO, 2005, p.16).

potencias civilizatórios europeus. Mas é justamente esse espelho europeu, uma imagem arrogante de si mesmo e de seus destinos, que fora estilhaçada na contingência histórica e através de ataques internos e externos ao seu regime de verdade. A redescrição se dá através de perspectivas dialógicas, limiares, e mais serenas em relação aos destinos do “homem”. Capazes, portanto, de projetar caminhos e valores que permitam a afirmação de ideias progressistas, mas sobre outras bases.

O futuro que retorna da hibernação, segundo Quijano, ainda em um vocabulário que lembra as maiores crenças liberais, representaria o renascimento da esperança na “democracia” como igualdade social, da “cidadania” como legitimação da diversidade social e na busca de liberação do conhecimento e do imaginário social (QUIJANO, 2014, p. 845). Sua realização seria não em um futuro distante, mas agora, na tarefa plantada de forma urgente. Segundo Mignolo, sua episteme não se escoraria no valor da “verdade absoluta”, mas sim em diálogo com vários futuros possíveis (MIGNOLO, 2011, p.81). Essa aceitação da “contingência”, da impossibilidade de qualquer sistema abstrato dar conta e conduzir a efetivação da história, levou Mignolo a falar, por exemplo, de múltiplos caminhos capazes de ser atualizados. Ao lado da opção decolonial, que segundo sua avaliação estava na ordem do dia, haveria o “pós-ocidentalismo” de países como a China, críticos no nível subjetivo e cultural embora participando do sistema capitalista. Fala também da reorganização do campo das esquerdas na Europa e na América Latina, baseando-se novamente no universalismo e em um ideal de liberdade humana. Haveria também a possibilidade do que chama de “reocidentalização”, representada pela vitória do neoliberalismo, imperialismo e da razão arrogante (MIGNOLO, 2011, p. 34).

Fatos como a vitória de Donald Trump, a crise migratória na Europa e a ascensão de regimes de direita na América latina indicam uma tendência que corrobora a hegemonia do “velho passado” ocidentalista. Mas os escritos decoloniais apostam que o refinamento teórico haveria de contribuir para a “libertação” do futuro. Agora parece ser possível depurar a experiência europeia do horizonte, tanto em sua versão hegemônica representada pelo evolucionismo das teses modernistas quanto em sua forma contra-hegemônica que, apesar do poderio crítico, ainda estaria presa à experiência europeia. Na perspectiva do pensamento decolonial, além de a história não ter morrido, ela nunca foi tão aberta e passível de ser conduzida em direção àquele “novo humanismo” apontado por Fanon55 ou a um verdadeiro

55 Fanon (2008) aponta que o negro antilhano oscila entre uma negritude negativa, buscando inserir-se na cultura

“universalismo universal” (2007, p.27) de Wallerstein, que revaloriza e potencializa a experiência dos povos racializados. Nas palavras de Santos, seria preciso “dilatar o presente”, valorizando a complexa e heterogênea experiência humana de origem não ocidental (2010a, p. 101). Um caminho que se faz ao caminhar e para cuja atualização o próprio projeto decolonial coloca todas as suas energias. É urgente que se afirme uma “ética libertária”, que, entre outras coisas, valorize o homem enquanto homem, não enquanto consumidor ou força de trabalho a ser explorada (DUSSEL, 2012).

O caminho tomado pelo movimento é a realização de macronarrativas que, apesar do caráter globalizante, são colocadas como meros instrumentos para libertação de “outras racionalidades”, de “uma nova ética”, de outras “potências epistemológicas”56. Ou seja, dispostos a “mudar a lógica e não apenas os termos da conversação”, apostam em uma nova forma de teorizar que escape da ideia metafísica que separa sujeito de objeto, tornando o conhecimento como meio de representar uma realidade externa ou exprimir fundamentos humanos anistóricos. Regime epistemológico que, com seu verniz universalista, escondia o movimento de uma vontade de verdade que expressava o poder e a autoimagem da Europa ocidental, encarnada na figura do homem branco. Subsumidos a essa lógica perversa desde pelo menos a “primeira modernidade” (MIGNOLO, 2003, p. 186), a experiência dos povos racializados (“índios”, “negros”, “mulatos”, etc) das regiões abarcadas pela expansão imperialistas, viram suas vidas e saberes serem apagados e reinscritos nos termos teológicos e egológicos europeus. Muito embora – e esse é um elemento importante na equação decolonial - permanecerem vivas nos “escombros” de suas civilizações, no caráter necessariamente “híbrido” que sua cultura teve que adotar e na “dupla consciência” que seus elementos tiveram que expressar, salvaguardando, assim, um resíduo “epistêmico” fértil e letal (MIGNOLO, 2003).

