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O pensamento decolonial tem como utopia a libertação de todas as formas de dominação (DUSSEL, 1977), como a de gênero e a advinda da exploração capitalista. Sua categoria principal, contudo, é “raça” (QUIJANO, 2014, p. 285), vista como o fundamento da instalação de uma relação de poder que torna as diferenças entre os povos justificativas para uma relação de exploração e dominação que se inicia no século XVI. Busca-se superar a perspectiva evolucionista, unilinear e dual que coloca de um lado o europeu branco, como superior e, do outro, o não-branco submetido a uma alteridade negativa que encobre e sufoca seu potencial existencial. A estrutura racializadora é objeto de análises profundas que acompanham suas origens e denunciam como ajudaram a conformar um padrão de poder violento que, a despeito de suas mudanças, ainda é ativo.

Nesse contexto, a história é praticada não como alguém que contabiliza os “fatos” e ideias ou toma nota dos acontecimentos e das importantes figuras visando enaltecer uma nação ou uma instituição como a ciência. Não existe história como súmula de verdades. As histórias que os pensadores decoloniais buscam retratar são as dos que quedaram fora ou integraram de forma “subalterna” os processos políticos, as mudanças sociais e os “eventos” enquadrados pelos narradores profissionais em seus livros. Em relação a esses últimos, interessa saber menos do conteúdo de suas monografias do que os “regimes de verdade” que habitam e o poder que ajudam a reafirmar ao interpretar a realidade segundo os interesses dos poderosos, dos colonizadores externos ou internos.

A História como um discurso produzido no espaço institucional universitário, com suas regras, rituais e formas de legitimação científica, baseia-se em uma narrativa eurocêntrica que subalterniza outras narrativas históricas (CHAKRABARTY, 2000). Trata-se de uma perspectiva interna à Europa, colocada em movimento a partir do Renascimento e que identifica a marcha da civilização como sendo um progresso imanente europeu (DUSSEL, 2000). É uma concepção linear, universalista e teleológica que coloca o velho mundo como ponta de lança dos desenvolvimentos humanos, enquanto os outros povos, fora da história, “tradicionais”, “bárbaros”, “terceiro-mundistas”, “subdesenvolvidos”, procuram segui-lo, debatendo-se para modernizar-se (MIGNOLO, 2011, p. 85). É uma história-mito que foi e é justificativa das mais diversas violências coloniais, desde a invasão e tomada das terras realizadas no século XIX até a concepção de modernização organizada a partir do FMI e impostas a países subdesenvolvidos.

Em outra dimensão, a história que é matéria de elaboração pelos pensadores decoloniais é arma de combate. E o avanço nas linhas inimigas se dá em uma dupla frente: flanqueando as formas de conhecimento consagradas por uma episteme que fornece as condições de possibilidade do pensar e do existir, o fundamento transcendental para às ações e, em relação ao intelectual colonizado, o “espejismo” para entender uma realidade complexa (QUIJANO, 2014, p. 644). Esse impulso se completa com a tentativa de instauração de uma positividade que, diante do esgotamento das formas analisadas de origem eurocêntrica, procura captar e projetar novos saberes e uma ética libertária, em uma teorização distinta que dialoga com as histórias e memórias dos subalternos. O inimigo, portanto, é uma razão arrogante, obtusa que, na sua autoimagem de superioridade, silencia e torna inócuas outras formas de existir e de saber.

A questão aqui é se é possível superar a colonialidade através de tal estratégia redescritiva57. É possível demonstrar o caráter contingente de outros sistemas de ideias sem cair na armadilha de cavar para si um espaço hiperpriviligiado de fala? No ímpeto descontrutivo, os principais pensadores do movimento decolonial, ergueram belos edifícios teóricos. São grelhas simbólicas que, segundo seu ponto de vista, prescindem de metafísica. Contudo, devido à distância a partir da qual lançam o olhar para a história do pensamento que tomam como objeto, tais pensadores parecem atualizar uma perspectiva de demiurgo58. O que quero dizer é que a passagem em revista das condições de possibilidade de teorização e existência, encarnadas na ideia de eurocentrismo, pode levar a um anúncio privilegiado de um novo pensamento e práticas, segundo uma sublime compreensão da história. Mignolo é o que

57Rorty afirma que o pensador ironista habita a tradição inaugurada por Hegel (1989, p. 78), que através da

dialética procedeu não a uma argumentação, mas sim a criação de um vocabulário novo, portanto de um novo “objeto”, superando o que era obsoleto. Nessa perspectiva, o “filosofar” é, através de uma dialética, a aplicação e o desenvolvimento de um novo vocabulário, mais do que a reflexão a respeito de realidades e fenômenos importantes, aproximados através da lógica argumentativa. Segundo Rorty, com as contribuições de Nietzsche, Heidegger e Foucault, entre outros "ironistas", uma nova hegemonia cultural se instaurou. A “crítica literária” (1989, p. 80), antes aplicada a produtos estéticos, tornou-se um estilo de pensamento generalizado, uma atitude que toma qualquer objeto de conhecimento como um vocabulário que projeta crenças e desejos, facilitando identificação moral por parte de seus praticantes. O autor afirma que o ironista percorre distintos vocabulários, jogando uns contra os outros, comparando segundo seus objetivos, reinscrevendo elementos de um em outro, sem conceber nenhum como privilegiado, como ancorado em algum fundamento não humano.

