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Capítulo 2. Filologia como lente de aumento: A origem do problema da relação

2.3. Subordinação da filologia à filosofia

2.3.2. Filosofia como visão de mundo

Se o apelo ao idealismo kantiano permite às ciências corrigir a ingênua e dogmática esperança de conhecer as coisas tal como são em si mesmas, o recurso a uma visão filosófica de mundo, por sua vez, visa a contornar outras deficiências da filologia, que refletem, no fundo, aspectos das ciências em geral.

Ao término de sua aula inaugural, Nietzsche afirma que toda atividade filológica deve inscrever-se em uma visão filosófica de mundo. Embora naquela ocasião não revele qual, ele explicita, entre outras, na carta a Carl von Gersdorff de 28 de setembro de 1869 que se trata ali de Schopenhauer, cuja “visão de mundo me [é] intrinsecamente simpática” e penetra “cada dia mais meu pensamento, também o científico” (KSB 3.60). Aos olhos do jovem filólogo, porém, como se lê já em Zu Schopenhauer (BAW 3.351- 354, outubro de 1867/abril de 1868), o autor de O Mundo como Vontade e como

Representação está longe de, com o título de sua obra maior e seu “sistema lacunar”, ter

resolvido o “mais importante enigma do mundo”. Mas, se aquele “rigoroso ponto de vista crítico” de Lange, no qual se apoia o ataque epistemológico nietzschiano, torna ilegítima a pretensão a verdades absolutas por parte de qualquer filosofia, tal perspectiva ainda permite a Nietzsche salvaguardar Schopenhauer sob outro aspecto que não o cognitivo. Ao admitir a premissa do autor de História do Materialismo segundo a qual a filosofia, enquanto poesia conceitual, é arte e tem valor ao edificar, Nietzsche conclui por sua própria conta: “Então eu, pelo menos, não conheço nenhum outro filósofo que mais edifique do que nosso Schopenhauer” (carta a Carl von Gersdorff do final de agosto de 1866, KSB 2.160).

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Até mesmo do ponto de vista estritamente lógico, segundo defende Nietzsche em uma série de cartas enviadas a Paul Deussen entre os últimos meses de 1867 e fevereiro de 1870, não só o sistema filosófico de Schopenhauer como o de qualquer outro se encontram ao abrigo de críticas. Para julgar uma filosofia, a seu ver, não basta simplesmente apontar “passagens defeituosas, demonstrações fracassadas, inabilidades táticas” (KSB 2.328): “Não se escreve absolutamente a crítica de uma visão de mundo: mas se compreende ou não se compreende, um terceiro ponto de vista sendo-me insondável” (KSB 2.328). É por isso que, a quem lhe pretendesse “refutar Schopenhauer com razões”, responderia: “Mas, meu caro, visões de mundo não são nem construídas nem aniquiladas com lógica. Eu me sinto em casa nesta atmosfera, você naquela” (KSB 2.229). Não é por escolha racional e consciente, nem por “puro impulso de conhecimento”, mas sim por necessidade que cada um assume a filosofia que lhe é de fato conveniente e autêntica (KSB 3.81): “Provavelmente se escolherá e amará a filosofia que nos explique ao máximo nossa natureza”, esclarece (KSB 3.100).

Faz-se notar assim diferenças já entre os modos de adoção de uma filosofia enquanto crítica do conhecimento e de uma filosofia enquanto visão de mundo: se aquela é expressamente recomendada às ciências com o objetivo epistemológico de evitar o dogmatismo, esta, por sua vez, não pode senão ser assumida por necessidade e, espelhando aquele que a toma para si, encerra, ademais, um valor sintomático.

Essa bem poderia ser a razão por que Nietzsche oculta a philosophische

Weltanschauung a que se refere ao final de sua aula inaugural. Nem por isso, todavia,

ele deixa de evidenciar ali o que dela espera e, por contraste, a que vem contrapor-se: “[...] Toda e qualquer atividade filológica deve ser envolvida por e inserida em uma visão filosófica de mundo, em que tudo o que é isolado e singular se dissipe como rejeitável e apenas o todo e o unitário devam permanecer” (HFC, BAW 5.305). Ao tomar o que é isolado e singular como descartável, Nietzsche vai de encontro à tendência de hiperespecialização da disciplina, que figura como seu objeto de reflexão já na segunda metade da década de 1860.

