• Nenhum resultado encontrado

Qual seria o enfoque mais adequado à compreensão da ideia de intelectual concebida e alegadamente realizada pelo pensamento decolonial de Mignolo? Talvez a de um devotado. Uma opção que despontava representava uma espécie de ratificação das teses decoloniais: acarretaria demonstrar elogiosamente como o intelectual projetado na obra do autor argentino, de fato, transcendia as amarras disciplinares, inaugurando um pensamento distinto. Tal perspectiva poderia chegar à conclusão que a teoria facilitada por Mignolo realmente

12Em um artigo interessante Mignolo (2010) fala do "fim da universidade tal como nós conhecemos". A nova

universidade seria guiada por paradigmas locais e, fugindo da epistemologia de origem "grego-iluminista", seria atenta a outros modos de vida. Mas tal postura possuí tensões específicas, pois tal autor é professor de uma renomada universidade dos EUA, ou seja, fala a partir de dentro do sistema que critica.

provocava uma reestruturação epistemológica libertária que deveria ser valorizada mais ou menos em seu conjunto. Mas um “giro decolonial” como esse teria como consequência radical afastar-me da tradição sociológica na qual vinha me adestrando. Mais do que isso: exigia também renegar elementos de sua prática que demonstraram ser fundamentais para uma sociologia que valorizava grande parte da experiência social descartada por matrizes sociológicas mais tradicionais.

Marcar passo na sociologia seria uma outra opção. Aqui, o pensamento de Mignolo seria submetido a uma análise do intelectual, concebido como exposto a várias influências sociais que, de alguma forma, o indexavam e levariam à explicação do surgimento da “ideologia decolonial”. A teoria aplicada, dentre as abordagens sociológicas do conhecimento e do intelectual, adotaria um frame mais ou menos representacionista, projetando objetos externos que poderiam ser apreendidos a partir de um método. A atenção aos passos, em direção alguma noção de “verdade” adotada, guiaria o empreendimento que, em algum momento, diante dos impasses do pensamento decolonial, poderia vingar-se, mostrando como tais ideias poderiam “estar fora de lugar”. O giro decolonial reduzir-se-ia a um objeto de estudo, submetido a uma postura investigativa e corrosiva que desperdiçaria as consequências mais importantes da obra de Mignolo em nome da deglutição acadêmica.

Mas nos interstícios do interacionismo simbólico era possível entrever uma ontologia do social que projetava a experiência cotidiana das pessoas e grupos, em seu caráter plural, descontínuo e pragmático. Nesses pressupostos valoriza-se as pessoas que “sustentam” o tecido social, a própria existência, manifestando um constante will to live ao atribuir sentido e depositar afetividade em seus objetos cotidianos. Havia uma “espécie de teoria do conhecimento” para além dos edifícios abstratos. Isso serviu de base a uma profícua “sociologia do conhecimento cotidiano” que tem em Peter Berguer e Thomas Luckamann (2007) seu formato talvez mais bem-acabado. No pragmatismo havia também um tipo de abordagem que tomava a “epistemologia” como alvo de análise. E a leitura da principal obra de William James, Pragmatismo (1921), permitiu entrever no fundo da própria tradição sociologia que vinha praticando uma perspectiva que permitiria manter uma atitude investigativa, mas ao mesmo tempo dialógica com aquela obra decolonial.

A tradição pragmática, tal como concebida segundo James (1921), ao questionar os sentidos práticos das construções teóricas, parecia permitir suspender o poder que uma adoção ingênua do pensamento decolonial poderia implicar. No pragmatismo, os sistemas teóricos são concebidos como propelentes de práticas sociais, alimentando o fluir experiencial daqueles que os articulam e, potencialmente, orientando as perspectivas dos sujeitos que de

alguma forma os adotam. Ou seja, projeta um campo experiencial a partir do qual a teoria adquire sentido em relação a objetivos práticos que os sujeitos, no caso, os intelectuais, se debatem em seu trabalho de realizar o cotidiano. A teoria analisada seria sempre contingente, situacional, criando e recriando aqueles que a articulam, na mesma medida que projeta imagens do mundo com efeitos prováveis para outras pessoas. Nesse enquadramento, o “intelectual” encarnado em Mignolo seria visto como inserido nessa tensão entre retroalimentar a sua própria experiência e projetar uma consequência política e prática de sua obra.

