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A presente investigação teve como objectivo principal estudar, de uma perspectiva exploratória e qualitativa, a experiência subjectiva dos sobreviventes de cancro pediátrico em relação à doença oncológica. Partindo deste propósito definiram-

se quatro objectivos específicos que visavam abordar: a vivência da transição para a sobrevivência e do período de sobrevivência; as motivações dos sobreviventes para a participação em acções de voluntariado em contexto oncológico pediátrico; e a relação entre a sua experiência subjectiva da doença oncológica e o voluntariado.

O presente estudo e a temática que o orientou surgiram principalmente pela inquietude e fascínio provocados pela complexidade da doença oncológica pediátrica e pelo interesse em perceber o que move os sobreviventes a dedicarem-se ao apoio e acompanhamento de doentes oncológicos, oferecendo-se à possibilidade de reviver a sua experiência passada.

Chegada a fase final da presente investigação conclui-se que, por um lado, os resultados confirmaram grande parte das conclusões de estudos anteriores e, por outro lado, evidenciaram ligeiras diferenças ou aspectos complementares em relação a outras investigações semelhantes.

Um dos aspectos mais relevantes é a constatação da transformação das significações dos sobreviventes entre o período activo de doença e o período de sobrevivência. Esta asserção evidencia que a adaptação à doença crónica é um processo contínuo e dinâmico, constituído por fases de maior equilíbrio e outras de maior emocionalidade negativa.

Na fase inicial do processo de doença (confirmação do diagnóstico e conhecimento da realidade da doença) a protecção à informação funciona como um facilitador importante da adaptação, evitando o confronto inesperado com uma realidade desconhecida e assustadora. No entanto, ficou evidente que, ao longo do tempo, o acesso à informação torna-se fundamental para ajudar a criança a interpretar as experiências de doença, hospitalização e tratamento. A criança inicia, normalmente, o conhecimento da realidade da doença (severidade e implicações) com o confronto directo com o período de tratamentos, pelo que beneficia assim desta informação (adequada às suas competências e ao seu nível de desenvolvimento sócio-cognitivo) para poder compreender e antecipar o que lhe vai acontecer.

É neste aspecto que a doença oncológica se distingue das restantes doenças crónicas, pelo impacto psicológico e somático, aversivo e doloroso dos tratamentos e pelos períodos prolongados de hospitalização que obrigam a mudanças irreversíveis na saúde e na vida da criança/adolescente. Nesta fase do processo de doença

(hospitalização/internamento) os procedimentos clínicos e os sintomas adversos ganham centralidade. Consequentemente, também ganham importância as questões relacionadas com a imagem corporal, o que perturba a adaptação ao processo de doença e as relações com o próprio e com os outros. É, portanto, uma fase constituída por significações negativas muito prementes.

Ao longo desta fase as fontes de suporte são valorizadas e consideradas muito importantes, concretizando-se num núcleo muito restrito: a família, nomeadamente os pais. Geralmente, este apoio emocional e instrumental é assumido pela mãe, desempenhando um papel importantíssimo no conforto e tranquilidade da criança. No entanto, esta constatação sugere que há uma diminuição das actividades sociais e profissionais destas mães e uma centração exclusiva na doença e nos cuidados ao filho doente. Deste modo, é expectável que as relações familiares e, muito especificamente as relações conjugal e materna com os filhos saudáveis, fiquem fragilizadas, tal como indicaram estudos referidos na literatura e como se constatou nos resultados da presente investigação.

No entanto, há também uma valorização da relação com os profissionais de saúde avaliada, por um lado, em termos de humanização dos cuidados e atenção às queixas/necessidades individuais e, por outro lado, em termos da competência profissional e aptidões instrumentais específicas. É assim evidente a consciencialização da importância do papel da equipa de saúde para a evolução satisfatória do processo de doença.