58Escobar (2003) acusa o projeto de muitas vezes permanecer em uma dimensão abstrata, intelectual-acadêmica,

precisando ganhar corpo, realidade, cotidianidade através da contribuição de projetos que são largamente ignorados pelo grupo M/C. Em relação às mulheres, aponta que existe uma subreperesentação tanto de vozes como de temáticas de estudo e uma falta de tato em relação à possibilidade de os subalternos usarem a própria voz. Ou seja, em nível de "enunciação", o MC permanece masculino, branco, acadêmico, e falando de um "subalterno" que, às vezes, neutraliza o caráter plural, complexo e "impossível" do outro. Fala da ideia de "posicionalidade", ou seja, de que a posição da mulher facilita uma perspectiva que não pode ser abordada a partir de um outro ângulo. Fala de "etnografias" como uma possibilidade de afirmar políticas de representação, de escritura, que torne mais complexa essa alteridade.

vive esse dilema de forma mais intensa. É possível dizer que, em um nível, sua teorização se afirma como uma arma cujo valor é a possibilidade de ser descartada. Mas seu edifício parece retornar sobre sua prática intelectual, contribuindo para a construção de um lugar privilegiado que o autor busca escapar.

O fato é que da peleja com a colonialidade surge um sentimento heresiarca que une aqueles que são responsáveis pelo desarranjo de sentidos, pela destruição dos ícones e pela busca de certa autonomia. É no campo discursivo mesmo, na crítica que afasta e nega dialeticamente, na autoimagem de uma armadura pós-colonial, que a eficácia do movimento busca uma garantia. O futuro, paradoxalmente, parece ter sido captado através da teoria, espelhado na teoria, irradiando-se para outros tempos históricos e intelectuais que se harmonizam precariamente em um quadro geral de relações de poder59. Intelectuais, que se querem livres dos sistemas alheios, parecem projetar uma imagem de autodeterminação, de uma quase certeza de se “estar do lado da história”. Essa atitude permite analisar o que já passou, identificando suas condições de possibilidades, suas trajetórias mais ou menos tortuosas, seu esgotamento como possibilidade histórica.

A disputa se realiza em um contexto de resistência a saberes/poderes que dominam o campo cultural desde tempos quase imemoriais, cuja “memória” é trazida à tona nas obras, mostrando sua face mais perversa, seus silenciamentos, e suas transformações em cada época histórica. Mas o fato é que não foram superados na carne dura de instituições, em sua difusão no campo cultural, na incorporação em práticas cegas, afirmações de uma estrutura discursiva antiga, de uma história-pesadelo do qual se procura acordar. As lentes decoloniais analisam fenômenos e sujeitos que ocorrem em seu caráter aparentemente contingente e em sua ação aparentemente livre, como indícios de nossa resistência ou acomodação à colonialidade. Nessa perspectiva, o centro de suas preocupações está assentado em exemplos de “desobediência epistêmica” (MIGNOLO, 2009), de movimentos sociais ou intelectuais indígenas, cujas práticas espelham e são espelhadas pelo movimento de interpretação realizado pelos intelectuais decoloniais. O passado também é vasculhado em busca dessas preciosidades experienciais que, interpretadas dentro do vocabulário do grupo, potencializa ainda mais a utopia de muitas utopias.

Na perspectiva decolonial não existe uma história natural que se desenrola de forma etapista. É possível dizer que cada dado histórico e cada ideia aparece como parte de uma

série que pode ser percorrida em comparações com momentos distintos da série em que se localiza60. E não apenas isso: o tecido histórico projetado é multidimensional61, articulando-se segundo “heterogeneidades histórico-estruturais” (QUIJANO, 2014, p. 803). É possível comparar fenômenos ocorridos em um mesmo tempo histórico, mas em dimensões/espacialidades diferentes ou em tempos históricos e dimensões/espacialidades diferentes. Muito embora subjacente a essa profusão de tempos, fenômenos e dimensões/espacialidades, esteja a descrição da história de uma “estrutura discursiva” autorreferida que fora se reproduzindo, se deslocando no tempo, enquanto passava por cima de tudo que se opunha a sua marcha. É uma sufocante descrição dos vários estágios de uma situação que ainda não foi superada.

Nela existe uma articulação centrípeta de tempos diversos, de fenômenos diversos, em um padrão de poder difundido no mundo todo que se iniciou no século XVI. Impossível falar de um fenômeno como a Revolução Industrial sem pensar em sua articulação com a drenagem das riquezas diversas de países periféricos como o Brasil. Impossível pensar nas formas de dominação instauradas na Europa na modernidade sem a experimentação realizada nos povos colonizados. Impossível pensar a ciência, a filosofia, sem essa relação complexa e inefável com outras alteridades negadas. A própria “Europa”, que hoje é objeto de discursos e políticas alarmistas em relação ao risco de seu desaparecimento, nunca existiu se não como uma identidade valorada positivamente a partir da oposição a “sua” banda mais ocidental e, depois, mais oriental. O impulso historicizante decolonial procura demonstrar como a História, tal como concebida a partir da Europa, é apenas uma história possível.

