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Dimensões e Tempos do Cuidado de uma Pessoa com Demência

No documento Doença de Alzheimer e cuidado familiar (páginas 104-110)

3. DINÂMICAS FAMILIARES DE ORGANIZAÇÃO DO CUIDADO

3.2 Dimensões e Tempos do Cuidado de uma Pessoa com Demência

O cuidado direcionado aos/às idosos/as com demência envolve dois tipos de atividades principais, que não raro são percebidas em conjunto pelas cuidadoras: atividades domésticas de limpeza e organização e o cuidado ou acompanhamento direto das pessoas. Algumas pesquisas sobre usos do tempo no Brasil e na América Latina66 têm salientado as diferenças e similitudes entre tais funções. Ambas se configuram como um trabalho de atenção prestado para suprir as necessidades básicas dos indivíduos, ao mesmo tempo em

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Las políticas familiares deben ubicarse en este marco tendiente a asegurar la equidad en el acceso a las oportunidades. Pero se requieren nuevas opciones de política que: a) superen los modelos de política familiar que han existido tradicionalmente en América Latina, b) se adecuen a los cambios en las estructuras familiares y a la diversidad creciente de arreglos familiares y, c) tengan una orientación amistosa con la familia (“family-friendly”) y con la mujer.

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Seminário de Uso do Tempo e Políticas Públicas de Cuidado - Reflexões para uma Agenda de Desenvolvimento Sustentável. Organizado pela SPM, 2012.

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que existem diferenças relativas ao tipo de atividade e envolvimento físico e afetivo necessários.

Desde suas primeiras concepções no Brasil (AGUIAR, 1981), as pesquisas sobre usos do tempo possuem a preocupação de definir quais são as atividades realizadas para suprir o cuidado e a manutenção dos lares e das pessoas e quanto tempo se gasta com cada um desses afazeres. Com essa perspectiva, é aparentemente mais fácil fazer esse cálculo relativo às funções domésticas com a casa e às tarefas de cuidado com pessoas que são mais palpáveis – como dar banho, levar filhos para a escola, etc.

Como citado (nota de rodapé 66), várias das pesquisas recentes sobre os usos do tempo optam pela separação entre o cuidado com a casa e o cuidado direto com as pessoas. O cuidado com a casa envolve também o atendimento com as pessoas – já que o preparo de alimentos e a manutenção de roupas limpas, por exemplo, são direcionados para o bem estar dos indivíduos, ainda que mediados pela interação com objetos. No cuidado tido como “das pessoas” a interação é mais direta, como nos casos de higiene pessoal e atenções com o corpo, em geral.

Ao tratar do cuidado realizado para uma pessoa com D.A. é necessário que essas duas dimensões – das atenções com a casa e com as pessoas – sejam compreendidas e atendidas pelas cuidadoras familiares, mesmo que com o auxílio de empregadas domésticas e cuidadoras contratadas. A contratação dessas últimas se estabelece como a principal estratégia privada das famílias para desafogar o seu tempo de atenção dedicado ao cuidado.

D. Júlia estava passando pelo que os médicos chamam de fase leve ou moderada da D.A., para ela já era um pouco complicado desenvolver as tarefas domésticas: como lidar com a máquina de lavar e organizar-se para limpar a casa. Algumas vezes esquecia-se da função de alguns utensílios domésticos e assim por diante. A tarefa de cozinhar era ainda mais difícil, dado que pensar em um cardápio, lembrar-se de todos os ingredientes na medida correta e não esquecer o gás aberto ou o fogão ligado era uma tarefa hercúlea, que poderia ser realizada de forma segura somente com acompanhamento. D. Júlia ainda não precisava que cuidassem de sua higiene pessoal, mas tinha alguma dificuldade em escolher o que iria vestir.

O cuidado prestado a D. Júlia era basicamente configurado por não deixá-la sozinha e cuidar da casa (substituindo, inclusive, o cuidado que ela mesma tinha com a essa), de

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sua alimentação e de seu bem-estar. No caso de pessoas com D.A. mais avançada, o cuidado também envolve tarefas de higiene pessoal: de auxílio com toalete, de vestimenta e de atenção com a saúde, além das outras atividades já citadas no auxílio de D. Júlia.

