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5. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS E CONCLUSÕES

5.1. Dimensão Doença

Os resultados da análise de conteúdo das entrevistas, em relação à experiência vivida no momento do diagnóstico e à vivência da fase inicial da doença, reforçam as conclusões de investigações anteriores sobre a reacção e adaptação aos processos de doença e de tratamento.

Neste estudo a compreensão da realidade da doença e a reacção emocional ao momento do diagnóstico foram mediadas pela a idade e o nível de desenvolvimento sócio-cognitivo da criança nessa situação, tal como indicaram Rowland (1989) e Barrio (1990). A incapacidade cognitiva para compreender e/ou antecipar a realidade da doença protegeu algumas das crianças do confronto com a sua gravidade.

No entanto, em quase todos os casos a fase inicial da doença foi referida, directa ou indirectamente, como um período de grande agitação/confusão e de interferência com a normalidade da vida quotidiana. Neste caso foram identificados: 1) a sintomatologia inicial que, por vezes interferia com o bem-estar e o funcionamento da criança; e 2) o período de pesquisa do diagnóstico, caracterizado pelo acompanhamento médico persistente e a realização de diversos exames e procedimentos clínicos. Deste modo, percebe-se que, embora a criança não compreendesse a totalidade e a gravidade da experiência vivida, percebia a existência de alterações e de instabilidade ao seu redor

que lhe indicavam que “alguma coisa não estava bem”: “Não sei, eu fiquei um bocado apática porque aquilo aconteceu tudo tão rápido! (...) Sabia que alguma coisa estava a acontecer e não era boa, por isso fiquei no hospital” (Caso F.).

Este abalo no equilíbrio do ecossistema da criança foi muitas vezes minimizado pelo suporte familiar enquanto fonte de segurança e de conforto. Estes resultados vão ao encontro das investigações realizadas por Shepherd e Woodgate (2010), Prouty e colaboradores (2006), Duffey-Lind e colaboradores (2006), Suzuki e Kato (2003), Banner e colaboradores (1996), Rowland (1989) e Rait e Lederberg (1989). Estes autores evidenciaram a importância da família, nomeadamente dos pais, no confronto com as situações adversas, dolorosas e desconhecidas do processo de doença.

Tal como mostraram estes autores, também a presente investigação revelou que a família se assume como um recurso de apoio emocional, de informação e de prestação de cuidados que se mantém ao longo de todas as fases do processo de doença. Os sobreviventes expressaram frequentemente a importância da presença dos pais ao longo da vivência da doença e dos tratamentos: “Foi bom eu saber que, se eu precisasse, ela estava lá e eu era o primeiro a entrar e o último a sair e ela estava lá sempre!” (Caso A.) e “Foi bom eu saber que, se eu precisasse, ela estava lá e eu era o primeiro a entrar e o último a sair e ela estava lá sempre!” (Caso H.).

Mas, se por um lado a presença dos pais representava uma ligação contentora e securizante, por outro lado, as suas reacções emocionais excessivas no momento do diagnóstico foram perturbadoras para as crianças. De acordo com Barros (2003), actualmente não é possível retirar conclusões gerais sobre a influência dos pais no confronto da criança com a situação de doença. Sabe-se apenas que, em situações de grande ansiedade e medo, alguns pais não conseguem oferecer aos seus filhos o apoio e o incentivo de que estes necessitam. Foi precisamente a esta conclusão que a presente investigação chegou.

Nos casos em que os pais se mostraram mais perturbados (e.g. choque, revolta, tristeza, medo) no momento do diagnóstico e expressaram comportamentalmente essa emocionalidade negativa, os filhos experienciaram significações de ameaça/perigo:

“(...) fiquei assustada porque a minha mãe vinha a chorar e porque é que ela não vinha calma e serena. Ela saiu a chorar e a correr” (Caso C.) e “(...) depois lembro-me de ver o meu pai a vir de lá num corredor assim muito cabisbaixo e... pronto... de chegar

ao pé de mim e dizer... dizer que eu tinha uma doença grave (...)” (Caso E). Estes resultados reforçam as conclusões dos estudos anteriormente referidos relativamente à importância do suporte familiar (e.g. Prouty et al., 2006; Duffey-Lind et al., 2006), mostrando que os pais são o principal sistema de apoio e de segurança.

