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Dimensão científica da filologia: o método

Capítulo 2. Filologia como lente de aumento: A origem do problema da relação

2.1. Dimensão científica da filologia: o método

Que Nietzsche considera a filologia uma ciência e que ele sempre valorizará a dimensão científica dessa disciplina, eis o que se depreende desde os seus primeiros escritos. Já num apontamento autobiográfico elaborado entre o outono de 1868 e a primavera de 1869, ele narra o momento em que, anos antes, ao final do período de seus estudos pré-universitários em Schulpforta, decide abandonar suas pretensões artístico- musicais em nome da filologia (BAW 5.250-256). Com a resolução, espera ver-se livre de suas inquietantes e oscilantes inclinações, procurando, como contrapeso, uma “ciência rigorosa”, exercício de reflexão lógica e objetiva. A filologia se lhe apresenta então como caminho natural, já que a instituição em que se encontra oferece aos

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estudantes plenas condições para o desenvolvimento dos requisitos prévios à prática da disciplina40.

Mas em que reside, no entender de Nietzsche, a cientificidade da filologia? Em uma palavra: no método, em que desde sempre procurou exceler: “Trata-se essencialmente de, como filólogo, aprender o método”, afirma, ao escrever para a mãe e a irmã sobre o seu primeiro ano universitário em Bonn, complementando: “e onde melhor do que aqui?”41

. Crescente por razões tanto científicas quanto pedagógicas, o interesse metodológico figura como prioridade de sua atenção durante todo o período universitário, que se conclui em Leipzig: “O método” – anota em um fragmento autobiográfico intitulado Rückblick auf meine zwei Leipziger Jahre – “é aquilo pelo que tive vivo interesse”. E, após verificar “quão pouco em termos de conteúdo se aprende nas universidades”, conclui: “Por isso, tornou-se claro para mim que o modelar do método, do modo de tratamento de um texto etc., é o ponto de que parte o efeito transformador”42

. Vinculando ao aspecto científico o lado pedagógico da démarche, o então estudante procura observar em seus professores “como se ensina, como se transmite o método de uma ciência a jovens almas”: “Assim – prossegue ele – me esforcei mais para aprender como se é professor do que para aprender o que se ensina nas universidades” (BAW 3.296-297, setembro de 1867/abril de 1868).

Em suas anotações para o curso Enciclopédia da Filologia clássica, no qual se empenha para delinear a imagem do “filólogo ideal”, Nietzsche, agora na condição de professor, desenvolve suas impressões estudantis em um tópico inteiramente reservado

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A esse respeito afirma Janz (1984a, p. 64): “[...] Nietzsche, durante seus seis anos em Pforta, adquiriu tal conhecimento, tal compreensão filológica dos autores gregos e latinos, que ao sair do colégio não lhe restaria grande coisa a aprender quanto ao conteúdo, mas apenas continuar a aprofundar o aspecto puramente técnico da filologia”.

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Cf. carta a Franziska e Elisabeth Nietzsche de 10 de maio de 1865, KSB 2.53. Bonn era conhecida como “a universidade do ‘método’”, destacando-se a sua filologia pelo rigor científico de seu procedimento histórico-crítico, adotado amplamente também por outras disciplinas históricas. A esse respeito, cf. Christian Benne (2005, pp. 46-68).

42 Cf. BAW 3.296, setembro de 1867/abril de 1868. Na mesma anotação (p. 300), Nietzsche menciona

ainda o elogio que recebe de Ritschl por conta do rigor metodológico de um trabalho que havia apresentado, em 1866, em uma sociedade filológica que fundara pouco antes com colegas. Sobre esse ponto não se alterará a opinião de Ritschl. Em fevereiro de 1873, ele afirma a Wilhelm Vischer que Nietzsche põe em prática “o mais rigoroso método de uma pesquisa científica qualificada”, o qual, todavia, nele convive com um lado wagneriano e schopenhaueriano, lado esse fantástico, artístico, místico e religioso (KSA 15, p. 46). Da relevância daquele elogio pode-se ter uma ideia à luz da consolidada reputação metodológica de Ritschl. O próprio Nietzsche, em carta a Paul Deussen de 4 de abril de 1867, afirma: “Ele é o único homem cuja censura ouço com prazer, porque todos os seus juízos são tão saudáveis e poderosos, de tal tato para a verdade, que ele é para mim uma espécie de consciência científica” (KSB 2.205).

