• Nenhum resultado encontrado

Conforme vimos em Puren (2004), o objetivo cultural do ensino de LE compreende três componentes que são fundamentais para o ensino de LEC: um objetivo cultural alvo, um objetivo cultural fonte e um objetivo cultural geral.

De acordo com Barrett et al. (2013, p. 5), a definição do termo ‘cultura’ engloba três aspectos: o material, o social e o subjetivo. A cultura material é constituída de artefatos físicos que são comumente usados pelos membros de um grupo cultural (por exemplo, as ferramentas, bens, alimentos, roupas etc.); a cultura social é constituída pelas instituições

sociais do grupo (por exemplo, a língua, a religião, as leis, as regras de conduta social, folclore, ícones culturais etc.); e a cultura subjetiva consiste em crenças, normas, memórias coletivas, atitudes, valores, discursos e práticas que os membros do grupo usam geralmente como um quadro de referência para se relacionar com o mundo. Nessa perspectiva, definir "cultura", significa reconhecer que grupos de qualquer tamanho podem ter suas próprias culturas. Isto inclui as nações, grupos étnicos, as cidades, os bairros, as organizações de trabalho, os grupos de trabalho, os grupos de orientação sexual, os grupos de deficiência, os grupos geracionais, as famílias etc. Por esta razão, todas as pessoas pertencem simultaneamente e se identificam com muitas culturas diferentes (BARRETT et al. 2013, p. 5).

Para Holliday (1999, p. 241) o conceito de cultura possui duas interpretações: uma Cultura grande, com ‘C’ maiúsculo e uma cultura pequena, com ‘c’ minúsculo. O primeiro termo refere-se ao conhecimento compartilhado por uma nação ou um grupo étnico. Nesse caso, um sistema cultural consiste em um conjunto de estereótipos que diferenciam “nós” e “os outros” ou o “si-mesmo” (‘Self ’) e o “Outro”. O segundo termo enfoca o comportamento coesivo em atividades que acontecem em qualquer grupo social, por exemplo, no contexto de ensino universitário, a cultura é percebida como a prática acadêmica ou o comportamento profissional usual na academia, ou ainda, a cultura familiar pode ser definida como o conjunto dos comportamentos considerados adequados nos eventos em que diferentes famílias interagem, como à noite, à mesa de jantar.

A dimensão cultural no ensino de LEC prioriza o desenvolvimento de uma consciência intercultural, que consiste no conhecimento, na consciência e na compreensão das semelhanças e diferenças distintivas entre “o mundo de onde se vem” e “o mundo da comunidade-alvo” (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 150). Essa tomada de consciência intercultural inclui a consciência da diversidade regional e social dos dois mundos. Segundo Strecht-Ribeiro (2005, p. 43), essa abertura ao outro,

sem perder a sua própria identidade permite manter a referência à posição da criança que aprende uma língua no contexto do seu país, criando todavia a oportunidade de impedir que essa mesma posição seja a fronteira da sua percepção e do seu pensamento, o horizonte da sua consciência, ou simplesmente a referência absoluta dos seus julgamentos e dos seus actos.

A consciência intercultural transcende o conhecimento objetivo, pois engloba “uma consciência do modo como cada comunidade aparece na perspectiva do outro, muitas vezes na forma de estereótipos nacionais” (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 150). O conhecimento cultural estereotipado, que muitas vezes aparece nos livros didáticos de língua

estrangeira, impede uma compreensão mais profunda da cultura alvo e dos padrões da própria cultura do aluno. O professor precisa estar atento a esses estereótipos, por exemplo, ‘os chineses são sábios’ ou ‘os americanos são ricos’ ou ainda ‘os brasileiros não são sérios’, e procurar sempre trabalhar com material que possibilite um contato mais real das crianças com as situações culturais da língua-alvo. Conforme já salientamos, na seção 2.2, as crianças pequenas ainda não possuem estereótipos formados, de modo que a aula de LEC é um momento oportuno para abordar a questão cultural de uma forma apropriada.

Mas para evitar a formação de estereótipos culturais, o professor precisa também desenvolver a sua consciência intercultural e rever seus próprios estereótipos. Motta-Roth (2008) ao discutir a competência comunicativa intercultural distingue os diferentes objetivos do ensino intercultural no Brasil e nos países da Europa e nos Estados Unidos. Segundo ela, embora a educação intercultural em países europeus e norte-americanos tenha nascido do combate ao preconceito contra culturas não europeias, “no Brasil, nossa preocupação deve ser levar alunos e professores a aprender a apreciar a si e analisar criticamente o ‘Outro’” (MOTTA-ROTH, 2008, p. 296). A autora cita a pesquisa de Moita Lopes (1996) “Yes, nós temos bananas ou Paraíba não é Chicago não”, que discute estereótipos existentes, entre professores de inglês da rede pública de ensino no Rio de Janeiro, relativos a si mesmo e aos membros das culturas de língua inglesa.