A evolução do processo de doença oncológica pediátrica culmina, muitas vezes, na controlabilidade da situação clínica, o que permite a alta-hospitalar e a entrada no período de transição para a sobrevivência. Esta fase foi associada a significações positivas devido à cessação dos efeitos adversos da terapia e à melhoria do estado de saúde. Consequentemente, a atenção é centrada na reestruturação e normalização da vida quotidiana, ganhando importância o regresso ao contexto familiar e a reintegração na escola. Esta fase do processo de doença constitui assim um período positivo na vida da criança.

Contrariando as conclusões de outros estudos, na presente investigação este período (imediatamente após o terminus do tratamento) não foi directamente associado a uma fase de ambivalência e vulnerabilidade psicológica. Esta instabilidade emocional

foi relatada com maior expressividade durante o período de sobrevivência, evidenciando uma consciencialização da cronicidade do problema e uma diminuição da valorização “irrealista” dos aspectos positivos associados ao momento da transição.

Relativamente à relação com os profissionais de saúde, os resultados desta investigação tornam evidente que a declaração da alta hospitalar contribui para uma alteração das características da relação no sentido de maior afastamento relacional e emocional sem que isso constitua, na sua generalidade, um foco de ansiedade e de perturbação à adaptação da criança/adolescente. No entanto, as mudanças na relação com a equipa de saúde e a realização de acompanhamento médico mais espaçado no tempo promovem atitudes de hipervigilância nos pais em relação ao estado de saúde dos filhos, o que está associado a tentativas de controlo dos sentimentos de incerteza sobre o futuro e medo da reacaída.

Durante o período de sobrevivência os sobreviventes também expressam esta emocionalidade negativa associada a sentimentos de incerteza e receio em relação à evolução da doença. A consciencialização da presença de efeitos adversos e da cronicidade do estado de saúde contribui para a referida ambiguidade emocional, uma vez que a alegria de estar vivo colide com o medo contínuo da recidiva e a imprevisibilidade do prognóstico.

A presente investigação confirmou que os processos de doença e de tratamento implicam a longo prazo alterações significativas aos níveis físico, psicológico/emocional, familiar/social e espiritual, embora os sobreviventes tendam a fazer avaliações positivas da sua qualidade de vida. Ficou evidente que, ao longo do tempo, os sobreviventes procuram uma adaptação satisfatória no sentido de maior normalidade e reorganização da vida quotidiana e de centração no presente. As significações de doença vão perdendo centralidade (sem nunca perderem importância) e os aspectos relacionados com o bem-estar geral, a integração no grupo de pares e a readaptação ao contexto escolar adquirem relevância. Concomitantemente, verifica-se uma valorização de aspectos positivos relativos ao período de doença, como se se tratasse de uma tentativa retrospectiva de minimizar o sofrimento vivido durante essa fase.

Este esforço de adaptação serve, essencialmente, para preservar e promover o equílibrio psicológico, minimizando os efeitos adversos e procedendo à aceitação e

acomodação à cronicidade da doença, o que está de acordo com a objectivação paliativa da vivência de um processo de doença crónica.

Assim, conclui-se que, embora os sobreviventes consigam um ajustamento adaptativo às consequências inerentes à condição de sobrevivente, a experiência da doença oncológica permanece presente além do período de doença activa e do momento pós-hospitalização. A doença enquanto parte integrante do percurso de vida obriga ao confronto, elaboração e compreensão da experiência passada no sentido de “arrumar esse capítulo da vida”.

No entanto, esta construção de uma nova forma de viver depois do processo de doença leva, muitas vezes, à constatação de que há informação sobre a experiência passada que foi omitida pelos pais. Esta tentativa de proteger os filhos do confronto com a realidade da doença é adaptativa nas fases iniciais do processo mas impede a adaptação a longo prazo. Esta constatação torna evidente que a construção da experiência passada de doença dos sobreviventes é feita aos olhos dos pais, tornando-se por isso incompleta.

O conhecimento da informação sobre a situação clínica é fundamental não só para a adaptação do sobrevivente, mas também para o desenvolvimento de autonomia e responsabilização em relação ao estado de saúde e à participação activa e informada no acompanhamento de follow-up.