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para “considerações gerais sobre a metódica do estudo filológico”43

. Ali, sublinha a necessidade de se aprender um “método correto”, que não se adquire senão mediante exercício contínuo. Para tanto, o período universitário revela-se particularmente decisivo ao possibilitar três tipos de prática metodológica: os cursos exegéticos, em que o estudante deve “captar corretamente o método do professor”; os seminários, úteis para a “formação metódica” ao permitirem que os próprios participantes se dediquem com profundidade a “um pequeno escrito” e a “um determinado problema elevado”; por fim, a leitura de filólogos, Ritschl acima de todos, que empreguem métodos corretos.

Se a cientificidade da filologia reside em seu procedimento, cumpre então perguntar em que consiste tal método. Para responder a essa questão, convém deter-se um pouco mais no exame de fragmentos póstumos anteriores ao curso Enciclopédia da

Filologia clássica, que constituem uma reflexão importante sobre o método filológico

em particular e, por extensão, o científico em geral.

Uma pista inicial oferece a passagem já mencionada de Rückblick auf meine

zwei Leipziger Jahre: por método entende-se ali o “modo de tratamento de um texto” (BAW 3.296, setembro de 1867/abril de 1868). Semelhante compreensão não é fortuita, mostrando-se antes a base de projetos em que se engaja Nietzsche. À mesma época, segundo informa na carta a Carl von Gersdorff de 16 de fevereiro de 1868, ele empreende uma pesquisa sobre a autenticidade dos escritos de Demócrito e planeja em seguida uma obra de maior alcance destinada à “apresentação dos estudos literários dos antigos, em que resultará o desenvolvimento do que hoje se denomina história literária” (KSB 2.255 e 256). Encerrando interesse não só filológico como também científico e

43 Sobre a referência ao “filólogo ideal”, cf. a carta a Erwin Rohde de 7 de junho de 1871 (KSB 3.197).

Quanto ao curso, cf. KGW II/3.388-390. Nietzsche se distingue da tradição, no entender de Céline Denat (2010; 2012), na medida em que esta priorizou a teoria sobre o método em detrimento de sua prática efetiva. Já na filologia, de acordo com Nietzsche, o simples ensino metodológico não se substitui à prática. De igual maneira, ao mesmo tempo em que faz uso de um método rigoroso para elaborar sua concepção de mundo, ele abre mão de uma metodologia, isto é, de um discurso sobre o método. Com efeito, no parágrafo 36 de Para além de Bem e Mal, em que apresenta uma formulação da teoria da vontade de potência, o autor se vale do princípio de economia, mencionado só uma vez na obra publicada e raramente nos fragmentos póstumos (investigamos em outra ocasião o modo como Nietzsche formula sua concepção de mundo; cf. Eder Corbanezi, 2018). Embora não constitua uma teoria sobre o método aos moldes da tradição, importa ressaltar, com Céline Denat, que Nietzsche empreende sobre o tema uma reflexão multifacetada, abundante e contínua, do início ao fim de sua obra. Em alguns momentos, a nosso ver, ele chega mesmo a imprimir certo grau de sistematização em suas considerações, como atestam diversos tópicos do curso Enciclopédia da Filologia clássica, que oferece ensejo à teorização e ao ensino do procedimento filológico, ainda que ali sejam centrais a recomendação da prática e a prescrição do estudo de filólogos não que teorizem, mas que empreguem corretamente o método. De resto, em vista de notas como aquelas introduzidas pelo título Zur Quellenkunde und Methodenlehre der griechischen

Litteraturgeschichte (BAW 5.184, outono de 1868/primavera de 1869), não nos parece que Nietzsche

abandone a pretensão de conceber uma teoria sobre o método, ainda que guardando diferenças em relação aos discursos tradicionais.

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filosófico44, ambos os projetos ensejam uma série de considerações metodológicas. Nelas, o avanço da “pesquisa histórico-literária” vincula-se justamente ao “gradual desenvolvimento do trato com o texto” (BAW 3.340, outubro de 1867/abril de 1868).