O pragmatismo sugeria também uma superação de uma estratégia de pesquisa tautológica, de um realismo forte, com uma ontologia do sujeito fechada e que reduzia a teoria a seus determinantes existenciais, a partir de uma posição externa, quase de demiurgo. Com essa abordagem parecia ser possível manter uma postura empiricista, disposta a compreender como aquele que maneja a teorização, a partir de determinados pressupostos, estabiliza, em seus próprios termos, certas “verdades”. Mas tal aproximação da teorização nunca seria neutra, pois o próprio processo de pesquisa também se manifestava de forma holística, construtivista, modelando a compreensão do que seria estudado a partir de determinados valores e pressupostos teóricos. O que se queria entender é como o modelo teórico que Mignolo construiu envolvia a projeção de efeitos existenciais ou “práticos” na tensão entre a própria reprodução do “intelectual” e no modo como este se relaciona com aqueles sujeitos ou grupos para as quais seu discurso se dirigia.

Recomendava-se, portanto, “ir além da abstração”, perscrutando as consequências práticas de nossa concepção do objeto, ou seja, como conceber tal e qual objeto implica em tal e qual conjunto de condutas. No caso de chamar algo de real, argumentou Pierce, implica na possibilidade de formar uma "crença" verdadeira, de gerar dúvida e meios de superá-la. Isso legitima e muito o trabalho do cientista. (SHOOK & MARGOLIS, 2006, p. 23). Em relação ao pensamento decolonial de Mignolo, qual seria o efeito de assumir a ideia da colonialidade para a relação entre sujeito da cognição e o "Outro"? Será que o pensamento decolonial de Mignolo gerava mesmo uma reorganização da base do conhecimento e a emergência de novas práticas intelectuais capazes de expressar visões de mundo e necessidades dos sujeitos submetidos à colonialidade?

O que é mais importante: parecia ser possível, através de uma “contaminação” ou de um diálogo profícuo, assumir alguns pontos de vista defendidos pela própria teoria decolonial. E ainda que, em algum momento, fragilidades em sua performance pudessem ser apontadas, isso seria feito a partir da radicalização de algumas de suas proposições e não a partir de uma

“exterioridade” instaurada por outra teorização. Assim, o pragmatismo apareceu como um caminho interessante para a análise dessas questões. Especialmente porque tal perspectiva não envolvia uma imposição de uma “verdade” que, de partida, reduziria o que se queria analisar.

É preciso verificar também que parecia haver certa afinidade eletiva do pensamento decolonial com o pragmatismo: são pensamentos que buscam o “bem-viver”13, no caso do último, e a “libertação”, no caso do pensamento decolonial, o que não deixa de ser uma forma específica de “bem-viver”. Além disso, o pragmatismo norte-americano parece ter surgido, digamos, em um “contexto pós-colonial”, em larga medida em decorrência de uma nova comunidade de intelectuais de origem protestante em busca de afirmar a autonomia da América em relação à Europa. A ênfase no caráter subjetivo, dinâmico e emergente da prática intelectual pode ser interpretada como uma busca de escapar da metafísica cristã tradicional e do racionalismo e empiricismo de caráter cartesiano. Essa ideia é esboçada pelo próprio Mignolo ao apontar experiências semelhantes em pensadores latino-americanos e em uma geração de intelectuais americanos dominada por Walt Whitman, Willian James e Waldo Emerson que “lidavam e combatiam a colonialidade de saberes a partir dos EUA” (MIGNOLO, 2003, p. 201).

Não por acaso, Santos, ao tentar erigir sua “razão cosmopolita” contra a “razão indolente”, se apropria dessa corrente filosófica. Enfatiza que no trato com “objetos”, sejam acontecimentos interativos ou teóricos, o sujeito do conhecimento deve guardar uma postura comedida, atenciosa para com as estruturas emergentes a partir de sua intervenção interessada. Defende que o que existe, existe porque é construído (SANTOS, 2010, p. 149), ou seja, que todo conhecimento é parcial, situado e que surge em função de suas capacidades para realização de determinadas tarefas em contextos sociais delineados (SANTOS, 2010, pg.153). É como se dissesse que é preciso uma racionalidade mínima que possibilite a emergência de outras racionalidades, para além da totalização que o pensamento tradicional, de matriz eurocêntrica, impõe.