A procura de informação torna-se mais evidente nos sobreviventes em que o diagnóstico foi realizado numa idade muito jovem. Nestes casos a falta de ligação com a experiência passada revelou-se adaptativa, uma vez que o sobrevivente não recorda o período doloroso da doença e foca-se unicamente no momento presente. No entanto, sente um vazio na elaboração da sua experiência passada, o que o remete para uma procura activa de informação.

A falta de informação sobre a situação clínica e, por vezes, o evitamento de uma comunicação aberta sobre a doença oncológica no contexto familiar constituem motivos para a procura de apoio junto de outros sobreviventes ou para o envolvimento no contexto oncológico pediátrico, numa tentativa de compreender e completar a experiência pessoal de doença. Esta asserção evidencia que os sobreviventes consideram que a totalidade da sua experiência passada só é compreendida pelas pessoas que passaram por uma experiência semelhante.

Esta consciencialização da exigência e complexidade do processo de doença e das suas implicações na vida dos doentes e das famílias representa assim a principal motivação dos sobreviventes para a prática de voluntariado. Este interesse e necessidade de apoiar os doentes e as famílias está associado ao desejo de transmitir um testemunho real de esperança que minimize o sofrimento do próprio sobrevivente e dos outros em relação ao processo de doença.

Reforçando os resultados de estudos anteriores, esta investigação concluiu que a mudança para o período de sobrevivência e construção de uma “nova normalidade” marcada pela experiência passada de doença servem de incentivo para a mobilização para actividades de voluntariado no contexto oncológico, o que se assume como uma estratégia de confronto com a nova etapa de vida. Há assim a necessidade de resolver (minimizar e controlar) os aspectos da experiência passada que representam obstáculos à adaptação satisfatória ao período actual.

Os sobreviventes procuram no voluntariado a possibilidade de atenuar a sua emocionalidade negativa relativamente ao passado (compensar a falta de apoio, criar uma ligação com a situação que não foi vivida ou controlar a culpabilidade pelo estado de saúde satisfatório), através da minimização do impacto negativo da experiência de doença na vida dos doentes e as famílias.

De acordo com os resultados desta investigação, o voluntariado também permite que os sobreviventes experienciem sentimentos de pertença e de competência e um aumento da auto-estima e auto-confiança, contribuindo para atenuar as dificuldades na reintegração no contexto social e no estabelecimento de relações interpessoais decorrentes da experiência de doença/tratamento. É com isto um forma de promover o sentido de normalidade necessário na nova fase da sua vida.

Paralelamente, os sobreviventes também identificaram motivações como a solidariedade, a vontade de ajuda ao próximo e o desejo de contribuir para o bem-estar e satisfação dos outros, o que pode ser entendido no espectro dos comportamentos pró- sociais e altruístas encontrados em estudos anteriores.

A presente investigação também concluiu que os sobreviventes encontram no voluntariado uma forma de retribuir e agradecer à instituição de saúde os cuidados prestados durante o processo de doença. É assim evidente que as experiências pessoais

positivas em relação ao processo de doença também representam um estímulo para o envolvimento em acções de voluntariado num contexto vivido anteriormente.

No entanto, o confronto com as situações de doença em contexto hospitalar levam à recordação e ao reviver da experiência pessoal passada e contribuem para sentimentos de disforia e sofrimento psicológico. Este resultado veio reforçar a ideia de que o período de sobrevivência constitui uma fase de vulnerabilidade e instabilidade emocionais em relação ao processo de doença. Na presente investigação foi evidente que os sobreviventes têm muita dificuldade em confrontar-se com o seu passado, acabando por revelar sinais de perturbação emocional.

Em conclusão, a presente investigação revelou que, na generalidade, os sobreviventes conseguem um ajustamento satisfatório à doença e à sobrevivência, embora a experiência passada de doença permaneça presente ao longo do tempo e contribua para algum grau de instabilidade emocional. Também foi evidente que a experiência de doença é determinante para o envolvimento em acções de voluntariado no contexto oncológico.