Em suas anotações, conforme mencionamos, ele compara com recorrência os filólogos a operários de fábrica que se limitam a ocupar-se do parafuso que lhes cabe. Assim, naturalmente, eles atingem a maestria em seus respectivos e estreitíssimos domínios, mas ao preço da ignorância quanto a outras questões mesmo em sua própria ciência e, ainda mais, em filosofia. A consequência mais geral, que produz uma série de

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outros efeitos nocivos, consiste na perda da capacidade para “abarcar um grande todo” (BAW 3.329, outubro de 1867/abril de 1868). Tal inaptidão evidencia-se já nos resultados da própria disciplina: prendendo-se em demasia aos detalhes, constata na carta a Gersdorff de 6 de abril de 1867, a maior parte dos filólogos não alcança “aquela sublime visão total da antiguidade” (KSB 2.209) nem a fruição estética que dela adviria, dado que não convém aproximar-se em demasia de uma pintura para contemplá-la (BAW 5.270, outubro de 1868/primavera de 1869). Mas, para além da própria esfera de atuação, os filólogos mostram-se igualmente inábeis para “estabelecer pontos de vista mais abrangentes sobre o mundo” (BAW 3.329, outubro de 1867/abril de 1868).

Nietzsche, por seu turno, ao falar sobre si mesmo e seus trabalhos em sua correspondência ou ao expressar o que espera da filologia em suas anotações, sempre manifesta a intenção de ampliar seus horizontes, tendo em vista uma forma de totalidade. Se o trato com um escritor ao nível do detalhe não implica necessariamente melhoria da compreensão (BAW 5.271, outono de 1868/primavera de 1869), então é uma “imagem integral” de Demócrito que ele procura estabelecer (carta a Carl von Gersdorff de 16 de fevereiro de 1868, KSB 2.255). Mas não só “em cada investigação singular coloco a perspectiva tão longe quanto possível”, avalia na missiva de 13 de fevereiro de 1868 a Hermann Mushacke, como também “todos os meus estudos se conectam com fios tecidos com firmeza” (KSB 2.253). A Erwin Rohde, em carta de 28 de março de 1870 (KSB 3.112), ele declara aproximar-se de “uma visão total da antiguidade grega” e a Paul Deussen, em fevereiro de 1870 (KSB 3.98), mencionando sua “irmandade espiritual” com a visão de mundo schopenhaueriana, assevera de maneira ainda mais geral: “Também noto como a minha aspiração filosófica, moral e científica ambiciona uma meta e que eu – talvez o primeiro de todos os filólogos – me aproximo de uma totalidade”.

É a filologia que nesse momento se apresenta a Nietzsche como meio para ascender a uma compreensão global do homem e do mundo. Em harmonia com a ideia de que “o frutífero da filologia” reside “em toda parte em que seus estudos tocam o humano-universal” (BAW 3.369, outubro de 1867/abril de 1868), o que lhe interessa em sua planejada história dos estudos literários é menos “os detalhes” do que, justamente, “o humano-universal” (carta a Erwin Rohde de 1-3 de fevereiro de 1868, KSB 2.248). Vislumbrando a possibilidade de, mediante a filologia, conhecer até mesmo a natureza, ele afirma que essa disciplina não se restringe, como se pensa comumente, a ocupar-se

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apenas das “lentes com as quais homens distantes viram o mundo”: “Se procurarmos, porém, entender esses distintos homens e seus pensamentos como sintomas de correntes espirituais e instintos que continuam a viver, então tocamos diretamente a natureza” (BAW 5.195, outono de 1868/primavera de 1869).

Assim, ao buscar perspectivas mais abrangentes e ao considerar seus objetos sob um viés sintomatológico – isto é, não como dotados de verdade em si mesmos, mas como documentos a serem interpretados –, a filologia não está fadada a limitar-se ao conhecimento das formas pelas quais os homens compreenderam o mundo, mas ela própria, mesmo enquanto disciplina específica, pode constituir uma lente de aumento que permite investigar o próprio mundo. A pretensão de ler e interpretar o texto da natureza, portanto, não tem por condição necessária a extensão do conceito de filologia operada explicitamente a partir de Humano, demasiado Humano: a filologia já em seu sentido estrito pode alimentar e, em certa medida, satisfazer aquela ambição66.