Na medida em que as pessoas vão experimentando as perdas comuns ao processo da demência, novas necessidades de auxílio se configuram e o acompanhamento vai se tornando mais intenso. Em fases nas quais as pessoas com demência precisam de apenas alguns cuidados diretos, a divisão entre os tipos de atividades eram confusas no discurso das cuidadoras. A busca de muitas famílias do CMI pela contratação de alguma profissional se relacionava com essa mescla de interesses de contar com pessoas que auxiliassem nas duas dimensões do cuidado – o que acabava acontecendo com a contratação de empregadas domésticas que se dispunham também a cuidar, aumentando o salário das mesmas (quando possível ou quando demandado por elas) ou de cuidadoras que realizavam o serviço de limpar a casa.

Em se tratando de pessoas com D.A./demência mais avançada, era comum encontrar uma divisão maior dessas funções, inclusive acarretando na contratação de profissionais especializadas nos atendimentos de cuidado íntimo e pessoal – como técnicas de enfermagem e cuidadoras. Isso acontecia porque o cuidado direto com as pessoas se tornava mais intenso. Em uma das casas que visitei nos atendimentos domiciliares, conheci uma senhora que já estava há mais de 10 anos com Alzheimer e, naquele momento, já não falava, andava ou conseguia alimentar-se sem o uso de uma sonda. O avanço da D.A. fazia com que as funções básicas de deglutição, movimentação e fala articulada fossem diminuídas ou perdidas. O cuidado com pessoas nesse estágio envolvia todas as funções de higiene pessoal, além de habilidades técnicas para regular a sonda, ministrar os vários medicamentos e movimentar as pessoas em suas camas. Assim, no caso de doentes graves, já acamados, o cuidado e o acompanhamento tornavam-se muito mais densos e a contratação de cuidadoras especializadas nas tarefas de cuidados íntimos e de saúde era mais comum.

A maior preocupação de Camila (filha de D. Júlia) era de contratar uma empregada doméstica, os outros cuidados com a mãe ainda não estavam tão pesados; além disso, essa profissional também daria conta da reprodução para que as outras pessoas da casa estivessem atendidas em seu cotidiano. Como D. Júlia precisava de companhia, mas não demandava muita atenção específica, era importante ter alguém para ocupar o mesmo

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espaço físico que ela – o que liberaria tempo para Camila e para Seu Nestor (marido) aproveitarem o dia de outra forma. Estratégia que, de alguma forma, aumentaria a carga inicial de trabalho da empregada doméstica a ser contratada (o que não modificaria muito a relação entre empregadas domésticas e famílias no Brasil, na qual os serviços de cuidados diretos com pessoas são comumente encarados como parte do trabalho, ou como um favor).

Estar presente no mesmo ambiente físico que a pessoa com D.A. parece ser fundamental para a função de cuidado em todos os estágios da doença, mesmo quando os sujeitos esquecem poucas coisas e dão conta de si mesmos relativamente bem (como D. Júlia). As pessoas com Alzheimer que conheci frequentemente se desorientavam espacialmente e temporalmente, ficavam desconfortáveis, ou até se sentiam pouco seguras estando sozinhas. Além disso, parecia difícil prever quando o sujeito com D.A. passaria por alguma agitação ou confusão que o deixasse vulnerável. D. Amélia em vários momentos se esquecia de que a casa na qual estava morando era da filha e que a sua antiga casa não existia mais. Nessas ocasiões, fazia sua mala e dizia que iria para casa, dirigia-se ao portão e tentava de toda a forma sair. Esses episódios demandavam a intervenção de Carmen; essa tentava acalmar a mãe, fazendo-a recordar que morava agora com ela, ou mediando à situação para que a mesma esquecesse a intenção de sair de casa.

O tempo desse acompanhamento é muito específico, era possível que D. Júlia passasse a tarde inteira passeando pelo jardim – uma de suas atividades prediletas –, mesmo assim, Seu Nestor ou Camila não podiam sair de casa, precisavam estar lá. Dessa forma, é bastante complicado dimensionar de forma realista o tempo dedicado ao cuidado de uma pessoa com demência tendo como base somente as tarefas realizadas – maneira como as pesquisas sobre usos do tempo são configuradas –, talvez fosse justo pensar na quantidade de tempo que a cuidadora precisa estar em casa, à disposição daquele sujeito. É válido discutir uma noção de privação do tempo diário das cuidadoras – na qual não há possibilidade de realizar projetos particulares pela necessidade de estar atento ao outro.