A obtenção de resultados tão consistentes e significativos deveu-se, em grande medida, às opções metodológicas desta investigação. A utilização da entrevista semi- estruturada permitiu adaptar facilmente a sua estrutura à especificidade de cada caso de modo a possibilitar a recolha de informações mais completas que respondessem adequadamente aos objectivos da investigação. Assim, no final do procedimento de recolha de dados foi possível obter uma grande quantidade de informação, o que tornou a apresentação e a análise de resultados muito rica e contribui para a extensibilidade deste trabalho.

Por esta razão houve a necessidade de alterar o procedimento de análise de dados. Inicialmente, tinha sido planeada a utilização de questionários de avaliação da qualidade de vida e das estratégias de confronto que acabaram por não ser tratados estatisticamente, dada a quantidade e qualidade da informação recolhida nas entrevistas de profundidade. Deste modo, os dados quantitativos serão tratados em futuras investigações dentro da mesma temática.

Assim, um dos aspectos que poderá enriquecer investigações futuras similares, será a utilização de instrumentos quantitativos que permitam a obtenção de resultados

mais precisos que complementem a abordagem qualitativa e reduzam a subjectividade desta metodologia.

Por outro lado, também será importante a inclusão de múltiplos informantes. Apesar do objectivo desta investigação estar centrado na experiência subjectiva da vivência da doença em sobreviventes de cancro pediátrico, será importante considerar futuramente os relatos dos pais, dos médicos e dos professores. Nestes casos será possível conhecer diferentes perspectivas sobre a adaptação da criança/adolescente nos vários contextos em que está inserida, tornando-se um complemento para uma análise mais aprofundada e para conclusões melhor sustentadas.

Para finalizar e, por tudo o que foi exposto ao longo da presente investigação, podem identificar-se as suas duas principais implicações práticas no acompanhamento clínico em contexto de oncologia pediátrica.

Primeiro, esta investigação demonstra que a adaptação à doença oncológica é um processo interminável e que não decorre apenas dos aspectos da doença. Os resultados revelaram que o acompanhamento prestado aos pacientes centra-se numa perspectiva biomédica, o que faz com que os doentes e os sobreviventes não se apercebam da importância de uma abordagem mais abrangente.

Deste modo, conclui-se que a criança/adolescente deve ser acompanhada durante os períodos de doença activa, de transição para a sobrevivência e de sobrevivência. Este acompanhamento deve ocorrer numa colaboração entre a equipa multidisciplinar de saúde, contribuindo para uma intervenção que deve ir além dos paradigmas biomédicos e que deve integrar a dimensão psicossocial. Os princípios de cooperação e aprendizagem mútua na equipa de saúde serão fundamentais para definir actuações mais específicas que permitam compreender a multiplicidade de processos mediadores, agravantes e protectores que estão envolvidos na experiência de doença. A intervenção deve servir de amparo na normalidade do processo de doença e de socorro nas crises e recaídas do estado de saúde, mostrando aos doentes, aos sobreviventes e às famílias um recurso de suporte presente que facilite a resolução dos problemas que se vão multiplicando durante a cronicidade da doença.

Segundo, a presente investigação concluiu que a intervenção psicológica também tem de ser direccionada aos sobreviventes voluntários. Assim, este estudo tem como último propósito o aprofundamento de conhecimento que, neste âmbito, possa resultar

em intervenções que, por um lado, sirvam de apoio emocional e técnico aos voluntários sobreviventes e, por outro lado, permitam o desenvolvimento de acções de selecção, formação, integração e supervisão dos voluntários no sistema de saúde. Quer-se, portanto, que no trabalho voluntário todos os intervenientes possam beneficiar de relações profissionais, assistenciais e interpessoais tecnicamente mais adequadas e, principalmente, mais humanizadas.