O que Nietzsche valoriza nesse manejo textual é, antes de tudo, certo éthos do pesquisador, a saber, o ceticismo diante da tradição que transmite os documentos escritos e que exprime informações e avaliações sobre si mesma: “Para um pesquisador histórico-literário de nossos dias, não é mais decoroso dormir comodamente às sombras da tradição”, anota ele45

. A nova postura do investigador reflete duas mudanças procedimentais, responsáveis pelo avanço metodológico (BAW 3.339 e 341, outubro de 1867/abril de 1868). A primeira delas consiste no abandono do simples critério aritmético outrora adotado pela pesquisa de fontes: em épocas passadas, argumenta Nietzsche, as discrepâncias entre os documentos utilizados para estabelecer um determinado fato resolviam-se, no âmbito da história literária e da crítica textual, com base no maior número de determinados testemunhos; agora, contudo, a maior quantidade de certos manuscritos ou provas não basta para apoiar uma decisão, devendo-se antes ponderar que simplesmente contar. A segunda atitude, mais fundamental, equivale a uma generalização da dúvida aplicada às declarações dos antigos: sendo essas incessantemente questionadas, “desaprendeu-se gradualmente a

44 Cf. a mencionada carta a Gersdorff (KSB 2.255) e BAW 3.332 e 348-349, outubro de 1866/abril de

1868.

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Cf. BAW 3.340, outubro de 1867/abril de 1868. Relevantes para essa posição de Nietzsche são os estudos do filólogo clássico Valentin Rose, que tem por principal domínio de pesquisa justamente a pseudoepigrafia. É verdade que o ceticismo, traço importante da filologia clássica desde os seus primórdios, recebe novo impulso a partir do século 18 com Wolff, em cuja tradição se inscreve Rose e pretende inserir-se também Nietzsche (PORTER, 2000, pp. 38 e 39). O próprio Nietzsche, em suas anotações de leitura do livro de Rose intitulado De Aristotelis librorum ordine et auctoritate

commentatio, destaca uma passagem a respeito da origem longínqua da pseudoepigrafia: “Os inícios da

biblioteca de Alexandria são os inícios da ψευδεπιγραφία” (cf. BAW 4.552, outono de 1866/outono de 1867). Mesmo assim, a importância e, sob vários aspectos, o caráter até mesmo inaugural do trabalho de Rose aos olhos de Nietzsche se fazem notar em um fragmento póstumo elaborado entre o outono de 1867 e a primavera de 1868 (BAW 4.71-72). A orientação geral da pesquisa de Rose, que consiste em identificar as “tendências de falsificação de moeda” (BAW 4.72) e em colocar em dúvida a tradição, seguramente interessa a Nietzsche em vista de seu planejado trabalho sobre a autenticidade dos escritos de Demócrito, projeto que se move justamente pela suspeita de “uma enorme falsificação literária” (carta a Carl von Gersdorff de 16 de fevereiro de 1868, KSB 2.255). Ademais, em um fragmento póstumo elaborado entre julho e setembro de 1867, Nietzsche defende que o problema aristotélico, tal como colocado por Rose, “encerra as questões essenciais da história da literatura antiga” e inicia “um movimento que gradualmente abrangerá o conjunto da antiga literatura grega” (BAW 3.248-249). Embora critique diversas teses de Rose (cf., por exemplo, BAW 4.64 e 80), Nietzsche conserva seu interesse em um ponto – e parece disposto a conservá-lo mesmo no caso de generalização das discordâncias: “[...] suposto que a construção de Rose fosse caduca, ainda assim permaneceria a mesma a intuição universal sobre o desvalor da transmissão” (cf. BAW 4.72). A respeito de outros aspectos da leitura de Rose feita por Nietzsche, cf. James I. Porter (2000, pp. 32-81) e Hans Joachim Mette (1994, pp. 598-600).

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excessiva piedade em relação aos testemunhos antigos” (BAW 3.341). O desenvolvimento metodológico implica, em outros termos, a substituição de uma “ética feminina” de “silenciosa veneração aos juízos da antiguidade” por uma “ética masculina” da suspeita: “Ilimitada como antes era a confiança é agora a desconfiança, e ética parece agora a dúvida, assim como antes era a crença”, arremata (BAW 3.341).

É verdade que Nietzsche sempre denunciará a prejudicial introdução de noções morais nas teorias científicas e filosóficas, como é o caso da teleologia e da crença no valor absoluto da verdade46. Se o espírito científico se constitui a partir do esforço para depurar-se de tais preconceitos morais, ele próprio, entretanto, comporta uma certa ética composta por virtudes como, entre outras, a probidade, a coragem e a virilidade para o permanente questionamento e autoquestionamento, a prudência e o rigor nas investigações, além do sentido para os fatos. Já no fragmento póstumo em tela se pode notar que, aos olhos de Nietzsche, a evolução do método científico não consiste num processo puramente epistemológico, mas encerra em si uma dimensão, ou melhor, uma transformação ética, que no caso da filologia se traduz no ceticismo diante da tradição: “Aqui vemos como conhecer e querer, bom senso e moral desempenham um papel conjunto no gradual amadurecimento do método de uma ciência”, escreve, após louvar a substituição da ética feminina da fé cega pela ética masculina da desconfiança irrestrita (BAW 3.341).