As atividades de cuidado, então, envolvem também o tempo de disponibilidade e de presença. D. Lúcia Helena, por exemplo, era muito ativa e pelo menos três vezes por semana saía para andar na quadra, passear com o cachorro, ir à igreja e visitar algumas amigas. D. Odila, sua cuidadora, não possuía tempo para sair com ela todos os dias, e aquela já não podia realizar seus passeios sozinha porque havia se perdido algumas vezes.

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A solução de Odila foi de contratar uma acompanhante nas terças e quintas para ficar ao lado de Lúcia Helena durante o dia, andar com ela, observá-la, estar perto; em algum sentido, cuidar.

A contratação de uma empregada, cuidadora ou acompanhante é um ato que não envolve apenas o interesse dos familiares envolvidos no cuidado67, mas também da aceitação das pessoas com demência sobre esse arranjo. Lúcia Helena brigava muito com sua acompanhante, principalmente porque essa falava com ela com um tom de autoridade. Odila invejava esse tom, e dizia que Lúcia Helena reclamava muito, mas acabava fazendo o que era pedido (ou mandado), coisa que não acontecia na relação direta com ela – as duas se desentendiam constantemente.

Além dessa aceitação de ser observado e acompanhado por um estranho, ainda há um problema adicional. Carmem achava muito difícil inserir uma nova pessoa na dinâmica doméstica. No caso dela, além do desconforto de conviver com uma estranha dentro de casa, D. Amélia tinha muitos lapsos de memória, não conseguia lembrar-se com facilidade de pessoas novas às quais era apresentada. Carmem pensava que ela demoraria muito para se acostumar com outra pessoa em casa, e que possivelmente no início poderia pensar que era alguém invadindo o domicílio, ou algo nesse sentido. Por esse motivo, Carmem acabava dedicando todo o seu tempo com a atenção da mãe, chegava a levá-la ao banco para pagar contas junto com ela.

É muito comum encontrar análises que compreendem o sujeito ao qual se presta cuidados – principalmente se esse possuir alguma demência – como alguém que recebe auxílio de forma passiva. No lugar disso, o que observei em campo, e está de acordo com outras pesquisas do mesmo feitio (KITWOOD, 1997; O’CONNOR; 2007, HERSKOVITS, 1995), é que o cuidado se estabelece como uma relação entre os agentes envolvidos, na qual existem hierarquias estabelecidas, mas a dinâmica de poder é muito variável e envolve estratégias de ambos os lados. Existe um tempo de cuidado, bastante grande até, destinado

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O perfil de formação de uma cuidadora variava muito (ver nota de rodapé 49). A equipe multidisciplinar mantinha alguns contatos de pessoas que realizavam esse serviço e foram bem recomendadas pelos frequentadores do hospital. Assim, quando um membro da família dizia que estava procurando por uma cuidadora formal, a equipe repassava os contatos que possuía. No cuidado de pessoas com DA em estágios iniciais, era raro que se contratassem cuidadoras, a procura era maior por domésticas, ou por outros arranjos de trabalho. Já em estágios avançados da doença, a procura por cuidadoras era maior, mas, no caso de famílias de renda baixa, essa não era uma alternativa viável financeiramente. Sublinho que os sujeitos que conheci durante as visitas domiciliares de quinta-feira (pág. 41) contavam com o auxílio de cuidadoras com curso técnico em enfermagem, as demandas de cuidado eram mais complexas em seus estados já bem agravados da demência.

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às mediações da relação – como, por exemplo, a destinação de tempo para o convencimento da necessidade de auxílio (Lúcia Helena) ou para conversas com intuito de recordar a pessoa com demência de que as memórias dela não condizem com a situação de moradia presente (D. Amélia), e assim por diante.