Relativamente à vivência/experiência no momento do diagnóstico, é de referir que neste estudo houve uma sobrevivente que expressou claramente que a experiência passada de doença oncológica no contexto familiar foi determinante da sua reacção emocional no momento de confirmação da doença: “(...) nesse momento caiu-me tudo mesmo aos pés (...) a minha avó (...) também teve uma leucemia e morreu. (...) Portanto eu quando soube, também era pequenina, mas pensei logo “ok, vou morrer como aconteceu com a minha avó” e fiquei em pânico nessa altura” (Caso E.). Indo ao encontro do que é defendido por Barros (2003) e Barrio (1990), a presente investigação também concluiu que a reacção da criança ao momento do diagnóstico é influenciada pelas suas experiências anteriores e pelas crenças sobre saúde e doença transmitidas nos contextos em que esta se insere, nomeadamente no ambiente familiar.

Ainda em relação ao conhecimento da realidade da doença e, particularmente nos processos de recaída, a experiência anterior de doença oncológica também influenciou a reacção da própria criança no momento da constatação da recidiva. Joyce-Moniz e Barros (2005) referiram que o processo de recaída provoca nos pacientes as mesmas reacções emocionais excessivas de ansiedade, disforia ou cólera da notícia inicial do diagnóstico da doença. Este estudo encontrou resultados concordantes com esta teorização.

Num dos casos foi notório que a criança manifestou sentimentos de revolta e reacções depressivas no momento de confirmação da recaída. Esta reacção foi exacerbada pela sensação de que o sacrifício e o sofrimento vivenciados durante o processo de doença inicial foram inúteis ou insuficientes, conduzindo a atribuições de descontrolo e de incapacidade de confronto com a nova situação de doença: “Fiquei transtornado com a notícia. Não pensei que voltasse a ficar doente mas... Comecei a perguntar “porquê?”, “porquê a mim?” e não sei quê mas... Pronto! Mas a minha mãe disse que eu tinha de enfrentar” (Caso J.).

Se se considerar que o cancro é uma doença grave e com um prognóstico imprevisível, o confronto com um processo de recaída pode conduzir a significações de

ameaça/perigo. De acordo com Joyce-Moniz e Barros (2005), estas significações negativas não podem ser consideradas como irracionais ou infundadas porque resultam da percepção da vivência de uma realidade concreta e sofrida.

Neste sentido, o apoio dos profissionais de saúde revelou-se muito importante para ajudar a criança/adolescente a minorar os efeitos devastadores da recaída. Apoiando os resultados do estudo desenvolvido por Woodgate (2006), a presente investigação mostrou que o suporte emocional, a atenção às queixas e necessidades individuais e as competências instrumentais/técnicas da equipa de saúde se revelaram essenciais para uma melhor adaptação da criança/adolescente ao processo de doença/tratamento: “Eu acho que foram essenciais porque, apesar do apoio da família, uma doença não se cura só com o apoio da família” (Caso D.).

A presente investigação permitiu ainda concluir que o conhecimento do processo de recidiva pode assumir-se como uma forma de confronto e de elaboração da experiência passada de doença. Um dos sobreviventes afirmou que o momento da constatação da recidiva possibilitou o conhecimento e a compreensão da doença inicial, uma vez que os pais lhe ocultaram informação sobre esse período. Este resultado é apoiado por investigações anteriores que evidenciam que os pais tendem a adoptar uma atitude de sobreprotecção dos filhos no sentido de ocultar algumas informações sobre a doença oncológica e a experiência passada (Duffey-Lind et al., 2006; Kadan-Lottick et al., 2002; Zebrack e Chesler, 2002).

Contudo, embora o sobrevivente suspeitasse da experiência anterior de doença e fizesse uma avaliação diminuída de si próprio em comparação com os colegas devido a sequelas físicas, o confronto com a nova realidade da doença conduziu a significações de ameça/perigo e à experiência de emoções perturbadoras que dificultaram a adaptação ao processo de recaída. Deste modo, este estudo reforça a importância do fornecimento de informação numa linguagem acessível e adequada ao nível de desenvolvimento cognitivo da criança e à sua capacidade de compreensão da doença, tal como sugerem Barros (2003) e Barrio (1990).

Relativamente à fase activa da doença, os resultados deste estudo evidenciaram o impacto da doença e dos tratamentos nos quatro principais domínios identificados pela literatura: físico, psicológico/emocional, social e familiar. Em muitos casos, o confronto directo com a realidade hospitalar, os tratamentos e os efeitos secundários da terapia

contribuíram para o conhecimento da realidade da doença. Também nesta situação e, tal como foi referido anteriormente (e.g. Prouty et al., (2006), Duffey-Lind et al., (2006), Woodgate (2006) e Suzuki e Kato (2003), a disponibilidade de figuras apoiantes e securizantes, como os familiares e os profissionais de saúde, foi essencial para a adaptação a esta fase do processo de doença.