Tais esquemas, portanto, seriam capazes de um diagnóstico melhor ajustado às novas tendências de pluralismo que vem se impondo desde pelo menos o fim da Segunda Guerra Mundial. Aparecem como um meio, uma tocha que visa iluminar o caminho truncado em direção às luzes latino-americanas que não mais dependam do artifício das ideias

universalismo, um “humanismo” nas relações, muito embora negue o universalismo provinciano da cultura europeia.

56Mignolo (2003, p. 47) afirma que é necessário construir “macronarrativas na perspectiva da colonialidade (...)

narrativas acionadas pela busca de uma lógica diferente (...), relatadas a partir das experiências históricas de múltiplas histórias locais”. Santos (2010, p. 126), por sua vez, afirma que “no período de transição que atravessamos (...) a melhor formulação do universalismo negativo (a hermenêutica diatópica) talvez seja designá-lo como uma teoria geral residual: uma teoria geral sobre a impossibilidade de uma teoria geral.

eurocêntricas. No mesmo movimento, querem abrir o leque de possibilidades históricas, pois buscam dialogar com a experiência de grupos sociais que encarnam a resistência cultural e política contra a colonialidade. Apresentam-se, assim, como paradigmas para a criação de trajetórias históricas mais condizentes com as necessidades e visões de tais coletividades. Mas que futuros são esses? Tais utopias estariam emergindo em vários “locais”, encarnadas em ideias como “comunitarismo”; em uma relação mais harmônica e sustentável com a natureza e com os semelhantes; no uso ajustado às necessidades locais da tecnologia e da ciência; na afirmação da “liberdade” e “justiça” diante da miséria material e existencial do neoliberalismo. No entanto, tais valores aparecem na teoria não como imperiais ou transcendentais, mas, sim, na acepção de Mignolo, como “conectores” que, se guardam relação com os valores iluministas tradicionais, permitem novas interpretações de sua realização, função e conteúdo (MIGNOLO, 2011, p. 230).

A única utopia possível para o pensamento decolonial é uma metautopia, de povos distintos delineando sua cidade ideal a partir de valores muito diversos, em um diálogo sempre arriscado. Partindo desse processo de reinscrição da tradição filosófica e científica europeia e da inauguração de um novo vocabulário, importante para a sensação de autodeterminação dos intelectuais de origem periférica, o grupo assume uma “missão social”, cristalizada na ideia de uma ética de “liberação”. Apesar de evitar adotar uma tábua de valores como existindo além da contingência histórica e/ou a realidade de um metavocabulário que tenha acesso privilegiado à realidade, é uma tendência antiliberal e comunitarista, inspirada nos grupos autóctones, que fornece um valor central para o grupo. Ver, por exemplo, Mignolo (2011, p. 255); Quijano (2014, p. 847) e Dussel (2012, p. 116). Além do mais, a ideia de que é só através da “ferida colonial”, de uma inscrição biográfica e geográfica do saber, que se pode teorizar, permite assumir o ideal de que a sua perspectiva é mais capaz de dialogar e potencializar distintos imaginários sociais. É aí que reside uma justificação das suas teorias: é através da participação nos universos que elas facilitam, difundidos de maneiras diversas, agitando o engajamento político e a crítica em diversos espaços, que os membros do grupo procuram inaugurar um norte e sustentar a direção de sua agulha rumo a um novo futuro.