Para isso, todavia, o filólogo precisa antes de tudo tornar-se apto a lançar olhares mais abrangentes tanto no interior de sua disciplina como no mundo. É também com esse objetivo que Nietzsche lhe recomenda o estudo da filosofia, que desperta a “coragem para grandes observações” (EFC, KGW II/3.369-372). Exigência, aliás, que formulara já havia algum tempo: “Nossos filólogos devem aprender a julgar de maneira mais ampla e trocar o regateio envolvendo passagens singulares pelas grandes ponderações da filosofia” (BAW 3.338, outubro de 1867/abril de 1868).

Além de contribuir para a filologia captar seus objetos de estudo de maneira mais global, o apelo à filosofia entendida como capacidade de observação séria, ampla e sintética (EFC, KGW II/3.372 e 376) cumpre ainda duas outras funções. A primeira consiste em colocar a filologia em condições de justificar racionalmente seu pressuposto filosófico, ou seja, a classicidade da antiguidade (p. 345), o que exige a comparação desta com a modernidade (p. 372). Dado que, como já vimos, só é possível aproximar- se da antiguidade a partir da modernidade (p. 368), então o filólogo deve voltar a sua atenção primeiramente ao próprio entorno, isto é, “reconhecer como dignos de explicação os mais próximos e universalmente conhecidos fatos”, comportamento que é “característico do filósofo” (p. 372). Faz-se igualmente necessário ao filólogo, entretanto, evitar o perigo maior de sua ciência, a saber, permanecer preso ao que é isolado e particular, para o que terá de ser também um “espírito filosófico abarcador” (p.

66 Estudamos a extensão dos conceitos de texto e de interpretação em Nietzsche noutra ocasião (cf. Eder

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372). Portanto, somente mediante uma visão compreensiva da modernidade e da antiguidade, capaz de abranger uma e outra e de compará-las, o filólogo poderá justificar a classicidade desta última em relação àquela primeira. Para tanto, ele terá de cultivar em si uma aptidão que Nietzsche identifica como visão filosófica de mundo, nomeadamente a capacidade para ultrapassar os detalhes em direção a uma observação global apta a estabelecer julgamentos valorativos e hierárquicos: eis em que consiste “considerar as coisas de maneira séria e grandiosa” (p. 372).

Além de imprescindível para a inserção de fatos particulares investigados pela filologia em uma totalidade, determinando-lhes o sentido e o valor, bem como para a justificativa da classicidade pressuposta pela disciplina, uma visão filosófica de mundo mostra-se também indispensável para que se estabeleçam o sentido e o valor da própria filologia e, por extensão, das ciências em relação à cultura e à vida. Com efeito, tal apreciação requer a capacidade para um olhar sério e abrangente, capacidade que, associada à filosofia, vê-se, quando não aniquilada, substancialmente reduzida pela hiperespecialização científica: “[...] A constante concentração do pensamento em determinados domínios de saber e problemas embota a livre sensibilidade e ataca o sentido filosófico pela raiz”, sublinha Nietzsche na carta a Carl von Gersdorff datada de 11 de abril de 1869 (KSB 2.386).

A intenção de separar-se da filosofia advogada pelos filólogos, portanto, só em aparência resulta de uma decisão metodológica; na verdade, se se entende por filosofia a aptidão para a síntese, então necessariamente os filólogos, dadas a fragmentação e a miopia imperantes em sua ocupação, não poderiam ser ao mesmo tempo filósofos naquele sentido, ainda que quisessem. Em consequência da incapacidade para uma visão compreensiva, eles superestimam a sua própria disciplina e sobre ela se enganam, não se achando em condições de determinar o seu valor e sentido em relação à cultura e à vida. Essa tarefa, em semelhante contexto, só pode então ser realizada do exterior da filologia: se não chega a ultrapassar a análise em nome da síntese, isto é, se não se torna, em certo aspecto, filósofo, então o filólogo não executa mais do que um “trabalho de carroceiro”, tendo de sujeitar-se ao comando de um outro que conferirá sentido ao seu labor (EFC, KGW II/3.375-6). Quem é esse outro e qual é esse sentido, eis o que Nietzsche explicita numa anotação para Wir Philologen em que considera “os filólogos como preparação do filósofo, que sabe utilizar o trabalho de formiga deles para exprimir um testemunho sobre o valor da vida” (FP 3[63], KSA 8).