E o fio de Ariadne vai sendo esticado e absorvido dentro de um material complexo, truncado, que compõe (e propõe) um labirinto, cujo leitor é convidado a entrar e que é lido a partir de cima pelo intelectual decolonial. É de um presente pós-colonial que se lê o passado62. É da angústia, da dor, da “ferida colonial” (MIGNOLO, 2007, p. 34) que parte o impulso historicizante do intelectual que se vê presa da colonialidade. É fincando os pés firmes no

60Essa estratégia genealógica é usada por Mignolo na maioria de seus livros.

61 A ideia, que Mignolo reelabora com o “Darker side”, foi criada inicialmente no âmbito do pensamento

dependentista para dar conta do modo como economias, aparentemente, parecidas, desenvolviam diferentes caminhos no que se refere ao desenvolvimento econômico (PORCILE, 2010). Quijano, aplicando essa ideia em outro contexto, procurou entender as estruturas políticas e culturais que impediam um desenvolvimento autônomo da periferia em relação aos países centrais. Criou a ideia de colonialidade do poder (QUIJANO, 2014) assentada no racismo e na exploração capitalista.

62“Enquanto o assunto sobre o qual escrevo está localizado no primeiro estágio da globalização, o sujeito do

conhecimento está localizado no terceiro. Assim, um segundo objetivo desse livro é entender o passado, falando o presente. No presente que está sendo falado (que também fala de nós), teorias que articulam o ‘global’ são teorias que falam o presente em um mundo pós-moderno e pós-colonial” (MIGNOLO, 1995, p. XII).

espaço que lhe fora atribuído que navega na história, mapeando as estruturas que ajudaram a plasmar a situação que vive. Situação que, segundo seu ponto de vista, outros também experimentam, em alguma dimensão. Suas obras podem funcionar como uma necessária chamada à realidade, a um descortinamento e reativação da dor da colonialidade. Parece basear-se na crença de que só a partir dessa “tomada de consciência” é que alguma forma de “cura terapêutica” poderá ser possível.

Convida-se a localizar as possibilidades expulsas pela História. Devem surgir genealogias que impõem a apropriação de novos arquivos, a leitura de obras clássicas, mapas, cartas etc., a partir do conceito de colonialidade e uma “imaginação decolonial” que ilumina as reações, conhecimentos e práticas daqueles não representados na História tradicional. Há uma fixação na primeira modernidade63, nas origens das outras modernidades, que não é gratuita. O passado não é só fonte de inspiração para o pensamento decolonial. Há um esforço para desenterrar as experiências, metafísicas, visões do mundo exteriorizadas, que foram silenciadas pelo curso, narração e aplicação da história Eurocêntrica. E essa estratégia pode, por exemplo, enfatizar a matriz egípcio-mesopotâmica de sentidos, constituindo uma etnicidade de origem africana, esmagada na conformação da “modernidade” (DUSSEL, 2012). Ou na afirmação de uma relação holística com o mundo da pachamama através da ética de

bien viver, ou de um comunitarismo (MIGNOLO, 2011).

Mas não se busca o originário puro, metafísico, mas a “palavra” como meio entre os escombros de um passado e um presente em que uma visão Eurocêntrica é ainda hegemônica64. Parte-se da “tradição”, mas como utopia crítica que procurar afirmar um “pensamento limiar”. É o pensamento como instrumento para “tornar-se livre” ao afirmar uma “alteridade impossível”. Confia-se muito no poder das ideias. O vocabulário inaugurado pelo pensamento decolonial, como todo pensamento dialético e crítico, em algum momento escorrega em um logocentrismo que borra a diferença entre vida, como espaço de disputa simbólica, de luta por afirmação de práticas e visões do mundo, e teorização. A contingência da história, embora admitida, é minimizada pela concepção de que a teoria, de fato, tem um papel central na diminuição da opressão que ainda hoje se verifica nos países periféricos. E o risco de justificar uma posição de poder muito superior daquele que realiza a compreensão do

63Escobar (2003) afirma que o projeto Modernidade/Colonialidade assume a hipótese de que é possível outras

modernidades a partir de outras experiências. Desloca, então, o inicio da modernidade do século XVIII (iluminismo) para o Século XVI, com a invasão da Europa e sua constituição como o "outro".

64Retomando uma reflexão feita por Boulaga, Dussel afirma “é preciso partir da tradição (...) mas como utopia

crítica, para assumi-la superando-a. É necessário empregar a filosofia (...) como uma operação para se tornar livres” (DUSSEL apud BOULAGA, p. 76).

mundo é assumido diante da urgência de uma visão de mundo que “liberte” os potenciais epistemológicos reprimidos por uma epistemologia tradicional. É na redescrição de várias figuras do pensamento como “modernidade”, “teoria”, “História” e “ciência” que uma das frentes de batalha do pensamento decolonial se concentra.