Minando a crença na tradição e nas informações que ela fornecia sobre si própria, evidenciando a fragilidade do que se tomava por certeza, aniquilando, enfim, “todo resto de dogmatismo”, aquele ceticismo do método filológico ainda não alcança limites e em muitos não faz senão produzir intranquilidade (BAW 3.339-341). Na avaliação de Nietzsche, porém, não há motivo para tamanha inquietação nem para identificar na prevalência da suspeita ilimitada um “sintoma de doença de nossa ciência”. É que, no seu entender, o ceticismo metodológico levado ao extremo tende a encontrar fronteiras ou, quando menos, a produzir bons frutos. Prova disso é que estudos orientados por aqueles princípios iluminam temas filológicos centrais, como as questões homérica, platônica e aristotélica. De pesquisas daquele perfil resulta, ademais, uma série de contribuições adjacentes, que patenteiam aspectos até então latentes da antiguidade. Mas – eis o mais importante – o ceticismo, que inicialmente põe sob suspeita a tradição, pode até mesmo terminar por atribuir-lhe novamente razão, só que

46 “O método da pesquisa só é alcançado quando se superam todos os preconceitos morais.” (FP 14[103],

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agora por um procedimento mais consistente. “Um hegeliano”, escreve Nietzsche, bem poderia resumir tal processo afirmando “que procuramos estabelecer a verdade pela negação da negação”47

.

Tomando o ceticismo como uma virtude metodologicamente necessária, ele faz aparecer a sua insuficiência e aponta para a sua superação. Mesmo assim, tal superação não se dá em nome de verdades absolutas, mas apenas, quando muito, de certezas provisórias. A rigor, porém, o ceticismo enquanto dúvida e autoquestionamento não deve apagar-se jamais: aplicando-se já ao próprio método filológico, a desconfiança se impõe a fortiori aos resultados por meio dele obtidos.

É verdade que, no fragmento póstumo em tela, Nietzsche afirma que, ao voltar o ceticismo contra si mesmo, procura “a verdade pela negação da negação” ou, segundo outra formulação, restituir à tradição os direitos que lhe haviam sido subtraídos, dando a ver, em todo caso, um natural movimento de autossuperação da dúvida.

Na mesma anotação, porém, o jovem filólogo atribui o surgimento do método crítico ao bom senso, que, todavia, longe de ser “algo consistente, permanente durante todas as épocas”, não é mais do que “um perpetuum mobile” (BAW 3.340). O bom senso não consiste, portanto, num meio para se chegar a verdades absolutas – nem mesmo no tocante aos métodos; ao contrário, tendo valor puramente sintomático, aquele bom senso constitui tão somente “um tipo de medida das capacidades lógicas de um período, de um povo, de uma ciência, de um homem” (BAW 3.340-341). A crença de que os juízos emitidos em todas as épocas teriam de concordar entre si caso proviessem do bom senso revela-se então “um grande erro, que a história de toda ciência refuta”.

Seguramente a história da filologia, e já no tocante ao método. Com efeito, ao procurar dirimir suas dúvidas em relação a determinados fatos adotando o critério do maior número de testemunhos, como vimos há pouco, os antigos pesquisadores da história literária acreditavam agir na crítica textual segundo as exigências do bom senso (BAW 3.341); no entanto, como também sabemos, o avanço do método filológico se deve justamente ao abandono de tal critério. Um método científico não é, portanto, algo que se descubra de uma vez por todas; na realidade, ele constrói-se historicamente, como produto de constante pesquisa, estando sujeito a descaminhos. E o mesmo se dá,

47 A mesma ideia está presente na passagem da já mencionada carta a Carl von Gersdorff de 16 de

fevereiro de 1868 (KSB 2.255), em que Nietzsche expõe seu planejado trabalho “sobre os escritos de Demócrito”. Inicialmente motivado pela “desconfiança” e perseguindo “uma enorme falsificação literária”, sua “observação cética” termina, contudo, por restituir à “tradição seu direito”; o processo redundaria, em suma, na “salvação da negação pela negação”.