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Se de fato a filologia padece de uma série de males, daí não se segue que tal tenha de ser necessariamente o seu destino. Que Nietzsche, recorrendo a um suporte filosófico, crê-se protegido das consequências nocivas da especialização e pretende suscitar em seu público uma forma superior de ciência, disso dão mostras as suas autoavaliações e planos professorais presentes em cartas e anotações antes e depois de assumir o seu posto na Universidade da Basileia. Em Rückblick auf meine zwei

Leipziger Jahre, após mencionar a intenção de tornar-se professor, ele apresenta como

seu objetivo prioritário “despertar nos jovens a necessária circunspecção e autorreflexão que os torne capazes de conservar diante dos olhos o por quê?, quê? e como? de sua ciência” (BAW 3.297, setembro de 1867/abril de 1868). Imediatamente em seguida, ele acrescenta: “Não se negará que nesse modo de observar há um elemento filosófico”, para então narrar o seu primeiro contato com a obra de Schopenhauer. De fato, como se lê na carta há pouco mencionada, Nietzsche espera livrar-se do “perigo” da especialização com maior êxito do que os filólogos de maneira geral, “tão profundamente se enraíza [em mim] a seriedade filosófica, tão claramente os verdadeiros e essenciais problemas da vida e do pensamento me foram indicados pelo grande mistagogo Schopenhauer”. E, contando “ser mais do que um preceptor de hábeis filólogos”, manifesta a expectativa de “penetrar minha ciência com esse novo sangue, transmitir aos meus ouvintes aquela seriedade schopenhaueriana” (carta a Carl von Gersdorff de 11 de abril de 1869, KSB 2.386).

Amparado pela filosofia, Nietzsche vê-se ao abrigo das consequências nocivas da especialização na medida em que se julga apto a adotar um ponto de vista mais amplo para estimar o valor e o sentido de sua própria disciplina, inscrevendo-a no contexto da cultura e da vida. É de uma “perspectiva histórico-cultural” mais abrangente que, em oposição à superestima dominante entre os filólogos, ele começa por reconhecer que mesmo os “maiores talentos filológicos”, os quais, por mostrarem-se capazes de dirigir seus pares, desempenham em relação a estes um papel análogo ao dos “empregadores”, não figuram, entretanto, senão como meros “operários de fábrica [...] para algum grande semideus filosófico (cujo maior em todo o último milênio é Schopenhauer)” (carta a Paul Deussen de setembro de 1868, KSB 2.316). Que o prisma cultural adotado para avaliar a filologia deve generalizar-se, é o que indica Nietzsche quando, ao criticar Deussen por tentar livrar a filologia de todo controle, assevera que a

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“toda ciência particular” pergunta se “grandes fins culturais repousam em seu horizonte” (carta da segunda metade de outubro de 1868, KSB 2.329).

Mas é, no fundo, de uma perspectiva vital que Nietzsche avalia as condições e tarefas da filologia. E, ao inscrever a vida no cerne de sua apreciação, manifesta certa concordância com Sêneca. Ao constatar: “Itaque quae philosophia fuit, facta philologia

est”, o pensador estoico (1971, p. 184-185) denuncia um determinado contato com a

filosofia que não se traduz em transformação da vida prática, no sentido de torná-la mais venturosa. A leitura em questão, empreendida por filólogos e gramáticos, ensina simplesmente “a disputar, não a viver”, e é aprendida por quem deseja “cultivar o espírito, sem cuidar da alma”. De resto, tal leitura limita-se a identificar figuras de linguagem e estilo, mas não “preceitos salutares” que deveriam se traduzir em atos (p. 188). Assim, verifica Sêneca, o que era filosofia se torna filologia. Nietzsche, de um lado, chancela a crítica que Sêneca dirige à filologia reduzida a mero interesse teórico alheio à vida prática e, de outro, transpõe à sua própria concepção de filologia a exigência imposta pelo pensador estoico à filosofia, que não deve limitar-se a reproduzir ideias emprestadas de outrem, mas convertê-las em atos transformadores da conduta.