Na pesquisa, Moita Lopes constatou uma ‘admiração a priori pelo que é estrangeiro’ e um preconceito quanto às coisas do Brasil. Dos 102 professores de inglês que responderam o questionário proposto, 45% associaram o adjetivo ‘mal- educado’ aos Brasileiros e 0% aos povos de língua inglesa; enquanto que 4% associaram o adjetivo trabalhador aos brasileiros e 56% aos estrangeiros (MOTTA-ROTH, 2008, p. 291)

Essa supervalorização da cultura estrangeira por parte dos professores, precisa ser transformada, caso contrário, ela será absorvida também pelas crianças. O desenvolvimento da consciência cultural no professor e nos alunos poderá evitar o surgimento de atitudes extremas: por um lado atitudes de fechamento, indiferença, desinteresse ou preconceito em relação à língua/cultura estrangeira; por outro, atitudes de supervalorização da cultura estrangeira e total desvalorização da língua/cultura local. Desenvolver uma competência comunicativa intercultural significa “entender a posição do Outro e também nos leva a compreender melhor nossa própria cultura, de tal modo que reelaboramos e ressignificamos nossas práticas a partir do Outro (MOTTA-ROTH, p. 295). Para a autora, “a questão deve ser vista mais como um problema de empoderamento (empowering) de nossa própria identidade (quem somos nós, qual é nossa história) para que possamos vivenciar essa abertura para o

Outro de forma mais paritária” ((MOTTA-ROTH, p. 297). Como afirma Strecht-Ribeiro (2005, p. 43) [...] se o conhecimento de uma outra língua e cultura determina o que é específico da nossa, então aprender uma língua estrangeira talvez seja (ou venha a ser) um requisito primordial para que a nossa identidade cultural prevaleça: a sobrevivência estará, nesse caso, não no isolamento, mas no contraste” .

Em um país de dimensões continentais como o Brasil, onde as diferenças geográficas, culturais, linguísticas e sociais são muitas vezes alvos de preconceitos, abordar a dimensão cultural no ensino de LEC pode ajudar o aluno a reconhecer as tantas outras línguas/culturas existentes no país, como as línguas indígenas, as línguas nas regiões de fronteiras, as línguas dos imigrantes, a cultura afro, a cultura nordestina, dentre outros. Como afirma Strecht- Ribeiro (2005, p. 43)

as crianças que desde cedo aprendem uma língua estrangeira tendem a revelar uma forma mais abrangente de encarar o fenômeno cultural do que as crianças monolíngues que frequentemente são de opinião que os seus hábitos e culturas são os únicos importantes.

Ainda segundo o autor, se a criança for exposta, desde seus primeiros contatos com a língua, a situações bem contextualizadas de uso da língua/cultura alvo, ela poderá desenvolver o respeito e a tolerância pela cultura do outro ao mesmo tempo em que haverá de se conscientizar e se apropriar de aspectos de sua própria cultura.

Além disso, não se deve abordar a dimensão intercultural como “qualquer outro exercício de um ‘workbook’ real ou imaginário e apresentá-la da mesma maneira como se faz com um princípio de aritmética”, pois segundo o autor essa é “a melhor maneira de destruir o interesse de um jovem por qualquer manifestação de tipo cultural” (STRECHT-RIBEIRO, 2005, p. 50). Deve-se procurar trabalhar dentro do próprio mundo das crianças por meio de jogos, poemas, rimas, músicas, brincadeiras, entre outros, preferencialmente os que existem na cultura das crianças cuja língua se está a aprender, pois “saber que uma história ou um jogo em que estão envolvidas é igualmente apreciada e envolvente para crianças de outras culturas é um fator de satisfação” para as crianças (STRECH-RIBEIRO, 2005, p. 52). A internet pode ser uma grande aliada dos professores nesse aspecto.

Para resumir, a dimensão intercultural na aprendizagem de língua estrangeira ajuda a abrir os horizontes da criança contribuindo para que ela saia de seu centrismo, ajudando na formação de atitudes positivas em relação à língua/cultura do outro, bem como na valorização de sua própria língua/cultura. Não basta aprender a respeitar a língua/cultura estrangeira, é preciso também que o aluno aprenda a valorizar a sua própria cultura e a melhor forma de fazer isso é confrontá-lo com a cultura do outro. Portanto, não se pode pensar que só é

possível abordar a dimensão cultural na aula de língua estrangeira quando os alunos já possuírem um conhecimento linguístico mais aprofundado. Desde os primeiros contatos com a língua, esta dimensão poderá ser evidenciada, respeitando sempre as características distintivas das crianças, conforme vimos em 2.2. Como afirma Rocha (2006, p. 94)

A dimensão cultural no ensino de línguas oferece a possibilidade de se trabalhar a etnocentricidade da criança, de estimular sua curiosidade e motivação, de ampliar seu conhecimento do mundo, de fortalecer sua auto- estima, de promover atitudes positivas em relação à diversidade lingüística e cultural, de contribuir para o entendimento e a paz mundial, além de prepará- la para o aprendizado de LE em séries posteriores.