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por conseguinte, com relação aos resultados obtidos pelo método. Assim, o próprio espírito científico e o aprimoramento metodológico que dele resulta terminam por traduzir-se em autoconsciência de sua limitação, inviabilizando a crença em procedimentos que conduzam a verdades absolutas. Permanentemente dirigido à

démarche e ao resultado que dela provém, o ceticismo nunca é, enquanto suspeita,

completamente superado. Delineada já na segunda metade dos anos 1860, essa nuançada posição, que por um lado aponta para a autossuperação do ceticismo e por outro, para a sua conservação, parece ecoar em toda a trajetória de Nietzsche48.

Com olhar deliberadamente cético, o filólogo deve ainda, para completar seu tratamento metodológico do texto, lançar mão do procedimento crítico-hermenêutico, que Nietzsche examina com vagar em suas notas para o curso Enciclopédia da Filologia

clássica. Assim como à época de estudante, seu interesse metodológico, agora enquanto

professor, ainda repousa em razões pedagógico-científicas: “[...] O método crítico- hermenêutico [é] algo incontornável – anota –, é uma garantia de que o futuro professor oferece a si e a seus estudantes uma rigorosa disciplina científica, de que ele não seja apenas diletante, mas transforme”49.

Se a prática científica ensina a “alcançar um fim de maneira adequada”, como dirá posteriormente (HH § 256, KSA 2), e se uma das metas da filologia clássica consiste justamente na “compreensão do clássico”, então “o método crítico- hermenêutico não é senão a forma correta para se aproximar da antiguidade” (EFC, KGW II/3.390). Visando a estabelecer, compreender e julgar os documentos escritos transmitidos pela tradição, o mencionado procedimento pressupõe a capacidade de ler cientificamente, o que não se consegue sem “rigor ético” e “método rigoroso” (KGW II/3.373-5). É que, em uma leitura que conduza “à ciência”, cada passagem deve suscitar “desconfiança” e ser “colocada à prova”, tanto mais que, no caso das obras da antiguidade, “tudo nos é estranho, palavra, som, estilística, caráter do autor, da época, o fato tratado”. Naturalmente, em semelhantes adversidades, a leitura só evolui “com lentidão”, constata o jovem professor, indicando já neste momento características da arte filológica de ler bem que posteriormente serão consideradas próprias de todo procedimento verdadeiramente científico.

48 Essas ideias aparecem, por exemplo, em Humano, demasiado Humano, parágrafos 633 a 635 (KSA 2). 49

Cf. KGW II/3.390. Mesmo em seus últimos escritos, ao contrapor-se à interpretação eclesiástica da Bíblia, Nietzsche continua a se referir à “crítica e hermenêutica” como “educação científica”, que no século 19 produziu as condições para se “ler um livro como livro (e não como verdade)” (FP 11[302], KSA 13).

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Contudo, a despeito de seu caráter científico, o método crítico-hermenêutico não autoriza a pretensão de conhecimento objetivo e definitivo, mas apenas hipotético. Uma das vias que conduzem a essa conclusão restritiva é a reflexão estritamente científica sobre as dificuldades intrínsecas ao âmbito filológico. Já presente em fragmentos póstumos da segunda metade dos anos 1860 e retomada no curso Enciclopédia da

Filologia clássica, essa reflexão suscita ainda generalizações na medida em que permite

identificar determinadas características do conhecimento filológico que, na realidade, se manifestam igualmente em todo saber científico. A outra via que conduz à consciência quanto aos limites do saber científico consiste na crítica filosófica do conhecimento, que, como veremos adiante, prolonga e radicaliza aquela primeira análise estritamente científica, que examinaremos neste momento.

Característica própria ao conhecimento produzido pelas ciências naturais, a formulação de leis se apresenta como meta de toda ciência, inclusive a filologia (BAW 3.365, outubro de 1867/abril de 1868). É exatamente por isto que Nietzsche celebra “o avanço da comparação linguística”: “Aqui se descobrem leis e se adentra nas ciências naturais” (BAW 3.338, outubro de 1867/abril de 1868). E não é outra a pretensão da história literária, domínio em que “não se pode falar em compreensão até que não tenhamos reconduzido algo a uma lei” (BAW 5.187, outubro de 1868/primavera de 1869). De que maneira? “As leis da história literária – esclarece outra anotação – devem resultar de comparação.” (BAW 3.338, outubro de 1867/abril de 1868).

Todavia, por mais que considere a tarefa do estabelecimento dos textos mais