Lucia Helena não só se irritava com o tom de autoridade de sua acompanhante, mas com todos que tentassem tratá-la de forma infantilizada: “eu sou de maior, por que não posso fazer isso?”, era uma de suas frases prediletas. Ela e Odila, talvez pelo fato de serem primas e possuírem idades parecidas, entravam em embates diretos. Odila controlava o dinheiro e o cuidado e Lúcia Helena não tinha muito como reagir contra isso, mas em compensação, se apresentava de forma bastante agressiva em sua argumentação, fazia algumas coisas pelas costas de Odila e defendia, o quanto podia, sua autoridade sobre si mesma.

Pode parecer, inicialmente, que essa era uma tática de ação presente somente em pessoas em estágio leve ou moderado da doença, mas não é exatamente esse o caso. Comportamentos como agressividade, humor flutuante, dentre outros, também faziam com que as pessoas cuidadas conseguissem impor o que desejavam. A mãe de Jacira, por exemplo, batia nas filhas todas as vezes que alguma coisa era feita de forma que não a agradasse. Aquela já falava muito pouco e estava tendo várias dificuldades de locomoção, mas se fizessem algo que a irritasse “tem o tapinha, e a mão dela é pesada, viu?”. Por meio de tapas essa senhora ainda impunha, de alguma maneira, sua vontade68.

O uso do tempo do cuidado das pessoas que conheci nessa pesquisa é, assim, diretamente relacionado com a dinâmica familiar de divisão de tarefas e com o tempo que é necessário se estar disponível para o outro, mesmo que esse não precise de nada além da presença. D. Edir falava muito que esperava que os irmãos e irmãs do marido fossem passar uma tarde com ele, conversar ou ficar perto. Ela queria que o marido tivesse oportunidade de interagir com outras pessoas que não ela, mas também queria poder ir ao mercado e pagar contas – precisava de alguém que passasse uma ou duas horas com o marido para ter possibilidade de realizar essas tarefas.

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Evidente que existem limites grandes dessa imposição de desejo, principalmente porque as cuidadoras manejam medicamentos, organizam o cotidiano do outro e estão responsáveis pela sobrevivência desse. Elas são detentoras de maiores instrumentos de poder na relação, mas isso não significa que os/as “cuidados/as” não possuam nenhum tipo de agência.

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Desafogar o tempo é um dos maiores reclames das cuidadoras. Diria, sem medo de cometer exageros, que todas as pessoas que conheci no CMI e estavam diretamente envolvidas com o cuidado ressentiam-se de não conseguir tempo para fazer mais nada – por exemplo, fazer uma caminhada, ir ao mercado, pagar contas, ou, até, sair e ter algum momento de lazer.

Os usos do tempo para o cuidado de alguma pessoa com demência envolvem o tempo gasto com atividades domésticas e de cuidado direto com a pessoa; e, além disso, o tempo de atender às crises com a memória, o tempo de mediar à relação de cuidado e o tempo de estar presente – ou a privação do tempo de estar em outro lugar, trabalhando ou se ocupando com interesses particulares. Nesse sentido, talvez fosse interessante para as pesquisas de usos do tempo, quando focadas no cuidado de indivíduos com demência ou com alguma doença crônica, pensar no tempo dedicado como o montante de horas diárias, ou semanais, nas quais se é privado de fazer qualquer atividade sem estar atento ao outro.

Compreendo que uma divisão analítica, assim como a listagem objetiva das atividades é fundamental para melhor compreendê-las e para quantificar o tempo de atenção necessária. Concordo também que para fins quantitativos é importante agrupá-las para se obter o tempo total que esse trabalho demanda e utilizar desse número para discussões políticas. Parece-me, contudo, que o tempo dedicado ao cuidado pode ser consideravelmente maior do que aquele destinado às funções pontuais, pelo menos no caso das cuidadoras de pessoas com demência. Por essa razão, penso que as noções de privação do tempo, ou de tempo da presença sejam caminhos possíveis para dimensionar melhor os usos do tempo no cuidado com as pessoas e, inclusive, para esclarecer os interesses pelo auxílio de terceiros.

3.3 Itinerário Terapêutico e Itinerário de Cuidado: uma experiência

No documento Doença de Alzheimer e cuidado familiar (páginas 104-110)