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Capítulo 2. Filologia como lente de aumento: A origem do problema da relação

2.2. Filologia, disciplina híbrida

Desde muito cedo, Nietzsche defende que a filologia constitui um domínio híbrido, composto por outras facetas, que, mais do que simplesmente se somarem ao elemento científico, limitam-no e com ele até conflitam.

Ao procurar em sua aula inaugural determinar o que significa filologia, Nietzsche começa precisamente por analisar sua natureza multiforme: ela é em parte história, pois tenta compreender as individualidades dos povos, bem como as leis que regem os fenômenos; em parte ciência natural, ao investigar o instinto linguístico; mas em parte também ética e estética, propondo-se a estabelecer, a partir de inúmeras antiguidades, uma antiguidade “clássica” ideal, oposta como exemplo à modernidade. Não obstante a sua heterogeneidade, esses impulsos éticos, estéticos e científicos reuniram-se paulatinamente sob o nome filologia, configurando assim uma espécie de monarquia animada pelo objetivo prático-pedagógico de selecionar o que é digno de ser ensinado e contribui para a cultura (HFC, BAW 5.285-286). Nessa monarquia, entretanto, a função de soberano deve ser exercida pela filosofia, que entra em cena para representar tal papel ao fim da conferência.

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É justamente essa sua natureza diversa que explica a ausência de consenso a respeito do que seja a filologia clássica: a ênfase em um ou outro aspecto pode variar segundo a cultura e o gosto de uma determinada época ou ainda de acordo com as capacidades e os desejos de cada um de seus praticantes (HFC, BAW 5.286). Esse juízo geral se aplica, parece-nos, ao caso do próprio Nietzsche. Com efeito, os escritos da segunda metade dos anos 1860 e do início da década subsequente revelam como as suas próprias capacidades e vontades, bem como a sua posição no debate cultural acerca da relação entre ciência e filosofia, se manifestam em sua concepção híbrida da disciplina, que combina elementos éticos, estéticos, científicos e filosóficos.

Que seu caminho para a filologia configura uma via sinuosa, dadas “as muitas direções de meu talento” manifestadas já à época de Schulpforta, o próprio Nietzsche tem plena consciência. Numa anotação autobiográfica imediatamente anterior à mencionada aula inaugural, ao examinar retrospectivamente a trajetória que o conduzira à filologia, ele afirma ter migrado “da arte para a filosofia, da filosofia para a ciência e aqui novamente para um domínio ainda mais estreito” (BAW 5.250-251, outono de 1868/primavera de 1869). E em tal percurso não se trata de abandonar completamente um domínio em nome de outro: “Ciência, arte e filosofia crescem juntas em mim a tal ponto que um dia, em todo caso, darei à luz centauros” (carta a Erwin Rohde do final de janeiro e 15 de fevereiro de 1870, KSB 3.93).

Se, como já mencionamos, abre mão de suas pretensões artísticas em nome da filologia – sem jamais, contudo, ver esmorecer seu interesse pela arte –, Nietzsche chega igualmente a cogitar abandonar a filologia para estudar química ou ainda, noutra ocasião, para assumir uma cátedra de filosofia na Universidade da Basileia52. Frustradas as duas tentativas, resta-lhe procurar conciliar seus múltiplos interesses com as atividades de professor de filologia clássica. Seu métier serve-lhe assim como porta de entrada para reflexões que ultrapassam as fronteiras da disciplina e, ao mesmo tempo, determinam em alguma medida suas ocupações filológicas. É o que o próprio Nietzsche dá a ver em diversas ocasiões.

Na carta endereçada ao conselheiro Vischer em que manifesta o interesse de assumir a cátedra de filosofia deixada por Teichmüller, o então professor de filologia clássica sublinha “a prevalência das [minhas] inclinações filosóficas” desde os tempos estudantis. Tal disposição, insiste ele, sempre se refletiu em seus trabalhos filológicos,

52 Cf., para o primeiro caso, carta a Erwin Rohde de 16 de janeiro de 1869, KSB 2.358, e, para o segundo,

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sensíveis à história da filosofia, bem como a problemas éticos e estéticos, como demonstram seus cursos ministrados na Universidade da Basiléia sobre os filósofos pré- platônicos e sobre a questão platônica53.

Mas a face filosófica, sublinhada na carta a Vischer, constitui apenas um dos aspectos de seus trabalhos filológicos, que oferecem ocasião para Nietzsche penetrar igualmente o domínio das ciências de sua época. Assim, estudos filológico-filosóficos se veem a serviço de seu interesse científico e vice-versa. É o que se patenteia nas notas do mencionado curso sobre os filósofos pré-platônicos, em que convoca as ciências a desempenharem um papel central em suas análises, e em A Filosofia na Época trágica

dos Gregos, que o impele a estudos em matemática, mecânica e química54; nos apontamentos para a pesquisa sobre Demócrito, caracterizado pela “rigorosa cientificidade e metódica”55

; por fim, na carta endereçada a Paul Deussen do final de abril/início de maio de 1868, em que se refere à sua projetada tese de doutorado sobre “O conceito de orgânico desde Kant” como “metade filosofia, metade ciências naturais” (KSB 2.269).

Do fato de ser a filologia a via pela qual Nietzsche se aprofunda na filosofia e nas ciências resultam efeitos tanto em sua concepção de filologia, considerada uma disciplina científico-filosófica, quanto em sua visão sobre a filosofia e as ciências, tomadas metaforicamente a partir de Humano, demasiado Humano como espécies de filologia, isto é, como artes boas ou ruins de leitura de seus respectivos objetos. Sua peculiar trajetória traz consequências ainda para a sua posição sobre a relação entre a filosofia e a filologia, que no fundo reflete sua maneira de pensar o vínculo entre filosofia e ciência de maneira geral, objeto de debate acalorado na segunda metade do século 19. É o que examinaremos a seguir.