Na literatura os tratamentos para a doença oncológica são associados a um período exigente, complexo, doloroso e sofrido (e.g. Caponero e Lage, 2008; Holland e Lesko, 1989; Eiser et al., 1993; Wallander e Thompson, 1995), o que também foi possível constatar neste estudo. O processo de tratamento e o período de hospitalização foram maioritariamente descritos com base nos procedimentos clínicos aversivos (e.g. dor, canalização endovenosa) e nos efeitos secundários da terapia (e.g. náuseas, vómitos, fraqueza, alopécia). A referência aos tratamentos foi acompanhada pela expressão de sofrimento físico e emocional o que deixou perceber a vivência de uma experiência marcante no desenvolvimento da criança.

Relativamente a esta fase do processo de doença, a presente investigação encontrou como principais preocupações as questões ligadas à imagem corporal e à (re)adaptação ao contexto escolar. Durante o período de doença/tratamento a maioria dos participantes deste estudo encontrava-se em idade escolar, pelo que estas preocupações são concordantes com os dados da literatura (e.g. Barros, 2003; Barrio, 1990).

Em muitos casos a criança interpretou a experiência de doença, hospitalização e tratamentos aversivos com base nas limitações e alterações num conjunto de actividades e comportamentos próprios da sua idade. Assim estar doente era, por exemplo, não poder brincar com os amigos ou faltar à escola: “A única coisa que eu pensava era “não posso ir para a rua brincar com os meus amigos (...)” (Caso G.). Segundo Barrio (1990), este conceito de doença foi construído numa perspectiva mais psicológica ou psicossocial do que biológica.

Contudo, os resultados da presente investigação revelaram que o afastamento do contexto social não constituía apenas uma experiência de isolamento do amigos e colegas. Esta separação representava, acima de tudo, uma situação perturbadora para a criança. Os sobreviventes expressaram explicitamente a sua preocupação com o desempenho escolar devido à ausência das aulas e com as repercussões sociais da nova

imagem corporal devido ao receio de estigmatização. Tal como Barros (2003) e Rowland (1989) afirmaram, esta idade é marcada pela comparação com o grupo de pares pelo que, a experiência de doença e as restrições sociais por ela impostas, podem comprometer o desenvolvimento do auto-conceito, da auto-estima e do sentido de competência da criança.

Para alguns dos sobreviventes a doença/tratamento representou um obstáculo à continuidade do desenvolvimento cognitivo e psicomotor e à normalização da sua vida durante esse período de tempo. Mais ainda, como se verá na Dimensão Sobrevivência, em alguns casos, a doença/tratamento implicou a longo prazo alterações na construção da identidade e nos relacionamentos interpessoais.

Na presente investigação os sobreviventes também identificaram alterações nas atitudes educativas dos pais no sentido de maior sobreprotecção e vigilância em relação à doença oncológica, o que pareceu estar associado à crença de que o filho doente é mais vulnerável do que as restantes crianças. Neste sentido, alguns sobreviventes reconheceram que a atenção, o tempo, os cuidados e o apoio emocional dos pais e da restante família eram dirigidos (quase) exclusivamente a si próprios.

Esta centração familiar na doença foi representada na presente investigação, em dois resultados díspares. Num primeiro caso as alterações no contexto familiar e a integração da doença nas actividades e rotinas diárias implicaram uma diminuição do bem-estar geral do irmão saudável, o que está de acordo com as conclusões de Bluebond-Langer (2000a, 2000b). A sobrevivente chegou a verbalizar espontaneamente “(...) porque nós quando estamos doentes os irmãos quase que ficam transparentes”,

assemelhando-se à metáfora utilizada por Bluebond-Langer (2000a, 2000b): “viver na

sombra da doença”.

Num outro caso, embora tenha sido afirmado que houve uma centração no processo de doença, foi assegurado que o equilíbrio e proximidade familiares se mantiveram ao longo dessa experiência havendo uma participação activa de todos os elementos do agregado familiar.

No entanto, contrariamente aos resultados da investigação de Prouty e colaboradores (2006) que conclui que os sobreviventes fornecem pouca informação sobre os irmãos ou fazem-no de uma forma impessoal, no presente estudo os sobreviventes falaram abertamente sobre o impacto da doença na qualidade da relação

fraterna. Neste caso, foi possível obter resultados muito variados.

Tal como foi supramencionado, houve sobreviventes que reconheceram que as alterações familiar e psicossociais decorrentes do processo de doença conduziram a diferenças notórias na relação que os pais tiveram com cada um dos filhos. Noutros casos foi referido que os irmãos saudáveis não compreenderam a realidade da doença, o que os protegeu do confronto com a gravidade desse processo. Por fim, ainda houve uma sobrevivente que afirmou que a doença contribuiu para uma proximidade relacional com o irmão, salientando a cumplicidade e o apoio emocional desenvolvidos durante o processo de doença.