No curso Enciclopédia da Filologia clássica, após evocar novamente a sentença de Sêneca com cuja inversão encerrara a sua aula inaugural, Nietzsche acrescenta: “mero saber, sem influência sobre a vida prática” (EFC, KGW II/3.343). Se o jovem filólogo condena, ele próprio, a simples erudição que perde de vista a vida, não se pode ignorar que, a rigor, a erudição sempre produz algum efeito, quer positivo, quer negativo, sobre a existência. A filologia, em particular, dadas as condições em que se exerce – notadamente sob elevado nível de especialização e unilateralidade, assim como predomínio da micrologia e desconhecimento do mundo e dos homens –, tende a influenciar de maneira especialmente negativa a vida prática, mesmo que em semelhante tendência ela difira apenas em grau, não em natureza, em comparação com outros domínios de saber. Tal preocupação se manifesta numa nota intitulada justamente “Filologia e eticidade”: “Por agora, a ocupação filológica se encontra mais longe da ética do que outros estudos, jurisprudência, teologia, mesmo medicina e ciências naturais” (BAW 4.125, primavera/outono de 1868). No entender de Nietzsche, a filologia deve não só atentar-se à vida prática como também, naturalmente, exercer sobre ela uma influência positiva. De um lado, em vez de unilateralidade, pressupõem- se “múltiplos talentos” e maturidade, isto é, experiência de vida, para familiarizar-se

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com a antiguidade (EFC, KGW II/3.345); de outro, espera-se de tal aproximação não mera reprodução, mas produção (EFC, KGW II/3.368): a autêntica filologia, em resumo, não constitui senão um meio para “transfigurar a existência” (EFC, KGW II/3.437).

Ao tomar a filologia como via para semelhante tarefa, Nietzsche quer evitar que se considere um simples meio como fim. Por certo, é preciso debruçar-se metódica e cientificamente sobre a antiguidade, mas se deve igualmente cuidar para “que o meio daquele impulso científico não se torne fim em si mesmo, menos ainda único fim. Método e conhecimentos são apenas meios” (EFC, KGW II/3.392), adverte67. Embora priorize exemplos filológicos, Nietzsche estende o mesmo raciocínio para todas as áreas do saber científico: “Toda ciência surge quando se considera como fim algo que é meio”, admite ele, para em seguida ponderar: “No entanto, é sinal de uma ciência degenerada, se ela perde de vista a prioridade do fim sobre o meio. [...] Se, porém, sempre ou durante algum tempo falta a capacidade para olhar em conjunto, então degenera a ciência literária”, exemplifica (BAW 3.331, outubro de 1867/abril de 1868).

Tanto o bom funcionamento interno das ciências quanto a apreciação correta de seu sentido e valor quando inseridas no contexto mais amplo da cultura e da vida dependem de uma aptidão que, segundo Nietzsche, a própria prática científica, tendendo à hiperespecialização, à unilateralidade e à exclusividade analítica, contribui para suprimir, isto é, a capacidade para o olhar abrangente e sintético, associada à filosofia. Na realidade, tal prática científica não aniquila toda visão de mundo, mas instaura uma visão de mundo analítico-científica, míope e fragmentária, danosa não só para o exercício interno da ciência como para a sua autoavaliação em relação à cultura e à vida. Para reverter essa tendência, Nietzsche propõe, ao contrário, que tanto os fatos investigados em uma ciência quanto a própria apreciação do valor das ciências se inscrevam em uma visão de mundo filosófica, sintética, totalizante e unificadora, o que exige não a exclusão pretensamente metodológica da filosofia, mas a sua incorporação.

Assim, já na segunda metade dos anos 1860, Nietzsche adota um modo de observação que, a despeito das modificações subsequentes, permanece em toda a sua obra. Por mais que se tenha de cultivar a dimensão metodológica e científica dos domínios de saber, o seu valor e sentido não podem ser determinados – ao menos não exclusivamente – do interior das ciências, mas a partir de uma visão filosófica de

67 Landfester (1979, 158) sustenta que, para Ritschl, por exemplo – mas não só para ele –, “o método

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mundo – ainda que esta tenda a se valer cada vez mais das ciências e até mesmo a transformar-se em uma visão de mundo científico-filosófica, isto é, tão científica quanto possível em seu conteúdo e método e tão filosófica quanto possível em sua forma abarcadora. Do mesmo modo, embora a prática científica rigorosa tenda a conduzir a uma autoconsciência das limitações do método, a crítica filosófica do conhecimento – que procura igualmente cada vez mais amparo no conteúdo das ciências68 – pode oferecer uma contribuição importante na proteção contra o dogmatismo.

2.4. A relação entre ciência e filosofia: Nietzsche, crítico de Schopenhauer e