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A produção teórica de Mignolo parece possuir a característica de “escada”71, ou seja, de uma estrutura que deve ser descartada assim que ultrapassada. Esse construto tem, de um lado, um caráter negativo, “desconstrutivo”, cético: denunciar a face perversa da colonialidade, seus deslocamentos e inflexões, permitindo a tomada de consciência da imposição de um “outro” como versão do “mesmo” levada acabo pelo imaginário europeu. É esse fim, a ampliação das vozes existenciais que foram submetidas ao silenciamento pela História, que justifica o caráter metateórico de seu sistema, uma macronarrativa sobre a impossibilidade de macronarrativas (MIGNOLO, 2003, p. 106). Contudo, uma vez escalados, os degraus conduzem a uma visão mais vasta, cujos motivos bem-acabados e a satisfação por eles promovidos, parecem querer corroer a dimensão de prescindibilidade da teorização. O valor heurístico conquistado, fundamento da difusão acadêmica e da reprodução profissional, além

71O termo é usado por Rorty, a partir da filosofia heideggeriana, para referir-se à tentativa do que chama de

“ironistas teóricos” de “identificar a urgência metafísica, a urgência em teorizar, visando se livrar de tal pulsão. Uma teoria ironista seria, assim, uma escada que deve ser dispensada tão logo o sujeito chegue à compreensão do que levava seus predecessores a teorizar. A última coisa que um ironista quer ou precisa é uma teoria do ironismo” (RORTY, 1989, p. 97).

da assunção de seu papel público, parece tornar problemático o escape de um “jogo de linguagem”72 tão complexo e trabalhoso de ser atualizado como é a teoria decolonial. Esse reflexo epistemológico, espécie de força centrífuga teórica, traz grandes dificuldades à realização do ideal de superar as armadilhas do pensamento monotópico, tal como idealizado na imagem de um “intelectual decolonial”.

Na modelagem de sua grelha, o autor argentino acaba produzindo alguns conceitos- chaves que funcionam de uma forma semimetafísica, em um construtivismo que satura a manifestação de “outros pensamentos”. São palavras de sua gramática decolonial (MIGNOLO, 2010, p.95), tais como “corpo-política” (MIGNOLO, 2011, p. 140), “geopolítica do conhecimento” (MIGNOLO, 2011 p. 119), “pensamento limiar” (MIGNOLO, 2003, p. 31) e “desobediência epistêmica” (MIGNOLO, 2010, p.17), que acabam adquirindo um caráter quase transcendental. Uma vez evocadas, as fundações dessa infraestrutura se desdobram em ramificações de ideias e conceitos, do qual emerge um mundo de interações semióticas e conflitos epistêmicos. Acabam referindo-se a condições de possibilidade e impossibilidades para instituições, textos ou outras estruturas conceituais que são consideradas em sua análise. Funcionam como um paradigma, levado muito a sério, gerando uma imaginação decolonial que pode perscrutar os mais diversos fenômenos. O fato é que, a teoria escada pode ser uma

teoria-armadilha: certos modos de projetar a realidade que garantem a manutenção interna do

sistema podem subverter a possibilidade de realizar a proposta inicial de seu abandono. Torna-se difícil pensar a experiência decolonial para além da teoria decolonial. Esse dilema tem consequências importantes no modo como Mignolo articula uma topografia de intelectuais, que cava um ideal de intelectual decolonial como realização máxima de certos valores que exibe em sua obra.

Entre os pressupostos desse tratamento da teoria de Mignolo estão ideias pragmáticas. Destaca-se a noção de que teorias facilitam a manutenção de formas de experiência que, em relação àqueles que as mobilizam, permitem atualizar determinado temperamento intelectual (JAMES, 1921, p.6), cuja característica principal é a manifestação de uma elevada seriedade na defesa das próprias proposições. Mignolo atualiza um temperamento que, mesmo assumindo uma posição performática, não fundacionalista, acaba mobilizando uma rígida

72Mignolo assume a sua perspectiva como buscando deslocar um conceito representacional do conhecimento

(MIGNOLO, 2003, p. 47). Isso justifica tratar sua teoria como uma “linguagem contingente”, tal como Rorty faz com seus interlocutores a partir da filosofia de Wittgenstein e de Davidson. Autores que “tratam linguagens alternativas mais como ferramentas alternativas do que como peças de um grande quebra-cabeça” (RORTY, 1989, p. 11).

tipificação dos modos de ser intelectual que atua como atestado das capacidades positivas do pensamento decolonial, ou seja, na manutenção de uma boa “consciência intelectual” (JAMES, 1921 p.14). É importante a ideia de que, em nome da coerência, do grau de integração teórica e da legitimidade e autoridade, tal temperamento realiza o ataque a posturas contrárias e a mitigação dos elementos contraditórios que ela própria possuí. Dessa forma, os elementos “desestabilizadores” (SMITH, 1997, p. 28) de sua visão são atribuídos por Mignolo a tipos intelectuais outros que não o “intelectual decolonial”. A ideia aqui é investigar, na teoria de Mignolo, como determinadas proposições permitem-no imaginar uma conceituação normativa de intelectual que serve como paradigma para quem quer realizar o movimento decolonial, mas que permitem Mignolo escapar do enfrentamento de certas contradições.

Outro importante referencial aqui é Richard Rorty. No “Contingência, Ironia e solidariedade” (1989), ao analisar um conjunto amplo de teorias, Rorty propõem a separação entre perspectivas “liberais” e “ironistas”. Seu interesse é emplacar um liberalismo público e antifundacional, cuja realização utópica exige a universalização da sociedade liberal. Parece apresentar uma clara manifestação do que o pensamento decolonial chama de cegueira em relação ao “darker side” do liberalismo: os imperialismos, os racismos e a violência que acompanham a expansão das instituições liberais do ocidente. Nesse contexto, interessa aqui menos as consequências políticas das teses apresentadas nessa obra e mais um arcabouço conceitual em que o autor se propõe a analisar o “ironismo teórico”, uma corrente teórica pós- hegeliana, cujo objetivo principal é a superação do pensamento metafísico ou dos resíduos metafísicos presentes em outros pensamentos. A hipótese central para Rorty é que tal temperamento, apesar da alegada transcendência, por sua elevada dependência de elementos teóricos, acabaria recaindo em um viés metafísico. O fato é que algumas características da teorização de Mignolo parecem permitir vinculá-lo a essa tradição. Pode-se perguntar, ainda um pouco à distância, seria Mignolo um Ironista?